terça-feira, 21 de dezembro de 2010

O fim do açúcar

21 de Dezembro de 2012. Estamos precisamente a dois anos da data do final do Calendário Maia. Resta saber final de quê... Parece que, na cultura maia, a data se refere ao fim do ciclo de vinte e seis mil anos em que nos inserimos. O mistério está precisamente na razão pela qual o calendário maia tem um fim. Sabemos pouco das razões deles.
A par disto, a história está cheia de profetas e adivinhos, mais ou menos documentados (e acreditados), todos a apontar para a mesma data ou lá perto. Parece que os egípcios também disseram qualquer coisa sobre isto. Os babilónios dos zigurates também. A cabala hebraica. Nostradamus, claro. Para alguns estudiosos do assunto, até a Bíblia.
Não sou estudioso do assunto. Antes de mais, porque não sei a que fim se refere. O calendário maia tem um fim porque a data marca o fim da vida da terra? O fim da humanidade? Ou o fim do tempo? Ou será apenas que marca o fim dum ciclo e o começo de outro? E este fim trás o quê? Uma catástrofe? Um conjunto de calamidades que exterminarão a vida na terra ou as coisas como as conhecemos?... Não sei. O senso comum manda-me acreditar que a data pode marcar um fim. Da concepção de tempo como ele era concebido pelos maias. Ou da vida como a conhecemos... Ou mesmo até deste período de existência da Terra, consequência das adaptações que o planeta precisa de fazer em resposta às alterações que nós próprios provocámos. Isto é o lógico. A mim parece-me que é. Seguramente não marcará o fim in abrupto, como se agora fôssemos e amanhã tivéssemos deixado de ser. Como se a vida tivesse um relógio biológico que repentinamente fosse desligado.
O problema com as profecias é que, se nos esforçarmos o suficiente, ela dizem aquilo que queremos que elas digam. Mesmo que o façamos inconscientemente ou sem malícia. É exactamente por isso que, qualquer exegeta sabe, o princípio básico e fundamental para a interpretação de qualquer texto é o contexto. Também nos textos das profecias. Sobretudo neles, tanto mais que, muitas vezes, a linguagem utilizada segue um estilo próprio, que chamamos linguagem apocalíptica. Tenho sempre medo de usar esta expressão, por causa do equívoco que provoca. Ainda assim, corro o risco, elucidando que não se trata aqui do livro da Bíblia propriamente dito. Não é a isso que me refiro, mas sim à linguagem, ao estilo utilizado para escrever ou descrever profecias. A Bíblia está cheia desse estilo. Mas existe em quase todos os textos de índole profética, sobretudo quando pretendem fazer certas premonições ou falar de alguns assuntos em particular. Trata-se do uso de números, animais, palavras, figuras de estilo, todos usados de forma simbólica, de tal modo que, no verdadeiro sentido do texto (aquele que o autor lhe diz dar, e que na exegese chamamos intenção de autor) nada é o que parece. E é precisamente aqui que está o problema das profecias. Tire-se uma frase do seu contexto, e será muito fácil encontrar nela a data do fim do mundo. Pode ser perigoso isto. É fácil descontextualizar, e com as melhores intenções. E, no entanto, a data existe. E, mais ainda, marca um fim. Um terminus. Para eles foi-o certamente. Lamentavelmente, finaram-se eles muito antes do calendário chegar ao fim. E também não foram muito claros quanto ao que queriam dizer com esta coisa de fim. Ou não foram, ou nós não sabemos ler o que deixaram com a devida clareza. Sabemos pouco das razões deles.
Quanto a mim, vou esperar para ver, se daqui a dois anos, a terra se consome em chamas (e nós com ela, e portanto não verei coisa nenhuma) ou se a polaridade da terra se inverte, ou se haverá um cataclismo doutra espécie, ou se restarão apenas as baratas. Ou, quem sabe, se será apenas e maravilhosamente o início duma nova fase. Dum novo ciclo. Um novo Génesis. Estarei directamente em contradição com a Bíblia, uma vez que Deus prometeu a Noé que não mais destruiria a humanidade, ou seja, que não haveria um segundo dilúvio. Não me parece que Deus tenha mentido. Já os homens... Ainda assim, nada impede que, sem dilúvio, não se possa começar de novo. E Deus sabe o quanto precisamos dum novo começo. Deus sabe. Os homens é que não.
