terça-feira, 27 de dezembro de 2011

A caixa de música

Era uma noite fria, assim daquelas de vento a cortar na cara. Uivava lá fora. A mim diziam-me que era a Noite do Caramelo. Caramelo por causa do gelo, como quando o açúcar se faz em ponto e fica caramelizado assim que arrefece. A minha grande preocupação era o presépio. Caixas e caixas de musgo, cascas de árvore, pedras e sei lá que mais, ano após ano, puxavam pelo meu engenho, de modo a dar ao Menino um lugar condigno. Sabia da manjedoura, mas para mim, não chegava. Tinha de haver montes e vales, rios a correr feitos de regatos de areia, pontes, moinhos de vento e uma gruta. Não seria de Belém, mas era, ainda assim, a gruta do presépio.

O meu Avô vinha sempre ver o presépio. Queria saber o que tinha trazido o Menino. Eu dizia-lhe que quem trazia as prendas era o Pai Natal. Ele insistia que era o Menino. Mas eu não me importava. Claro que eu não entendia como podia o Menino, tão pequenino, andar mundo fora carregado de prendas. O Pai Natal sim. Tinha um trenó e podia num repente distribuir as prendas todas. Andei a pensar naquilo um bom par de anos, porque me faltava perceber como sabia o Pai Natal quem tinha sido mau ou bom. Deve ser o Menino que lhe diz, pensei. Servia-me aquela explicação.

Certo Natal alguém me ofereceu uma caixa de música. Era uma pequena casinha de tijolo vermelho, coberta do branco da neve artificial. Tinha encostada uma escada por onde subira o Pai Natal que estava empoleirado no telhado, enquanto a rena esperava cá em baixo, ao pé do pinheiro, também ele coberto de neve artificial. Inchei de orgulho, porque aquilo era a prova provada da minha teoria. Era mesmo o Pai Natal que trazia os presentes. Fui mostrar ao meu Avô, que se riu. “Foi o Menino que te trouxe.” Olhei para ele e perguntei: “Oh Avô, porque gostas tanto do Menino?” “Ora essa, porque é Natal!”, disse ele, como se aquilo fosse a coisa mais óbvia. “Se não houvesse Menino, não havia Natal” explicou-me a minha Avó.

“Ah”, disse eu. E fui atirar-me às filhós.

Fazer as filhós foi sempre um ritual em minha casa. Desde o amassar ao fritar, fui instruído em todos os passos pela minha Avó, que me ia ensinando como se colocam as mãos quando se amassa; como se usa o rolo da massa e como se vê se o azeite já está na temperatura para fritar, tudo enquanto me contava como se fazia quando ela era menina pequena. Foi precisamente a fazer as filhós que me lembrei dela. Não pude evitar uma lágrima, nem sequer enquanto escrevo. O primeiro Natal sem lhe dar as filhós a provar. Não pensei que ligasse tanta importância às filhós.

Tenho um Natal feito de lembranças. E celebro-o não já pelo Menino mas pelas lembranças. Ainda consigo ver o meu Avô segurar me na mão, na missa do Galo, enquanto íamos igreja fora para beijar o Menino. E os risos, lá muito longe, de serões em família. Tudo se foi. Tenho as lembranças. E o Avô, de olhos muitos vivos. E as filhós. E a caixa de música também, embora com muito pó. São eles agora o meu Natal.

Festas Felizes.