Calisto Elói,
morgado da Agra de Freimas, ficará para sempre como o modelar
exemplo de como o poder corrompe. E de como os eleitos para a causa
pública se deixam enredar tantas vezes no ridículo. Às vezes até
de si mesmos. O protagonista do romance célebre, que devia ser de
leitura obrigatória para todo aquele que aspira ao serviço
parlamentar, com tanta ou mais importância que as lições de colar
cartazes e animar comícios, deixa de ser o homem íntegro, amante
das letras e zeloso dos costumes do antigamente, para rapidamente
perceber que o poder requer outros modos, que a vida dum
representante da Nação não se compagina com polainas nem costas
dobradas por horas a fio de nariz enfiado nos clássicos, que antes
quer chapéu alto e fatiota de bom corte. Ele que vai para se impôr
contra a corrupção dos costumes, vê-se rapidamente nos braços
duma bela senhora que não a sua própria esposa, enquanto esta,
sozinha e ouvindo novas do que se passa por Lisboa também não se
fica atrás...
Ainda me atormenta
esta ideia da era do ridículo. Não que duvide que vivemos nela. Ou
que me angustie fazer parte desta idade. Para mim, é apenas lógico
que ao vazio se siga o ridículo. O que atormenta é a forma
escancarada como se se vive esta época. Como se entranha e parece
tomar tudo, às claras, sem reservas... Ao escrever não posso deixar
de pensar nos tristes episódios que quase diariamente as notícias
nos dão conta. Dentre eles, nenhum outro me tenha talvez feito rir
tanto como a moda das equivalências. Rir, sim. A era do ridículo é
para isto que serve. Não apenas, mas também para rir. Assim que
ouvi as notícias sobre o estranho caso das equivalências (não digo
da licenciatura, porque casos desses já temos vários), pensei
imediatamente no Calisto Elói. Não sei bem porquê. Mas veio-me
imediatamente à imaginação o homem que, na casa de Alfama, a ler o
livro do Mendes de Vasconcelos sobre as águas das fontes de Lisboa
e, tomando-o à letra, se viu a braços com uma valente caganeira.
Pensei nessa imagem por causa da quase seráfica ingenuidade com que
Calisto Elói se crê nos livros, mesmo quando eles falam duma época
que nada já tem a ver com a realidade das coisas. E a realidade das
coisas é esta: embevece ver a ingenuidade com que se fazem
trafulhices e depois se aparece com a cara mais inócua possível,
como se tudo não fosse senão uma confabulação contra os bons
costumes. Os Calistos Elóis de hoje já não são provincianos de
polainas, conhecedores dos clássicos, de voz levantada contra a
corrupção dos bons costumes. São, não obstante, para espanto meu,
ainda ingénuos, crentes numa certa forma de estar na vida a que, por
melhor designação, se costuma chamar “o jeitinho”. E assim, sem
a erudição de Calisto Elói, mas usando das mesmas premissas e do
mesmo vigor, lá vão seguindo, muito ao estilo do “rei vai nú”.
E enquanto passam, nesse cortejo decrépito, reflexo duma época que
já não existe, crentes ainda num respeito e num estatuto de que já
não gozam (o ridículo atropela tudo, até os estatutos), vão
atropelando também a valia das instituições, e a reputação e o
trabalho de quem, porventura sério, se esforça por conseguir um
grau, um trabalho, um negócio, um modo de vida, seja o que for, sem
“o jeitinho”. Muito difícil, confesso. Talvez por isso Calisto
Elói se tenha entregue aos prazeres da carne, depois de ter
descoberto os de andar de costas direitas...
O estio avança,
na pasmaceira habitual. Não sei ainda o que o verão reserva no
domínio do ridículo. Não sei se virão ainda mais notícias de
negócios escondidos, de documentos que desaparecem ou de lideranças
bicéfalas... Não sei. Sei que na China, as senhoras optam por ir à
praia com uma máscara de nylon, para evitar os raios ultravioletas e
os malefícios do sol. Esperemos que a essa moda não juntem a máscara
anti-fumos e anti-cheiros e anti-micróbios e anti-tudo tão querida
aos seus vizinhos nipónicos. Ainda assim, esse exagero protector,
sempre seria melhor do que certas caras-de-pau. Faria bem que se
encomendassem uma quantas para quando se retomarem os trabalhos
parlamentares.
Soube também que,
a par do Bosão, a ciência avançou também nas previsões do
futuro. Para além dos mistérios da Vida, desvendam-se agora também,
ainda que o futuro que é possível prever seja ainda a curto prazo,
os mistérios do Inenarrável. Já vejo romagens a este novo Oráculo.
Mas para isto não preciso de saber prever com exactidão o futuro.
Contento-me com a imagem do Calisto Elói, eloquentemente vociferando
na assembleia contra a corrupção dos costumes e Teodora, sua
desprezada esposa, a caminho de Lisboa, como um furação. Prevejo
que nem a máscara de nylon lhe vai valer. Nem essa nem outra
qualquer equivalente.