É estranha a nossa sociedade. Há muita gente a criticar a nossa forma de viver em sociedade. Eu incluído. In extremis, estamos a criticar-nos a nós próprios, porque nós é que somos a sociedade e somos nós que a construímos e a fazemos ir nesta ou naquela direcção. E, no entanto, não somos capazes de a mudar. A sociedade, criação humana, tomou conta do seu criador, a ponto de ser ela, a criada, a reger o criador e não o criador a dar-lhe o sentido e a direcção. Naturalmente que isto tem consequências. Todas bem assimiladas e aceites, desde que os benefícios sejam maiores que os custos. Haverá sempre uma franja que terá de pagar um preço de sangue para a engrenagem social não parar. E para nutrir as gordas e abastadas camadas e estractos em que decidimos dividir-nos a nós próprios. Perdurará pela história dahumanidade adiante a lacónica e triste sentença de Cristo: "Pobres, sempre os tereis convosco".
Esta estratificação social, soube recentemente, não é exclusiva da espécie humana. Muitas outras espécies animais diferenciam os seus indivíduos em ordem a uma escala social. Isto não é novidade para mim. A novidade é que, em algumas, particularmente no mundo primata, essa diferenciação assume contornos de casta, de classe. Achei isso demasiado... humano. Não vamos pensar que as espécies, por diferenciarem os indivíduos são segregadoras. Mas até podem ser. Cruéis mesmo. Mas a diferenciação tem o objetivo de escolher os mais aptos para a continuidade. E eventualmente, os que este ano não são aptos, poderão vir a sê-lo amanhã, não estando, portanto, vedada uma certa ascensão social.
Dirão: mas na sociedade humana é exactamente a mesma coisa! Diferenciar para escolher os melhores e mais adequados. Sim, é verdade. Mas se houver um mendigo que consiga, digamos, escapar à mendicidade e fazer sucesso, que dirão? “Ah, teve sorte!” Mais ainda: “olha, lá vai o mendigo com a mania que é rico”. Chama-se a isto preconceito. Esta é uma noção tipicamente humana, que não se verifica na diferenciação social das outras espécies animais. Quanto às outras espécies sei pouco das razões, fora esta da sobrevivência do mais apto. Das nossas, humanas, sei ainda menos.
Imaginemos mais. Imaginemos que falta, digamos, o açúcar.
Quase no Natal, tudo atarefado com tantas compras e coisas para fazer, esquecendo por uns dias esta coisa da crise (que parece que é de 2008, embora eu ande a ouvir falar dela desde que me tenho por gente), já tudo pronto para marcar umas fériazitas e...zás. Falta o açúcar.
“Não! Que é isso? Um disparate. Há montes de açucar” – vem logo um senhor do governo dizer, muito incomodado a ajeitar as polainas e a sacudir a cinza do charuto. Vai olhando de soslaio para os sapatos de verniz e para o relógio de bolso, por cima da barriga farta, desesperado com aqueles boatos, capazes de arruinar a almoçarada da rapaziada do clube. “Mas, senhor”... “Senhor nada. Há açucar às toneladas homem! Veja se toma tino no que diz. As pessoas ainda acreditam. E depois? Uma crise. O descalabro!”
E assim foi. Acabou-se o açúcar. Seja porque não havia mesmo, seja porque parece que só temos licença dos amáveis senhores que governam o nosso clube europeu para importar a matéria-prima de que se faz o seráfico ingrediente (só importar, note-se. Produzir jamais!), seja porque os senhores que vendem a matéria-prima querem fazer subir o preço, ou antes a querem vender aos senhores do biocombustível, que a pagam mais cara, seja lá por que razão foi, o certo é que se acabou. Nada de açúcar. Nada, nada. Abaixo as rabanadas, o arroz-doce, os sonhos, os pudins, as azevias, o bolo-rei. Fim às filhós.
O senhor do governo ficou atarantado. E nós ficámos sem doces. Se era este o fim da profecia, chegou dois anos adiantado. Fosse como fosse, doces, nem vê-los. Toda a gente se lembrou da crise outra vez. Ficou tudo cinzento outra vez. Foi preciso uma operação de charme a convencer as pessoas que, afinal, era falso alarme. “Estão a ver, seus patetas! Muito açúcar! Voltem aos doces. Chega de conversa fiada”. Ah, a propaganda...
Só tiro uma lição da crise do açúcar (nunca pensei escrever sobre uma crise do açúcar): estamos demasiados nervosos. E descrentes. Do açúcar, do governo, da sociedade, da vida. Os ingleses têm uma palavra gira para isto: dizem jumpy. É isso mesmo. Estamos todos jumpy. Irrequietos, incomodados, numa calmaria disfarçada por pudins e rabanadas. E infelizes. Muito infelizes.
Gostava tanto de ver o fim. O fim das mentiras, dos logros, das desigualdades sociais, dos esquemas, dos compadrios, das coisas podres que matam e corrompem o meu país a partir de dentro. O fim das pessoas a pedirem esmola. A quererem trabalhar e a não haver quem lho dê. O fim do faz-de-conta. O fim do tempo dos cães de loiça. O fim da hipocrisia.
Mas ainda faltam dois anos. Só espero que não se tenham enganado nas contas... E que já tenha começado, há uns anos bons, mais um ciclo.
Feliz e doce Natal.
Bom 2011, tanto quanto possível. Mesmo que seja com pouco açúcar.

