domingo, 25 de julho de 2010

A mesa velha

Em casa dos meus Avós há uma mesa velha.
Na verdade, há lá muitas coisas velhas. Mesmo as mais novas parecem estar embebidas pelo tempo que lhes faz companhia na velhice. Sempre que lá chego, aquela serenidade, só possível na muita idade, inunda tudo, e a mim também. Fico no silêncio, só a ouvir o tic-tac dum despertador vermelho, também já velho, a marcar os segundos. O relógio de parede da sala já não conta os minutos. Talvez esteja cansado... Os passos vagarosos e inseguros dos meus Avós são consonantes com aquela casa velha, velha e branca. Branca e muito serena, que a mim me seduz e completa.
Um dia, fui ajudar o meu Avô a cortar as pernas à mesa velha, para poder servir de apoio ao fogão da cozinha.
Ó Avô, a mesa ‘tá tão velha!
Ora, também eu sou velho.

Silêncio. E depois: é velha, mas para o que é, serve. Se eu atirasse fora tudo o que é velho, tinha que atirar tudo fora. E a mim também.
Agarrei-me à mesa com mais vigor. Ele de serrote em punho, num certo esforço.
A pouca idade faz-nos pouco sábios. A muita, mais sábios. Nenhuma novidade nisto.
Fiquei a pensar na sabedoria da mesa velha, dum verde desbotado, quase sem tinta no tampo, das paredes, do despertador vermelho,do relógio de sala, da cómoda, do guarda-loiça, já muito moderno, mas também velho.
Simpatizo muito com a mesa velha verde. E com tudo o resto. Tudo ali são memórias de muitas vidas vividas, muitas histórias. Tudo ali me lembra sempre qualquer coisa.
O meu Avô tem sempre coisas para contar. De como era dantes. Do que se passou. Do que ele passou. De como agora é diferente. E pior. A minha Avó, mais calada pela doença, fala menos. Mas de vez em quando também se lembra dumas coisas. Ali, sempre se aprende. Há sempre a memória. Falam-se das searas, das ceifas, do descamisar do milho, do malhar do trigo. Do tempo em que uma sardinha era almoço para três, com uma fatia de pão. Das saudades do cão a que o meu Avô chamava só “Rapaz”...
E toda a gente se governava. E vivíamos melhor – lamenta-se o Avô. E mais contentes... – acrescenta a Avó.
Trabalhar do nascer ao pôr do sol.
Não conheço nada dessa vida. Só sei da memória que me contam.
Fico outra vez no silêncio, mergulhado na sabedoria da velhice, a pensar na dureza da vida.
Lamento-me da minha. E sei nada da deles. Do que foi e das coisas por que passaram. E ainda assim, ali estão. Agora já quase só memórias, tecidas na muita idade. Mas perseverantes. Já parte do Tempo e a andar à frente dele simultaneamente. São uma centelha de esperança, sabendo o que custa a vida e sinal de que ela vale a pena.
Faz-me falta o silêncio. E a sabedoria das paredes brancas, do relógio, do guarda-loiça, da mesa velha... E dos meus Avós. Quedo-me naquele santuário. E sou grato por ele.
Feliz Dia dos Avós.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

O grão de areia

Menosprezamos o grão de areia. Aquela coisa pequena. Deve ser mesmo por ser pequeno. Parece que era rocha dantes. E o tempo – esse Mestre – fez dela areia e da areia grão. Pequeno.
Quando eu era pequeno a minha Mãe pôs-me o gosto pelos livros. Deu-me a ler uns livrinhos pequeninos, que religiosamente comprou todos os quinze dias até fazer 60 – era a Colecção Formiguinha. Guardo-a religiosamente. Num desses livros conta-se a história da princesa da ervilha, uma linda menina que se apaixonou por um bonito príncipe. A mãe do príncipe quis tirar as provas quanto à nobreza do sangue da pequena e pôs-lhe uma ervilha seca por debaixo duma resma de colchões. Na sua sabedoria de raínha, julgo eu, era teste suficiente saber que a rapariga dormira mal por causa da ervilha. Atestava a sua sensibilidade real. E assim foi, que a menina se levantou cheia de dores nas costas. Uma ervilha. Pequena.
Penso no efeito dum grão de areia na engrenagem dum relógio. Da ervilha seca por debaixo dos colchões. No efeito duma pessoa mal intencionada no meio de um grupo de pessoas. E penso na ampulheta sem o número certo de grãos (pequenos) de areia. Na história da princesa sem a ervilha... Como iria a régia senhora saber se a moça era ou não de sangue real, não fora aquela pequeníssima leguminosa? Ou num grupo de pessoas sem haver uma que lhe dê alma... E no que seria eu, pequeno, sem a Colecção Formiguinha, também ela feita de livros pequeninos....
Pequeno. Não damos importância ao pequeno. Não temos noção da sua importância. Queremos até ser mais do que pequenos. Ser sempre mais. Maiores!
Talvez não esteja mal isto...
Mas a vida? A vida, dom das coisas pequenas...
Que importância há-de ter um grão de areia? Ou uma gota? Que não mata a sede a ninguém, mas faz transbordar a água do copo?
Dom de coisas pequenas. Feitas de coisas pequenas. Nascida de coisas pequenas. E nós a querer ser somente grandes!... Só grandes, sem nos lembrarmos que a rocha era grande antes de ser areia. E grão. E que os grãos, juntos são muita areia e o Tempo os voltará a compactar em rocha.
A vida, Dom de coisas pequenas.
Ámen.