Fui, na minha volta diária post
prandium, cidade fora. Gosto de passear, curiosamente prazer
raro. Não sou comunicativo. Sou observador. Dentre os meus muitos
defeitos, conta-se o perder-me em pensamentos no meio da rua, por
qualquer coisa que vejo ou por alguém que passa e me leva a pensar.
É assim quase todos os dias. Se pensar me desse sustento, estaria
rico. Lamentavelmente não dá. Atravessei o jardim, numa tentativa
muito frugal de mitigar saudades da natureza, sendo embora ela tão
espinhosa para mim, por causa das alergias primaveris. Pouco depois,
reparei numa mulher que se me ultrapassou, porque o meu passo de
passeante certamente não se coadunava com o que quer que fosse que a
levava a andar na rua. Reparei nela não por ser especialmente
bonita, mas por ser uma senhora fina, considerei, pela maneira como
andava e os saltos, não muito finos, assentavam no chão sem aquele
ruído exagerado de muitas outras senhoras que têm necessidade de se
fazer notar. Tinha o cabelo armado numa cabeleira digna da “mulher
do senhor ministro” e as calças,largas como convém a senhoras
duma certa idade, eram pretas, mas de um tecido que não sei dizer
qual. Infelizmente, não sou versado em tecidos. Mas aquele
achei-lhe graça porque parecia luzir. Poderia, talvez, perguntar a
alguma amiga que me instruísse naquele tecido. Mas não creio que
nenhuma das minhas amigas seja também conhecedora dos tecidos.
Claro, poderia perguntar à senhora com quem, por um capricho vil da
vida, sou obrigado a conviver diariamente em casa do meu Pai, e que
diz de si própria ser costureira. Mas a não ser que o canal dos
brasileiros da TV cabo tenha algum programa sobre tecidos que luzem,
ela provavelmente dir-me-ia qualquer coisa extemporânea, mesmo que
não fizesse a mínima ideia do que está a falar. E eu ficaria na
mesma por esclarecer a curiosidade sobre o tecido preto que luz. Certa
vez, ainda não há muitos dias, estando no café, na rubrica de
culinária de um dos programas da manhã que ocupam as televisões e
as mentes, o chef mostrava um tapa qualquer feito de camarão e
outras iguarias, embrulhados em pão sem fermento, à maneira dum
wrap. O meu Pai admirou-se com aquilo, mas ela elucidou de
imediato que aquilo era o que os ingleses comiam. O cozinheiro do
canal brasileiro estava farto de mostrar aquilo. Aparentemente, o
cozinheiro desse canal sabe de tudo, até mesmo comida alentejana.
Pergunto-me para que quererá uma mulher nascida no Alentejo aprender
cozinha alentejana com um cozinheiro brasileiro. Eu ri-me para
dentro, tanto quanto a minha delicadeza mo permitiu, pensando de mim
para mim que estou contente por a senhora não ir a Inglaterra. Se
for, terá uma grande desilusão ao descobrir que os ingleses não
comem rolos de pão ázimo com camarões e alface. Não é culpa de ninguém a ignorância. Mas irrita-me, a ponto de subir paredes, a
presunção de saber, mesmo quando se não sabe. É quase blasfemo,
penso.
A senhora das calças pretas que luzem
e cabelo bem armado em laca ia a caminho do banco. Mas, por desgraça,
o edifício tem várias janelas e a senhora fez menção de entrar
por uma delas, pensando ser a porta, quase quase esbarrando com a
cabeça dentro da cabeleira armada no vidro enorme. Deu-se logo conta
do engano, até porque um cartaz com uma menina de sorriso pepsodent
a fazer reclame a um produto qualquer do banco, não deixa margem
para enganos. Ali não era a porta. A porta era ao lado, aliás muito
idêntica à vidraça do lado, mas sem o cartaz da menina e com uma
outra diferença, para além do óbvio puxador: tinha um botãozinho
com um cartão vermelho bem visível, a dizer “carregue aqui para
abrir”, mas que ela só viu depois de dois valentes puxões no
puxador e de a porta não ceder. Ele lá pressionou o botão, algo
atrapalhada, a olhar pelo canto do olho, não fosse alguém ter visto
aquelas figuras. Eu vi, outros possivelmente também, mas não sei se
alguém ficou a pensar naquele complot contra a finesse.
