quarta-feira, 10 de abril de 2013

O triunfo dos cromos

Em todas as sociedades, de uma forma ou de outra, acaba por se desenvolver a necessidade de criar heróis, figuras mais ou menos míticas, mais ou menos fantasiosas, em maior ou menor grau imaginadas, capazes de aglomerar em si mesmas as expectativas e os desejos dos indivíduos, tornados modelo, guia, alvo a atingir. São como uma espécie de criaturas idealizadas nas quais se faz encarnar o perfeito, o melhor, o ideal de cada ser humano e para o qual cada um deve olhar e aspirar.
Não devemos confundir este fenómeno com a religião ou com a necessidade de Deus. A necessidade de Deus é uma coisa íntima, se quisermos entender assim e se formos capazes de o entender assim. A necessidade dos heróis é de outra ordem. Da ordem do aspirar, da ordem do motivar, do incentivar ao melhor, de serem força de erguer quando a sociedade se deixa abater. Deus também, é verdade. Mas um herói imaginado não me consegue compreender no íntimo. Deus, sim. Claro, esta é uma interpretação pessoal. Haverá outras, tão ou mais competentes e válidas como esta. A minha é esta mesmo. Na verdade, entendo que nenhuma sociedade subsistiria sem os seus heróis. Certamente, nenhum regime político.
A par com este fenómeno interessantíssimo, digno só por si de muitos estudos aprofundados, e não somente destes devaneios, surge um outro, porventura tão ou mais interessante: os cromos.
Os cromos são aquelas figuras sem as quais, a par dos heróis, nenhuma sociedade floresce. São muito mais do que anti-heróis. Enquanto que os heróis aglomeram em si os aspectos de perfeição a seguir, os cromos representam o risível, o caricato, o ridículo. E quanto maior é a lata como se apresentam a si mesmos modelos para os demais, maior é o seu impacto enquanto cromos e/ou profissionais do ser cromo. Depois há aqueles que, sendo cromos, se apercebem de formas de fazer uso dessa sua qualidade, atropelando socialmente os demais, dando de si mesmos uma imagem de perfeição (que apenas existe para eles mesmos) e tentando fazer com que essa imagem de perfeição se sobreponha ao ser cromo, um pouco à maneira do corvo que queria ser águia. Quando eu era pequeo, contavam-me a história dum corvo que tinha de si mesmo a ideia de ser tão grande, em tamanho e importância, como uma águia. Estava mesmo convencido de que era uma águia. E, por isso, lançava-se, tal como ás águias, sobre o gado que pastava, mormente sobre os borregos, sem nunca, claro está, conseguir levantar nenhum do chão.
Diria que este é uma espécie de cromo que está convencido que é herói. E age como tal. E reclama para si as honras e os aplausos de ser herói. E nem sequer tem vergonha de se apresentar e dizer de si mesmo ser um modelo a seguir. Um devoto do bem da sociedade, pela qual tudo sacrifica e pela qual trabalha incansavelmente. Claro está que o cromo-corvo, não sendo herói, não elevará nunca nem a sociedade, nem os cidadãos, nem a moral, nem os ânimos. Pode, no entanto, ter um papel até importante, enquanto bobo. Vem de longe o reconhecimento e a importância dos bobos, muito antes de haver cromos, ou de a sociedade ter tido a necessidade de criar estas figuras ímpares. Foram eles os precursores do riso, do gozo, que tanto ajuda ao aliviar de tensões e põe as pessoas mais dispostas e mais capazes de aturar certos desmandos. Na verdade, simpatizo muito mais com os bobos do que com os cromos. Os bobos são autênticos, parvos com orgulho de o ser, nada dissimulados e sem necessidade de esconder aquilo que são. Já um cromo pode parecer um herói respeitável. E por vergonha de assumir a sua função no seio da sociedade que o criou e lhe deu fôlego, disfarçar-se do que não é. O que acontece nesta circunstância é que, quando cai no riso dos demais acaba por se apresentar como um mártir, que é outra das categorias de figuras, também esta muito interessante.
O corolário da vida de um cromo-corvo é quando finalmente se consegue apresentar como um cromo-mártir, lamentando-se da sua desgraça, mas sobretudo, lamentando-se de como as suas ideias não são bem interpretadas e de como os seus esforços e acções são mal compreendidas. É como se o corvo se lamentasse do peso dos cordeiros e do facto de a natureza o ter feito corvo e não águia. Ele bem sabe que era águia. Mas aos olhos de todos não passa de corvo.
Outros há, que não sendo nem corvos nem águias, são borregos, que descobriram que conseguem pôr-se de pé e, gritando pelos corvos, embarcam também na aventura de serem cromos, apresentando-se aos outros borregos como o modelo capaz de os fazer subir além do seu ser de borregos, para grande gaúdio dos corvos, que na ausência das águias, esfregam as penas ante a visão de tanta carne fresca. Estes borregos, servindo um interesse próprio, servem também o interesse dos corvos, mas não vão além do ser cromo. São umas figuras patéticas, andantes bípedes num mundo quadrícipede, desfiando meia dúzia de anglicanismos e esbracejando muito. Muito mais que borregos, estes cromos, escolhidos entre os seus pares para os convencer que aos borregos convém o andar bípede e não as quatro patas, são para mim muito mais parecidos com certo pregador, falho de argumentos, mas bom conhecedor de como retirar impacto das palavras, e que em certa ocasião, ao ter de falar acerca de um assunto sobre o qual não era versado (coisa comum entre os cromos), escreveu a letrinhas pequeninas na sua cábula “aqui gritar, que o argumento é fraco”.
Inevitavelmente, o cromo-borrego chega à mesma conclusão que o cromo-corvo: é fraco argumento querer ser como as águias e querer que os borregos andem de pé. E, claro, o desconsolo de ver a sua argumentação cair por terra, apesar de tanto esbracejar e dizer barbaridades em inglês, como se aquelas palavrinhas estrangeiras fossem fórmulas mágicas, atira o cromo-borrego também para a tristeza de se sentir incompreendido. Ele bem sabe como fazer para andar de pé. Mas ninguém o ouve, e os borregos andam em quatro patas. É a realidade que não ajuda os cromos.
Ainda assim, eles parecem florescer. Diria mesmo que, desde que mergulhámos neste mal-fadado estado de coisas, o número de cromos subiu exponencialmente.Mais do que heróis, hoje triunfam os cromos.