terça-feira, 2 de agosto de 2011

O tiro aos pratos

Certa vez, em miúdo, fui a um torneio de tiro aos pratos. O meu pai fartou-se de me explicar o que era o tiro aos pratos. Mas a mim fazia-me confusão como é que se atiravam pratos tão alto e tão longe para que depois se lhes pudesse dar tiros. E ainda mais quando pensei em como raio se havia de acertar em pratos a voar. Imaginei a baixela toda em alvoroço, pratos pelo ar, e os homens, de barriga grande, boina e bigodes fartos, de caçadeira bem encostada ao ombro a derrubá-los. Pensei no desperdício. Cheguei a ir ao armário buscar um prato e pus-me a olhar para ele, muito redondo. Tive pena dos pratos.
Se calhar é como os discos, pensei. Imaginei-me na rua em frente de casa a atirar um disco ao ar e a correr atrás dele, eu e os amigos da vizinhança. Mas por que hão-de fazer pontaria aos pratos?
Lá fui, tomado desta dúvida, a ver o torneio.
Pai, não vejo os pratos!
Tens de olhar com atenção. Eu olhava, mas não via.
Espera aí.
Desapareceu uns minutos e trouxe-me uma mão cheia de pratos.
Vês! Isto são os pratos.
Os pratos? Mas isto não são pratos! Não se pode comer nisto!
O meu pai riu-se. Mas não explicou mais nada. Eu não conhecia ainda a ideia de prato. Só os pratos. Não podia conceber que houvesse uma coisa de cerâmica a que chamavam prato e que servia apenas e só para se disparar contra eles.
Deve ser preciso muita força para atirar isto tão alto!
Mas não era. Era uma máquina que os atirava, e os homens de barriga e farto bigode esperavam alinhados.
Achei giro. Mas chato. Só mais tarde é que percebi a importância de afinar a pontaria. Só quando me levaram à caça. Também achei giro. Mas triste. Pensei nos pratos. Depois nos pombos. Os pratos não largavam sangue. Tive pena. Nesse dia decidi que a pontaria era uma coisa boa mas só para torneios.
Gostava muito de tiro ao alvo. Aos pratos não. Sou demasiado magro para disparar caçadeiras sem fazer figuras tristes. Mas ao alvo sim. Desafiava-me a paciência. Depois compraram-me um arco. Podia passar dias a fazer pontaria a tudo. Mais ou menos pela mesma altura li um livro do Pateta, em que ele era xerife no Velho Oeste. Ia fazer pontaria para a lixeira. Acertava sempre, claro. Na lixeira acerta-se sempre em alguma coisa. Senti-me um xerife do Oeste. Depois alguém me disse que os xerifes não tinham arcos e flechas. Isso eram os índios.
Ora, mas os índios são os maus! Assim já não quero. Fiquei-me pelos alvos. E por todas as latas que conseguisse encontrar.
Continuo a gostar de tiro ao alvo. Do jogo da respiração. Do saber que consigo, por mais pequeno ou longe que esteja. Lamentavelmente, vejo mal. Acabou-se o tiro. Tive pena.
Passei anos sem pensar em pratos, nem pombos, nem índios. E o arco partiu-se. Mandei-o para o lixo na última limpeza que fiz ao sótão. Mas não aos pratos. Vieram-me às mãos, por entre o pó e as coisas velhas. Os pratos daquele dia. Guardei-os. Não sei para quê. Gosto de guardar. Não precisava de ter guardado o arco partido tantos anos. Afinal, ainda me lembro dele, apesar de agora já não ser arco nem estar na minha casa. Mas sou assim. Guardo.
Voltei a pensar neles, nos pratos. Na inocência com que fui ao torneio. No domínio da ideia de prato. É inevitável para mim pensar no torneio dos pratos e não pensar em homens de grandes barrigas. Deve ser uma coisa de estatuto. Embora não saiba bem porquê. Penso que qualquer um, mesmo sem barriga ou bigode farto, poderia fazer tiro aos pratos. Até eu poderia. Claro que não os veria, e não sei se me daria bem com os tiros de caçadeira. Mas os homens de barriga grande sempre hão-de personificar para mim o torneio dos pratos. Assim como numa caricatura. Nas revistas velhas que encontrei no sótão havia montes de caricaturas. Da situação, dos políticos, da crise que, obviamente, é de sempre. E os políticos sempre de cartola e charuto. As cartolas estão, por assim dizer, para os políticos como as barrigas e os bigodes para os pratos. Lamentavelmente, se fossem fazer pontaria aos pratos, também não sei se os veriam. Ou se aguentariam o recuo das caçadeiras. Haveria de estilhaçar-se os pratos, mas não pelos tiros. Saem sempre ao lado. Tenho pena dos pratos. A importância da pontaria vêm-me outra vez à ideia. Ficou-me para a vida, mesmo que agora já não faça tiro ao alvo. Mas gostava. Gostava muito. No vernáculo que hoje usamos a pontaria pode ser muita coisa. Acuidade, claro. Centrar-se em objectivos. Focar-se (resisto ao focalizar. Desprezo-o quase tanto como o recepcionar que, por mister do destino, hoje substitui o receber). Para quem já disparou uma arma, sabe que o controlo é o segredo. Não apenas o olho. O respirar. E pronto, depois sabemos o momento certo. Isto é a pontaria. Seja de cartola ou de barriga grande. Não convém ir aos pratos (nem aos patos) se não se fizer pontaria. E termos presente que os pombos sangram. É o preço a pagar pelo chumbo. Um tiro reclama sempre um preço. Não se deve puxar o gatilho se não estivermos dispostos a pagar o preço. Tenho pena dos pratos. E dos pombos. E dos patos.
Gostava de voltar à inocência das ideias sobre os pratos.
E ao tiro ao alvo. Os pratos não largam sangue. Mas também se estilhaçam. Mesmo que não levem tiros.