quarta-feira, 26 de novembro de 2014

A creche parlamentar, as subvenções e o chocolate

Vivemos tempos conturbados. Terríveis mesmo. Fiquei em pânico com a notícia de que o chocolate, consumido ao ritmo actual, se extinguiria... Evidentemente, quando se está em pânico, não se pensa nas incongruências do que se lê ou ouve... Como poderia o chocolate extinguir-se?... O que ele será, e muito em breve, é um bem de luxo, devidamente taxado e reservado a um número muitíssimo menor de carteiras. Haverá, depois, um sucedâneo qualquer do bom chocolate para nós, gente simples e pequena. O verdadeiro, esse, haverá por certo de estar reservado aos donos disto tudo... Se os houver entretanto. Disto, não tenho agora qualquer dúvida. Qual extinção, qual quê. O que há é um interesse em fazer dele uma coisa pouco acessível, um prazer esquivo, um deleite de elites. O resto, contente-se com o sucedâneo. Sou capaz até de pensar numa grande fábrica de sucedâneos para a gente miúda. Outra, muito mais distinta, muito asséptica, cheia de Oompa-loompas, atarefadamente guardando e apurando o Chocolate. Nós teremos apenas acesso a aparas medíocres; ou a pequeníssimas porções tiradas em rifas ou ganhas em lotarias ou euromilhões. No limite, far-se-á dele, do néctar de Quetzalcóatl, o próprio euromilhões, transacionando-se não moedas mas barras do precioso material, guardando a Fazenda, como convém, vinte por cento dele.
Médicos e terapeutas desvelar-se-ão na defesa e apregoamento das qualidades do Chocolate; dos seus benefícios; do paladar libertador de emoções. Os programas das manhãs e das tardes hão-de ser interrompidos para se publicitarem aqueles magníficos quadradinhos, em vez de comprimidos de cálcio, cogumelos, vitaminas e toda a espécie de coisas irrelevantes que agora fazem crer às pessoas serem milagrosas. As Chocolaterie tornar-se-ão todas gourmet e a ASAE velará pela qualidade com ferocidade canina. Padrões altíssimos de fineza, textura e cremosidade rivalizarão com as tabletes da Vaca lilás. A própria Vaca lilás será vigiada noite e dia para evitar o contrabando. E, enfim, os banqueiros, hão-de controlar os spreads e as taxas de juro desse bem escasso, distinto e de elite, que só a poucos, donos disto (quase) tudo a ele poderão aceder. Comer um quadradinho será tão sublime que um êxtase o não poderá descrever. Haverá, por certo, experiências místicas.
Bem diferentes, seguramente, daquelas que por estes dias vamos tendo. Nada místicas.
Das coisas mais extraordinárias nesta tipologia social que construímos e na qual vivemos (a importância de dizer isto é para que se perceba que a culpa do que está bem ou mal é dos intervenientes – como o direito de antena - e não doutros: somos nós que fazemos a sociedade; ora se está mal, de quem será a culpa?) é a efemeridade. Parece estranho. Mas assim é: a característica mais vincadamente distintiva da nossa sociedade é o ser efémero. Há outras, evidentemente. Mas gosto desta. Veja-se, por exemplo, a comédia parlamentar. Perdão: a vida parlamentar. Um theatrum, no verdadeiro sentido latino da palavra. Ali se põe e contrapõe; se diz e desdiz; se aprova para logo depois se desaprovar; se governa para melhor desgovernar. E neste jogo, vulgarmente conhecido por política, se vai mexendo na vida daqueles que é suposto representar, mas que, evidentemente, não representa. Será, por ventura, essa a falácia do nosso sistema democrático, cuja única representação é a dos partidos que lá têm assento. De vez em quando, porém, este jogo de cavalheiros azeda. A questão é simples: todos opositores e, no entanto, todos cooperadores... Do sistema; das suas falhas e lacunas; das suas incongruências... Quase todas bem conhecidas e estudadas e cirurgicamente mantidas. A razão de ser disto é a extraordinária dificuldade na absoluta rectidão e na recusa peremptória e completa de qualquer benesse. Lamentavelmente, precisaríamos de santos na casa do parlamento. Ainda assim, há um mínimo de entendimento cavalheiresco para que as coisas possam ter uma aparência de funcionalidade. Que acontece, então, quando há um desacerto nesta bem oleada engrenagem de aparências? Uma das coisas é problemas de microfones, numa cena digna de qualquer cresce por este país fora. É em momentos destes que me pergunto quanto tempo mais viveremos apática e comodamente incapazes de dizer basta... Ou então, aos meus olhos mais plausível, quanto mais tempo até pequeníssimas coisas serem alteradas de modo a limitar a liberdade de ver cenas daquelas... E continuarmos, cegamente (e aí já pateticamente) a crer na bondade de um sistema altamente permeável à corrupção e das pessoas que nós, bons votantes (e fiéis) lá colocámos... Digo colocámos porque virá o tempo, talvez quando o Chocolate for controlado pela finança e for transformado num bem de luxo e retirado à pequenez comum (até de espírito) em que vivemos, em que seremos dispensados deste aborrecimento que é votar e ter de escolher pessoas novas, quando as que lá estão servem perfeitamente. Despoticamente nos será dito; servilmente nos parecerá certo. Nascem assim as coisas déspotas. Um pouco como a mística do Chocolate. E em vez de deputados serão Oompa-loompas atarefados a legislar na nação, apenas, eles próprios, para servir fielmente aqueles iluminados que, enfim, escolhidos pelo seu superior chico-espertismo, nos levarão à mais absurda porém alegre miséria. É aqui que entra a efemeridade: esse pequeno número de luzeiros há-de continuar a espremer este modelo social de tal forma que irão caindo, em redor, as vítimas. Será, então, a única forma de manter as massas obedientes e conformes: dar-lhes bodes expiatórios. Fazer-se servir de alguns mais afoitos, que se acham comensais na chico-espertice; sugá-los até ao tutano e usá-los para serem eles os maus da fita. Serão então lançados às vociferações mundanas das massas. Muito raramente, porém, cairá em descrédito um verdadeiro mau da fita. A razão disso é porque, dentro daquele pequeno círculo, há-de haver sempre o pecado da inveja. E o que este faz é querer apoderar-se do bem do outro. Então, desprovido da sua aura de poder, cairá em desgraça. Com ele arrastará outros. Cortar-se-ão cabeças para contentar as miudezas, gritar-se-ão escândalos; agitar-se-ão os ânimos para amainar os pequenos e tudo seguirá igual.
Tudo começa, por estranho que pareça, com uma guerra de microfones; deputados que se portam como crianças e problemas de subvenções a ex-deputados. Junte-se uma boa multidão de gente inerte e pouco atenta e, não tarda, os países estarão a ser novamente governados por ditaduras e o chocolate estará a ser controlado pelas agências de rating, que são, na verdade, quem governa os países, como se sabe. Quem não sabe, que abra os olhos. Se queres comer chocolate, abre a pestana.