terça-feira, 21 de agosto de 2012

A queda dum Anjo no País dos jeitinhos

Calisto Elói, morgado da Agra de Freimas, ficará para sempre como o modelar exemplo de como o poder corrompe. E de como os eleitos para a causa pública se deixam enredar tantas vezes no ridículo. Às vezes até de si mesmos. O protagonista do romance célebre, que devia ser de leitura obrigatória para todo aquele que aspira ao serviço parlamentar, com tanta ou mais importância que as lições de colar cartazes e animar comícios, deixa de ser o homem íntegro, amante das letras e zeloso dos costumes do antigamente, para rapidamente perceber que o poder requer outros modos, que a vida dum representante da Nação não se compagina com polainas nem costas dobradas por horas a fio de nariz enfiado nos clássicos, que antes quer chapéu alto e fatiota de bom corte. Ele que vai para se impôr contra a corrupção dos costumes, vê-se rapidamente nos braços duma bela senhora que não a sua própria esposa, enquanto esta, sozinha e ouvindo novas do que se passa por Lisboa também não se fica atrás...
Ainda me atormenta esta ideia da era do ridículo. Não que duvide que vivemos nela. Ou que me angustie fazer parte desta idade. Para mim, é apenas lógico que ao vazio se siga o ridículo. O que atormenta é a forma escancarada como se se vive esta época. Como se entranha e parece tomar tudo, às claras, sem reservas... Ao escrever não posso deixar de pensar nos tristes episódios que quase diariamente as notícias nos dão conta. Dentre eles, nenhum outro me tenha talvez feito rir tanto como a moda das equivalências. Rir, sim. A era do ridículo é para isto que serve. Não apenas, mas também para rir. Assim que ouvi as notícias sobre o estranho caso das equivalências (não digo da licenciatura, porque casos desses já temos vários), pensei imediatamente no Calisto Elói. Não sei bem porquê. Mas veio-me imediatamente à imaginação o homem que, na casa de Alfama, a ler o livro do Mendes de Vasconcelos sobre as águas das fontes de Lisboa e, tomando-o à letra, se viu a braços com uma valente caganeira. Pensei nessa imagem por causa da quase seráfica ingenuidade com que Calisto Elói se crê nos livros, mesmo quando eles falam duma época que nada já tem a ver com a realidade das coisas. E a realidade das coisas é esta: embevece ver a ingenuidade com que se fazem trafulhices e depois se aparece com a cara mais inócua possível, como se tudo não fosse senão uma confabulação contra os bons costumes. Os Calistos Elóis de hoje já não são provincianos de polainas, conhecedores dos clássicos, de voz levantada contra a corrupção dos bons costumes. São, não obstante, para espanto meu, ainda ingénuos, crentes numa certa forma de estar na vida a que, por melhor designação, se costuma chamar “o jeitinho”. E assim, sem a erudição de Calisto Elói, mas usando das mesmas premissas e do mesmo vigor, lá vão seguindo, muito ao estilo do “rei vai nú”. E enquanto passam, nesse cortejo decrépito, reflexo duma época que já não existe, crentes ainda num respeito e num estatuto de que já não gozam (o ridículo atropela tudo, até os estatutos), vão atropelando também a valia das instituições, e a reputação e o trabalho de quem, porventura sério, se esforça por conseguir um grau, um trabalho, um negócio, um modo de vida, seja o que for, sem “o jeitinho”. Muito difícil, confesso. Talvez por isso Calisto Elói se tenha entregue aos prazeres da carne, depois de ter descoberto os de andar de costas direitas...
O estio avança, na pasmaceira habitual. Não sei ainda o que o verão reserva no domínio do ridículo. Não sei se virão ainda mais notícias de negócios escondidos, de documentos que desaparecem ou de lideranças bicéfalas... Não sei. Sei que na China, as senhoras optam por ir à praia com uma máscara de nylon, para evitar os raios ultravioletas e os malefícios do sol. Esperemos que a essa moda não juntem a máscara anti-fumos e anti-cheiros e anti-micróbios e anti-tudo tão querida aos seus vizinhos nipónicos. Ainda assim, esse exagero protector, sempre seria melhor do que certas caras-de-pau. Faria bem que se encomendassem uma quantas para quando se retomarem os trabalhos parlamentares.
Soube também que, a par do Bosão, a ciência avançou também nas previsões do futuro. Para além dos mistérios da Vida, desvendam-se agora também, ainda que o futuro que é possível prever seja ainda a curto prazo, os mistérios do Inenarrável. Já vejo romagens a este novo Oráculo. Mas para isto não preciso de saber prever com exactidão o futuro. Contento-me com a imagem do Calisto Elói, eloquentemente vociferando na assembleia contra a corrupção dos costumes e Teodora, sua desprezada esposa, a caminho de Lisboa, como um furação. Prevejo que nem a máscara de nylon lhe vai valer. Nem essa nem outra qualquer equivalente.