segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Dos pobres

Tenho andado aborrecido da escrita. Há tanto para escrever... Se ao menos os meus dedos se movessem à velocidade com que as palavras me chegam... Na minha mente, tudo está escrito. Olho para o papel e vejo-o já preenchido de tanto que quero e preciso escrever... Mas não tenho escrito. E quanto menos escrevo mais me aborreço, caindo num ciclo vicioso de angústia, porque a escrita se me apresenta como um imperativo e a consciência atormenta-me porque não ligo às palavras. Eu, mero veículo instruído delas, servidor apenas da vontade delas de serem escritas, capacitado somente para lhes dar sentido e conexão e sintaxe e forma... E, portanto, como as não escrevo, elas não se fraseiam. Ainda que para mim estejam escritas.
Alguém me disse que era mesmo assim, que era normal passar períodos sem escrever. Eu respondi que não, que não era mesmo nada normal, porque sentia como a escrita me impelia a escrevê-la e não podia, porque me aborrecia escrever. É assim que tem sido. Quero e não posso. Como em tanto na vida.
Hoje, por casualidade, como quase sempre me acontece com as coisas verdadeiramente importantes de serem escritas, tomei conhecimento de realidades inquietantes. Aterradoras mesmo, quando as tomamos como certas e reflectimos nelas. Um em cada cinco portugueses é pobre. Primeiro não tomei muita atenção. Depois li outra vez. Um em cada cinco. Sim, reflectir... Não fosse a estatística ser uma coisa de números, construída de médias e cálculos avultadíssimos, diria que, à vista disto, é impossível que cada um de nós não conheça um pobre. Claro, é fácil rebater isto, porque uma franja da sociedade não conhece nenhum pobre. Aliás, é profundamente desconhecedor desta realidade, nem sequer do conceito, quanto mais da realidade de um pobre (veja-se, v.g., o último post que aqui escrevi acerca das realidades da Comporta e outras similares). Acresce a isto que a pobreza entre nós já não é apenas estrutural (que coisa ridícula de se chamar à pobreza, mas parece que é assim que se designa nas coisas sérias que se escrevem. Aqui limito-me a tentar, por via da osmose, que essa seriedade de termos se pegue a estas minhas deambulações), ou seja, que a pobreza já não é apenas de excluídos, desamparados, sem-abrigo, toxicodependentes e de todos os grupos que nos habituámos a catalogar nesta realidade. A pobreza, hoje, que faz de Portugal um País de (muitos) pobres é a pobreza da ex-classe média (serei o único a achar que o início deste colapso em que estamos foi precisamente quando nos pusémos com esta coisa de dividir as pessoas em classes?...). Pessoas que já tiveram uma vida estável, confortável, desafogada até e hoje não têm nada. Houve falências, houve divórcios, houve desemprego, houve dívidas, houve cartões de créditos em cima de cartões crédito, houve o comprar de um sonho ludibriado, vendido anos a fio, ilusório, assente em erros graves de bom-senso e da mais elementar economia... Ou então pessoas ainda com emprego, altamente qualificadas, que ganham na ordem dos 400/600 euros mensais e que não conseguem pagar renda de casa, alimentação, despesas com filhos. E passam fome. Um em cada cinco. Parece também que os dois milhões de portugueses que mais ganham têm em Portugal, auferem 7 vezes mais do que os restantes. Não quero sequer pensar se esta conta fosse feita para os cem mil mais ricos, por exemplo... Ou para os dez mil... O argumento de que os ricos não têm culpa de serem ricos tem tanto de estúpido como de demagógico. Como não sou nem uma coisa nem outra, escuso-me de aqui comentar a questão da riqueza. É evidente que não têm culpa de serem ricos (a não ser em certas circunstâncias, morais primeiro e judiciais depois). Mas eu não quero escrever sobre a riqueza. Quero escrever sobre a pobreza.
Portugal é o País da União(?) Europeia onde o fosso entre ricos e pobres é mais acentuado. Sempre foi, na verdade. Basta algum conhecimento histórico para poder dizer isto sem grande dificuldade. Portugal foi sempre um País de muito poucos ricos e muitíssimos pobres. Houve alturas em que essa diferença se esbateu, pelo menos superficialmente, outras, como agora, em que ela se acentua. A pobreza sempre esteve na realidade portuguesa. E na minha vida também. Nasci pobre, com pais pobres e avós pobres. Nunca me incomodou, porque esse contacto sempre me ajudou a estabelecer prioridades e a olhar para a vida com uma certa frugalidade. Tive também contacto com o fausto. Desejei-o. Gostava de poder dizer que esse contacto com a pobreza me preparou para a vida. Não é verdade, porque quando nos sentimos privados de algo, aspiramos a tê-lo. E isso, embora não seja um mal em si mesmo, no que toca ao facilistismo da sociedade que temos, pode ser fatal. Esse é o drama da pobreza. Ao pensar nisto, voltei a lembrar-me da senhora com sacos de plástico nos pés a servir de sapatos; da velhinha cega a cantarolar com uma voz rouca e triste, sentada num banco à frente dum grande edifício luxuoso na Baixa de Lisboa; da mulher encostada a uma parede na estação de metro, sem dizer nada e apenas com uma caixinha desbotoada na mão estendida; do Rui que escondia a cara no colo da mãe por vergonha da fome... de outros Ruis e Marias e Joões e Antónios e Andreias espalhadas por esse País, que acompanham os pais, eles próprios desenquadrados e sem saber muito bem como esconder a vergonha, nas filas para a sopa... Todas cenas muito reais e verdadeiras da minha experiência de vida. E da vida do nosso País. Cruzei-me com todos. E penso neles... E em como poderia estar eu também numa fila à espera da sopa, ou no metro de caixa estendida... Todas aquelas pessoas já tiveram outra vida. Um em cada cinco anda de caixa estendida, de rosto escondido pela vergonha, corpo arqueado pela fome em filas à espera. Enquanto escrevo, lembrei-me também do fulano que vi na televisão, já há anos, entrevistado porque a casa dele era uma espécie de gruta perto da Boca do Inferno. Queria fazer-se um retrato da pobreza (estrutural essa?) às portas da Capital. Como se dentro dela não gritasse a pobreza em todas as ruas... A certa altura, perguntaram-lhe: “Então e amanhã?. Ele riu-se, numa boca sem dentes, e respondeu: “Amanhã, o mesmo que hoje. Nada”. E ficou-se com aquilo.
Um cada cinco, nada.
E só isto importa. Sim, apenas isto. Quero e não posso. Quero gritar que parem. Que andem pelas ruas. Que vejam três gerações perdidas: dos avós, que quiseram uma vida melhor para os filhos; dos filhos que quiserem uma vida ainda melhor para os seus próprios filhos e dos filhos, educados, diplomados, preparados e agora desempregados, desamparados e pobres. E com eles os pais e os avós, despejados de qualquer remedeio, de toda a poupança e, sobretudo, de toda a esperança. Um País não se quebra pela falta dinheiro. Quebra-se pela falta de esperança. Um em cada cinco. É isto que importa.
Não há quem se levante?