sábado, 30 de outubro de 2010

414

Acordei com o ping-ping da chuva. Esbocei um sorriso ensonado e enrosquei-me o mais que pude, para me deixar ficar a ouvir a chuva a cair. Não deve haver nada que me contente mais. Fiquei assim até a preguiça me permitir, antes de enfrentar o dia. Mais frio do que esperava. Ainda assim bom.
Gosto de dias frios.
E de ouvir a chuva na cama.
Comecei a pensar em marmelada e geleia e broas de mel escaldadas. Coisas boas. Estamos nos Santos. Quando eu era pequeno, ia mais os amigos da rua de porta em porta pedir os “santinhos”. E lá nos davam um punhado de castanhas, romãs, rebuçados, e às vezes umas moedas de 5 escudos. Regressávamos a casa com aqueles pequenos tesouros, que nos iriam entreter por uns dias, juntamente com a marmelada feita à poucos dias, a geleia e as broas de mel. As coisas eram mais simples, e não havia Halloween. Nem sequer sabia o que isso era. Lembro-me de ouvir falar disso nos primeiros anos da Secundária, numa aula de inglês. Alguns colegas já sabiam o que era. Eu fiquei a pensar que era matarroano por nem sequer ter ouvido falar da coisa. Ainda assim achei que o halloween era uma coisa disparatada. Mesmo que pedir os santos ou andar pelas ruas mascarado de bruxa, fantasma ou duende tivessem o mesmo objectivo: arranjar doces.
Era pobre nessa altura. Lembro-me que só tinha um par de sapatos. Que as refeições eram quase sempre uma sopa ou então arroz com qualquer coisa. E que a minha Mãe, discretamente, de vez em quando não comia “porque não tinha fome”. E que muitas vezes fui comer a casa dos meus Avós, a minha verdadeira Casa. Ainda assim, estava rodeado pelas pessoas de quem gostava, podia correr na rua, passar as tardes no campo depois da escola, comer muitos doces e mimos trazidos pela Avó e pelo Avô. Só por causa disso, não era até nada pobre. Mesmo só com um par de sapatos ou com meias muitas vezes remendadas ou com calças de bombazine com as bainhas vincadas a várias alturas, uma por cada vez que a minha Mãe as arranjava para durarem mais um tempo, ou com camisolas fora de moda cheias de borbotos. Mas as coisas eram mais simples.
Pûs-me a fazer a marmelada e a geleia, pensando que dantes era mais simples. Passaram quase trinta anos desde estas memórias. Lá fora ainda se ouve o ping-ping. Depois ri-me de mim mesmo, com a cozinha da casa, onde antes havia as pessoas de quem gostava, agora vazia só comigo, cheia de tachos e panelas. A minha Mãe sempre dizia que eu era muito bom a fazer doces e muito bom a desarrumar tudo. O que não deixa de ser trágico, porque fazer os doces é muito divertido. Limpar e lavar tudo não. Ri-me. Porque dantes, quando pedia os santinhos, era pobre. Hoje, que já não peço – nem sei sequer se os miúdos por aqui ainda pedirão – continuo a ser pobre. Neste sentido, é uma tragédia. Nada mudou para mim. A não ser o estar mais pobre. Faltam-me as pessoas.
Há dias, quando se anunciaram as medidas de corte do Orçamento de Estado para o ano que vem e as pessoas cairam na relidade de que estamos – não é o país, somos nós – a viver há décadas acima das possibilidades e do que produzimos, vi montanhas de projecções, cenários e múltiplas reportagens sobre a vida dos republicaníssimos portugueses. Estava já enjoado de tantas más notícias. Já me bastam as minhas. E a cada dia basta o seu mal. Fui assombrado, outra vez, pelo “pobres sempre os tereis convosco”. Esta inevitabilidade incomoda-me. Por causa da injustiça, da desigualdade, da sensação de impotência. No meio das reportagens alguém disse que