segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Em nome do Rui

Caro Rui:

Não me conheces, nem eu a ti. Escrevo-te depois de ler a tua história no jornal, sobre como a vida tem pregou a partida de conheceres a fome, apesar de só teres nove anos e estarmos no século XXI e viveres num País que pertence à União Europeia, é membro da NATO, do Conselho de Segurança da ONU, da FAO, da UNICEF, entre tantas outras instituições e siglas, como convém a um país do primeiro mundo, seja lá isso o que for. Fiquei triste. Quero dizer, primeiro muito zangado. Comecei aos berros no café onde estava a ler o jornal, como se alguém que ali estava, tivesse alguma culpa. Depois revoltado. Agora triste.
Na verdade não me interessa nada se tudo aquilo que se diz no jornal é verdade. Se é mesmo assim, que a tua mãe não tem dinheiro; que deve €4,65; que não te mudaram o escalão por causa dum papel que a Segurança Social parece que só vai emitir em Janeiro; que não te deram de comer porque não tinhas 73 cêntimos... Não me interessa. O que me interessa é a partida que a vida te está a pregar, por um lado, e o ver-te exposto às complicações dos adultos, por outro. Não sei se as compreenderás e, sobretudo, se saberás lidar com elas e com o estigma que elas costumam trazer. Perdoa-me escrever de forma tão adulta. Bem sei que os teus nove anos pediam que me esforçasse por uma linguagem mais direccionada para a tua idade. Mas porque alimento, lá no fundo, uma centelhazinha de esperança de que alguém ao ler isto se indigne tanto como eu me indigno e, melhor do que eu, esteja em posição de fazer alguma coisa concreta e útil por ti, permite-me gladiar neste palavreado por ti, mesmo que o não entendas.
Não sei quantos Rui haverá. Ouvi nas notícias que serão para cima de 12 mil. Doze mil! Eu próprio Rui me confesso. A razão pela qual me indignei tanto é por ter sido eu mesmo, a dada altura, Rui. E, por causa disso, lágrimas. Verdade que há aqui um certo egoísmo meu, porque acabei por me ver espelhado numa situação que pensava já não ver, ou pelo menos, não ver mais no meu País. Na casa que é o meu País. Certa vez, ia a caminho da escola, bem mais pequeno do que tu, e era inverno. Começou a chover, e eu levava calçados uns sapatos de sola, que estavam rotos. As meias brancas – naquela altura era o que se usava, caro amigo – depressa ficaram ensopadas e os pés encharcados. Comecei a ouvir um choc-choc, que era o eco dos meus passos molhados. Passaram por mim uns colegas, que começaram a a rir. Não sabiam duas coisas: a primeira que eu usava sapatos de sola, apesar da chuva, porque não podia usar solas de borracha ou plástico, que me feriam os pés. A segunda é que, mesmo que pudesse, não havia dinheiro para comprar outros. Senti a cara molhada, e até hoje não sei se era da chuva, se de que era. É muito fácil fazer gozo na ignorância. Bem vês, entendo muito bem a tua cara escondida no colo da tua mãe. Mas deixemos isso. Não é de mim que falamos. Antes que alguém com muito jeito para análises leia isto e comece a inventar neste episódio que te contei laivos de recalcamentos e traumas, voltemos ao assunto. Falemos de ti. Do facto de conheceres a fome e, por ela, a vergonha. De saberes o que é um dedo apontado ou um risinho escarnecido. Vou dizer-te que não acredito que não quiseste ir à escola por te sentires fraco. Sentirias, por certo. Não duvido. Mas a verdadeira razão de não quereres ir, acho que era a vergonha. Não faz mal. Não é vergonha ter vergonha. Não te envergonhes da vergonha. Nem da fome. Dias virão, acredito, em que perceberás que te moldaram de alguma forma. Espero que de uma forma que te fez mais íntegro, mais digno, mais humano e menos conformado. Lamentavelmente, não há forma de fazermos voltar atrás o tempo, esse extraordinário curandeiro, de modo a que não tivesses de passar por esta experiência. Acontece que passaste. E isso, não mudará. O que ela te fará, está também um pouco nas tuas mãos. E na altura devida, compreenderás.
Outras coisas há que não estão nas tuas mãos. Infelizmente nem nas minhas, pois se estivessem, este meu palavreado todo era escusado. Arrepiávamos caminho. Mas não. Está nas mãos de muita gente, e como tudo o que está nas mãos de muita gente, dá muitas voltas, a maior parte das vezes para ficar no mesmo sítio. Talvez por isso, voltemos hoje a falar de fome, e de miséria e de carências alimentares, e de falta de dinheiro... De programas PÊRA (de quem terá sido a luminosa ideia de dar o nome duma fruta a um programa de combate à fome?...) Tantas coisas más de que não devíamos estar a falar. Soube também que mais de metade da população activa, quer dizer, daquelas pessoas que no nosso País têm idade e condição para trabalhar, ou são desempregados ou estão em situação de emprego precário. Mais de metade! E penso que não consigo perceber para onde vamos. Parece-me tudo um desnorte. Não há caminhos apontados; não há estímulos para os caminhantes; não há metas; não há timoneiros de mãos firmes no leme; não há chefes que andem á frente e agarrem nos que caem pelo caminho. Vejo a desesperança; as crianças e os adolescentes com fome; os jovens sem perspectivas e desempregados; as famílias sem dinheiro; os velhos na miséria. E falta-me saber o mais importante: para quê?
Podia continuar a atirar números. Do desemprego, do endividamento, do défice, do número de pobres... De nada serve. O que serve é a vontade de querer fazer melhor. O que serve é reconhecer o erro. E a vontade de o corrigir. O que serve é perceber que, em cada decisão que se toma, em cada medida que aceita, há rostos; há caras que se escondem em colos ou só nas mãos; há histórias de vida de pessoas reais, que existem, que passam por nós e vão baixando os braços, desistindo aos poucos, como se passassem pela vida sem ser já o seu tempo.
Meu caro Rui, não tenho solução. Tenho palavras. E a esperança de que toquem em alguém que, pegando nelas, dê o primeiro passo para mudar o que é preciso mudar. Mormente consciências. E valores. Tantos valores perdidos... Onde irá parar um País que não honra a memória; que não é brioso; que deixa de celebrar a sua Independência... Falta-me mesmo o para quê.
Faço votos de poder saber de ti, daqui a alguns anos, talvez dez ou quinze, quando já fores homem feito, e poder saber-te bem. Poder saber-te um Homem íntegro e um Cidadão competente.

                                                                                 Teu muito amigo.