Mas eu fiquei. Tenho este defeito, de me deixar ficar a pensar nas
coisas mais absurdas. E até esbocei um sorriso.
Não tive tempo de pensar muito, sobre
esta correlação da finesse e da atenção com que se anda na rua
porque, nem dois passos adiante, reparei num rapaz que atarefadamente
se esforçava por mudar um pneu de um carro. Não sei dizer que carro
era, porque nem me pareceu um carro nem um jipe, mas antes uma
mistura bizarra dos dois. Também não sou versado em carros, o que
acrescenta mais um aos meus defeitos. Poderia, certamente, pedir
ajuda aos amigos versados no assunto, mas o tempo que me levaria a
explicar como o carro era e a infinidade de pormenores que me seriam requisitados para ajudar à identificação do veículo – dos quais
nada sei, porque embora observador, centro-me no que me desperta a
atenção, como por certo acontece a todos os observadores –
levá-los-ia a exasperar, e a mim na mesma à ignorância do veículo.
Sei que era feio, para o meu gosto, embora fosse visível que o rapaz
gostava do carro, pese embora o seu ar de desânimo pelo pneu furado.
A acompanhá-lo estavam três mulheres, uma mais velha e duas mais
novas. Muito direitas, de braços cruzados. Talvez a mais velha fosse
mãe. Ou mãe de uma das raparigas se alguma delas fosse namorada, e a outra irmã ou amiga. Ou
talvez não fosse nada disso. Pouco importa. Voltei a sorrir, porque
não pude evitar um pensamento sobre a igualdade dos géneros. Digo
géneros, porque dizer igualdade dos sexos é estúpido. Não se
pode querer que seja igual uma coisa que é intrinsecamente
diferente. E no caso, até anatómica e morfologicamente diferente.
Igualdade de sexos é estúpido. E a mim a estupidez irrita-me. Tanto
ou mais que presunção. Claro que agora os géneros, que têm
acompanhado a história da humanidade numa dualidade complementar,
também podem agora ser polémicos, porque parece estar a surgir a
ideia de ser necessário um terceiro género, o “T”, para
designar pessoas que mudam de sexo. Parece que a burocracia que tais
situações exigem demora o seu tempo, e isto serviria para evitar
certas confusões que podem, até legitimamente, instalar-se. Pena
ser também uma ideia estúpida. Ninguém pode ficar num estado
provisório. Ou é M ou é F. Sem mais. Mesmo que mude de sexo. Antes
era de um sexo, com o seu correspondente género, agora de outro.
Gostar de complicar, numa tentativa de agradar a gregos e troianos,
não chegará a lado nenhum, senão à confusão. Uma coisa não pode
ser e não ser ao mesmo tempo. É simples. E o simples deveria ser
sempre a escolha. Mas se em vez de se pôr a tónica na igualdade de
sexos, se pugnar para que as pessoas, independentemente do seu sexo ou género, sejam vistas como iguais em
direitos e deveres, então talvez sim, talvez se chegue a qualquer lado.
Embora sejamos humanos há tanto tempo que já não deveríamos ter
de perder tempo e pensamentos com estas coisas... Não é óbvio que
somos iguais?... Que ridículos que somos às vezes. Não em sexo.
Não em género. Isso não pode ser. Se alguém quer que seja, então
que ninguém se queixe porque falta cavalheirismo e não há quem
abra uma porta, puxe uma cadeira ou mude um pneu. Mas se a questão
são direitos (e deveres naturalmente. Mais uma dualidade
inseparável), então pode-se à mesma assistir a rapazes atarefados
com pneus furados e mulheres de braços cruzados como se nada fosse,
sem que haja atentados à igualdade.
Ia
entretido com estes pensamentos quando reparei em enormes tufos de
papoilas, nas ruínas do que foi um hotel. Só resta a fachada,
estacada. Por detrás, no que foi dantes o hotel, há agora tufos de
papoilas colina acima. Pensei que se fossem cravos vermelhos poderia
ser a primavera dum novo 25 de abril... Mas já não quis afundar-me
nesses pensamentos. A política consegue irritar-me quase tanto com a
estupidez ou a presunção. Deixei-me antes ficar só de cara voltada
ao sol de fins de maio, que traz já promessas de estio.