estava preocupado porque depois de um apurado estudo se concluiu que metade da população portuguesa não poupa. Outros que se estima que serão dois milhões os portugueses pobres, porque vivem com menos de 414 euros mensais, ou então porque não conseguem fazer duas refeições de carne por semana. Não sei qual é o critério mais preponderante. Ou como se chega a estas conclsões. Ou porque razão hão-de 414 os euros que separam os pobres dos remediados. Que mal tinham os 415? Ou já agora os 500, que são, para a grande maioria das pessoas da minha idade, atirados para call-centers e caixas de supermercado, com um diploma e um sorriso, o rendimento mensal com que a nossa economia nos brinda. Sei-o de facto e na pele. Não por estudos complicados. Gosto das coisas simples. Parece que há um problema qualquer com a produtividade. E portanto, olha, temos de contentar-nos. Afinal, estamos acima da pobreza. Mas o senhor que estava preocupado porque os portugueses não poupam não perguntou porque razão não poupam eles. E o senhor das estatísticas não explicou o que se está a fazer para acudir aos dois milhões. Nem o senhor dos estudos demostrou a razão dos 414 ou das duas refeições de carne. Ninguém, mesmo ninguém, falou de porque é que se chegou a esta situação. Ou de porque é que vivemos em crise desde que me lembro e não só agora... Alguém falou da correlação entre salário-produtividade-motivação. Mas ficou abafado pelas estatísticas. Depois ainda perdi tempo a ir ver o tal site de que toda a gente fala, onde se podem ver as despesas do Estado. Digo perder porque, realmente, parece-me que vivemos cada vez mais num país fantástico, muito longe da Utopia, em que as pessoas e as realidades estão alheadas umas das outras. O problema é que os dois milhões já não serão apenas dois. Já serão mais. E o republicaníssimo país vai brilhando, nas festas e jantaradas, enquanto decorrem os jogos de bancada que vão entretendo os políticos, completamente desacreditados, concentrados nos corredores e a anafar os lenços de seda e as cambraias e a polir as fivelas de prata, enquanto o povo vai raspando o fundo aos tachos. O país estava um caos antes da revolção salvadora. Ficou pior, porque os grandiosos mentores do novo regime andaram a fazer cair governos atrás de governos, como papagaios à cata de poleiro. Continua mal. E os senhores do regime péssimos. E com uma queda para a novela e o drama, que ronda o insulto. Até quando os brandos costumes tolerarão o status quo?...
A mim, parece-me mais simples que nos contentemos com o que temos. Aprender a viver com o que se tem deve ser das coisas mais difíceis do mundo. Embora não pareça.
Tenho os doces prontos. Agora sento-me, mesmo sem ir pedir os santinhos, a lambuzar-me de marmelada e geleia. Fico a pensar nos 414, sem saber que mal teriam os 415. Pobre, afinal, sempre fui. Tinha era uma riqueza diferente, feita de pequenas coisas. E a pobreza não era a coisa mais importante.
Acordei com o ping-ping na janela. A marmelada está boa. E este ano, os senhores do regime não têm outro remédio senão ir pedir os santinhos. Mas hão-de ir mascarados de bruxas e fantasmas e duendes. Dantes era tudo mais simples. No tempo das fivelas de prata, de quem era a culpa daquilo ir mal? Do rei, claro está. E hoje, que não há rei para expulsar, de quem será?
Mas de quem será, de quem será?...
Dantes se calhar era mais simples.
Que bom que chegou a chuva. Já cheira a castanha assada. E a broas dos Santos.
Happy Halloween.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

