sábado, 29 de maio de 2010

A parede

Pus-me a falar com uma parede, eu e ela, como dois amigos que não se viam há muito tempo. Pus-me a falar com ela, sem palavras, ela a mostrar-me os disparates que nela escreveram e as coscuvilhices que ouve de quem por ela passa, e eu a falar-lhe em confidência, como dois amigos que não se vêem há muito tempo.
Pus-me a falar com ela, a parede, na esperança de que ela, parede, me entendesse.
Falámos da vida, do mundo. Falámos das pessoas. E de cães de loiça.
Vi os arabescos, escritos em caracteres para mim imperceptíveis, mais sinal de rebeldia do que vontade de transmitir mensagem. E ela falou-me dos murmúrios e lamúrias que ouve ali. Eu quedei-me, numa conversa surda, sôfrego por escutá-la.
Vi as pessoas que passavam, também eu agora já atento aos murmúrios, enquanto eu e ela, a parede, conversávamos descontraidamente, como que a pôr a conversa em dia. Ela falou-me da mudança. Do antes. De como tinha sido e agora estava a ser. E eu a ouvir, respeitosamente, a experiência duma parede velha, toda riscada e já sem resquício da tinta que outrora teve. Ou talvez não, já não se lembra. E a mim também pouco me importa. O que me importa é o que ela me conta.
Também me falou dos cães de loiça. E eu disse-lhe, divertido, que também achava que sim. Que tinha razão e andavam para aí muitos cães de loiça de olhos cor de laranja. Que de certo modo, todos andamos às vezes feitos cães de loiça, com a vida a passar ao lado e nós só expectadores. E ela disse-me que, no caso dela, só lhe restava ser cão de loiça. Concordei... Mas disse-lhe também que ela tinha a possibilidade de mostrar a quem passa as marcas do tempo que passa. E da vida.
Tenho, pois tenho. Mas é preciso que haja quem queira ver, respondeu ela.
Às vezes penso que andamos desfocados. Iludidos mesmo. Fascinados. Não sei de quem é a culpa. Se calhar de ninguém. Ou então da conjuntura (é sempre fácil ser da conjuntura). Ou talvez seja do modo de vida que criámos... E nesse caso é uma chatice, porque a culpa seria mesmo nossa...
O fascínio é mau. Muito mau. Distrai. Alheia da realidade das coisas. Faz acreditar que as coisas são o que não são. Tira a atenção do essencial. E é uma janela aberta à indeferença.
Falámos de como as pessoas andam aponquentadas. Tão apoquentadas que perderam a capacidade de pensar. De reagir. E de se importar. Falámos dos rabiscos desconexos, que gritam contra ninguém. Não há ninguém que os veja. Cada tijolo à mostra tem uma história para contar. Cada rabisco apagou outro.
Mas ninguém os vê.
Parece que se chegou à conclusão que as crianças (12 anos para mim são crianças. Mesmo que se queira chamar adolescentes) andam metidas no alcoól. E têm facilidade em chegar a ele nos cafés e supermercados... Como se isto fosse alguma novidade. Nunca consegui perceber o encanto das bebedeiras. Mas percebo que atraia as mentes novas. A vontade do desconhecido e do proibido não é novidade para ninguém. O que me parece é que é estranho que só agora se tenha concluido isto, que toda a gente sabe e vê. Perdi a conta ao número de vezes em que vi miúdos à minha frente na caixa do supermercado a comprar a garrafa de vodka, ou a cerveja. Ninguém estranha. Mas agora talvez alguém tenha visto... A parede acha que sim. Só não sabe em que parede é que viram.
A questão é que, hoje, no hoje em que vivemos, na era de toda a informação, já ninguém – nem uma criança de 12 anos ou um adolescente de 15 – pode dizer que não sabia. Que desconhecia. A realidade ou os malefícios. Quantas campanhas sobre droga e alcoól e coisas mais se têm feito? Quanta informação se tem passado e chega às pessoas por todos os meios imagináveis e mais alguns? Portanto, que ninguém diga que não sabia... E a criança? A criança se tem idade para entrar num supermercado e comprar uma garrafa de vodka, também tem idade para saber que lhe faz mal.
Faz mal??? Pffff... Claro que não.
Ou faz?...
O que eu acho é que ninguém quer saber. A começar pelos pais... Que até acham normal os filhos experimentarem uma cervejita... Estão crescidos. Ah... Que mal faz? Estão aqui estão casados e não hão-de apanhar umas pielas para gozar a vida?
Vá, digam lá, é ou não é? Um dia não são dias.
O pior é o depois. Mas isso, se acontecer, logo se vê. E a culpa, de que será?...
Toda a gente encara como normal que miúdos de 12, 13, 14, 15 anos andem pela noite até altas horas da madrugada. Pensarão realmente que andam a beber sumo e a comer batata frita? Ou quererão pensar?
O que eu acho é que já ninguém liga. Seja aos miúdos, ao alcoól, à droga, às doenças, ao estado do País, à economia, ao desemprego. Está-se tudo nas tintas, cada um no seu cantinho, a olhar para o bico dos sapatos, sem ligar muita importância ao que passa ou a quem passa.
O problema já não é que as pessoas não sabem. O problema é que não querem saber.
A parede tem lá escrito. Mas tem que haver quem queira ler.