segunda-feira, 7 de setembro de 2009

A blusa cor-de-rosa

À minha frente no metro sentou-se uma senhora, toda ela muito cor-de-rosa, agarrada a uma mala enorme, da qual foram saindo bolsas e bolsinhas, todas elas também muito cor-de-rosa, enquanto a senhora ia passando em revista a diversa parafernália que a acompanhava. Os telemóveis, o mp3 e outro aparelho que nem percebi o que era, todos eles muito embrulhados em bolsinhas, cor-de-rosa com bonecos.
Depois passou outra senhora, para o lugar da janela, muito sóbria, que puxou de um livro e se pôs a ler, de pernas muito juntas e costas bem direitas, como convém às senhoras muito sóbrias. Tive pena de não conseguir perceber o que lia. Gosto de ver o que os outros lêem.
A senhora cor-se-rosa foi passando os apetrechos em revista, a senhora sóbria as páginas, e eu os pensamentos. A viagem chegou ao fim para mim e não cheguei a saber se os aparelhos estavam ou não em condições ou se o livro era interessante. Saí do metro ainda com os pensamentos. Vinha assolado com as notícias da tragédia nacional que foi a suspensão do jornal de sexta-feira da TVI. Quando me disseram até pensei que tivesse havido uma catástrofe, que tivessem assassinado alguém importante ou que tivesse sido um terramoto… Ouvi os telemóveis todos a tocar e as pessoas todas a dizer “ a sério?”; “tens a certeza?”, “que grande bronca”… etc. E eu pensei: “uma calamidade!”
Era mesmo a sério, com toda a certeza e foi uma bronca. Suspenderam, assim, sem mais, o jornal de sexta-feira. Como será possível a este país sobreviver sem aquele verdadeiro espaço informativo tão sabiamente conduzido pelo ícone, agora martirizado, do jornalismo português? Como poderemos olhar para a TVI e ver na sexta-feira um noticiário que não é o Jornal de Sexta? É como se se atingisse a alma lusa naquilo que ela tem de mais seu! Como se se abanassem todos os pilares da democracia! Como se estivessem periclitantes, quase a ruir, os próprios fundamentos do País!
Depois disse de mim para comigo: Espera. Mas qual catástrofe? É só um formato televisivo?... Ou não?
Pois claro que não. Tive logo a resposta na catadupa de entrevistas e comentários e notícias na TV: era a liberdade de imprensa! Era ela que tinha sido ultrajada. “Ah”, disse eu. A liberdade de imprensa. Será?!...
Mas de quem é a culpa afinal? Do governo, pois claro. E foi ouvir um ror de gente a dizer que o Sócrates é que tinha a culpa… Como se não fosse de esperar que assim que o marido da protagonista saísse da TVI, arranjassem uma maneira de arrumar também a senhora… Como se a administração espanhola não tivesse já antes – muito antes do agora célebre arrufo entre o Senhor Primeiro Ministro e a Senhora Moura Guedes – afastado a aclamada pivot dos ecráns… Como se não fosse um verdadeiro espectáculo triste aquele formato de noticiário… Como se não tivesse bastado o Senhor Bastonário ter perdido as estribeiras e destratado a senhora em directo e ao vivo e a cores… Pois se ela tira a paciência a um santo, quanto mais ao engenheiro, somente homem, que era, claramente, alvo primário e primeiro? Goste-se ou não do homem, aquilo era demais… Goste-se ou não do homem, a par da liberdade de imprensa acautelou-se o respeito institucional pelo cargo do homem?...Qual rigor informativo… Qual mostrar as coisas como são na realidade… Deixemo-nos de aforismos. Num dos últimos programas que vi, antes das férias – que eu honestamente, já adivinhava serem permanentes – o jornal da sexta elegeu o Primeiro-Ministro para tema todas as notícias – todas – durante aproximadamente 40 minutos… está tudo dito. Depois era ver o rigor informativo a induzir o espectador nesta ou naquela interpretação, utilizando deliberadamente esta ou aquela expressão que ligava inequivocamente o que se estava a dizer ao senhor engenheiro. Isto também tem um nome. E não é rigor… Gostava de ver noticiários em que os jornalistas se inibissem de opinar. Mostrar a notícia, ela mesma. E não embrulhá-la em bolsas cor-de-rosa ou de outras cores, conforme o que se goste. É difícil, sim. Mas por isso é que é um trabalho para o qual nem todos estão talhados. Assim escusava de ter visto o repórter de campo da TVI tão empenhado em implicar o Primeiro-ministro na decisão da empresa que deixou escapar duas frases absolutamente inadmissíveis, do meu ponto de vista: “José Socratés a tentar justificar que não teve nada a ver”… “ a virar a questão exactamente ao contrário”… Pergunta: é ao repórter que cabe interpretar o sentido? Ou ao espectador? O repórter reporta ou comenta?...
Enfim. Depois os políticos… Nada como um pseudo-escândalo para animar uma campanha eleitoral… Voltei a pensar na senhora cor-de-rosa. E pensei na parafernália das bolsas. Somos um país pequeno. Ou “piqueno”, como agora soi dizer-se, por mercê doutra senhora, também ela muito sóbria. E de gente pequena também. E estreita de pensamento. Então o país está mergulhado no caos quase completo; sem perspectivas de futuro para grande parte das pessoas da minha idade (eu incluído); sem emprego; com salários que nos fazem depender dos pais e dos avós e dos antepassados até à quinta geração; com problemas de segurança, de imigração, de justiça e de mentalidades – sobretudo de mentalidades – e os políticos entretém-se, até à exaustão, até ao cúmulo do humanamente aceitável, com um programa de televisão? Mas que é isto?
Senhores!... Que é isto?
Qual liberdade de imprensa qual carapuça… Mas quando é que se vai prestar atenção ao fundamental em vez de mascarar as coisas com o acessório?
Ponham-se lá todos direitos, muito sentadinhos como convém, em vez de andarem aí na beijoquice nas feiras, a embrulhar as pessoas em bolsas, e comecem a ver se os vossos aparelhos funcionam. E decidam lá de cor vai ser a blusa. E parem de mandar recados uns aos outros… Não vos enoja isso?...
Quem me dera saber o que ia a ler a senhora sóbria. E parar de ouvir disparates.