O penso rápido

Quando eu era miúdo e fazia uma ferida, a coisa de que tinha mais medo era dos pensos rápidos. Não pelo penso. Mas porque ao tirar arrepelava os pêlos (lamento, escrevo à antiga... fora de moda, bem sei. Mas até eu me parece que já passei de moda) ou então por estar agarrado à ferida ainda não sarada, fazia doer. Pedia à mãe que arrancasse o penso muito devagarinho e que soprasse. E ela lá se punha, com infinita paciência, a soprar-me o joelho ou o braço, enquanto puxava o penso pêlo a pêlo, como se o sopro levasse a dor, por entre um ou outro grito de protesto meu, mas não sem dizer que se arrancasse depressa, todo de uma vez, iria fazer doer menos.
À medida que fui crescendo, a vida foi-se encarregando de me arrancar os pensos de forma rápida. Não me pareceu que doesse menos. Também não sei dizer se doeu mais. A dor é sempre dor. A diferença é que me dói tudo de uma vez, em vez de ser pêlo a pêlo. Mas a contrapartida é que me afunda sem apelo nem agravo, e só a custo volto à tona. Mas também não é mais fácil quando me arranca os pensos devagar. Primeiro porque não sopra na ferida, depois porque devagar, devagarinho me faz repetir a dor uma e outra vez, até não haver mais pêlos. Porque os pensos da vida não são como os rápidos, só aquela tirinha plástica... São enormes, compridos. Às vezes cobrem-nos de alto a baixo.
Com os meus Avós, está a arrancar-me o penso pêlo a pêlo. E dói de cada vez.
Devo estar realmente uma pessoas muito adulta, porque tenho a cabeça cheia de porquês... E uma pessoa pode afundar-se nos porquês. Também me apetece hoje perguntar outra vez “onde está o Deus”. Mas não sei se quero mesmo perguntar ou se é a tristeza que pergunta por mim. Olho para a vida como um sudecer de coisas e contecimentos, inexorável, sem piscar os olhos nem olhar para trás, indiferente aos apelos. Será o tempo que passa ou será a vida que passa no tempo? E os dois, num conluio, vão tirando, todos os dias algo.
A ideia da finitude nunca me meteu medo. A minha finitude olho-a como uma coisa normal da vida. Curiosamente, só me vem o porquê quando penso na finitude das pessoas de quem gosto. O terror de não poder voltar a tocar, a ouvir, a sentir o cheiro... Uma pessoa pode afundar-se nos porquês.
Hoje pus-me a olhar para a casa vazia dos meus avós, nesta fase mais debilitada da sua velhice. Há um sentimento estranho ali, de estarem e ao mesmo tempo não estarem. Vejo-os todos os dias. Estou com eles todos os dias. E, no entanto, hoje, pela primeira vez na minha vida queria não estar sozinho. E a única companhia que me serviria eram eles. Os três, na casa velha e branca, pequenina e quieta. Consigo ver-me ali, à hora de jantar, depois de comer, a brincar no corredor, junto à camilha, com o velho carro da polícia feito de lata, enquantos eles olham para mim e se riem. A minha Avó diz, como de todas as vezes, que não comi quase nada. O meu Avô responde que já como mais, vou comer a fruta com ele. Doeu-me muito. Não sei quantos pêlos a vida me arrepelou hoje.
Mas já descobri que, não importa quantos pensos a vida me ponha, vai doer sempre.

sábado, 18 de setembro de 2010

Bolachas com mel

Hoje apeteceu-me comer bolachas com mel.
Esteve quente. Gosto do final do Verão. Quente, ainda, mas a mudança vem já no vento, não tão seco. E apesar do dia quente, está um tempo típico de fim de Setembro, que a mim me faz já pensar no frio. Dou-me sempre melhor com o frio.
Não sei por que razão me lembrei hoje das bolachas com mel. Normalmente quando está calor não me apetece. Mas hoje apeteceu-me. O mel e a geleia. As bolachas e o chá. Cheirou-me a Outono. Mas não sei porquê.
Uma pessoa pode afundar-se nos porquês das coisas.
Talvez fosse por causa das folhas amarelecidas já caídas no chão. Ou da brisa mais fresca e húmida. Ou talvez fosse antes do mel. Ou da geleia. Ou de tudo o que a minha memória associa a isso. Fiquei preso por um bocadinho em recordações antigas da cresta do mel. De andar de fumigador em punho, como se fosse uma espada contra as atordoadas abelhas, que ao mesmo tempo me enchiam de pavor e de espanto. E de chupar o mel dos favos... Mas não sei porquê. Talvez por me lembrar do fim do Verão.
Dei por mim sem saber qual dos porquês chegou primeiro. Se o de não saber porque me apeteceram bolachas e mel, se o de pensar no Outono, se o de me perder nas lembranças da recolha do mel.
Uma pessoa pode perder-se nos porquês. Como se estivessem todos enleados, de modo que quando se chega a um, logo aparece outro.
Deixei-me ir nas memórias e logo mudei o pensamento para a vida, porque as memóerias são afinal como os porquês, todas enleadas umas nas outras, como se fossem elas fios delicados todos misturados no pensamento, que ora puxa por esta, ora por aquela. Na minha vida. Cheguei rapidamente à lamúria habitual do “porquê?”. Mas tive medo de me afundar nele, e não permiti que fosse maior que as memórias que me contentavam.
Há muitos porquês sem resposta.
Às vezes penso em mim próprio como uma fraude. Como se chama alguém que tem tudo para vencer e acaba, invariavelmente, por ser um falhado? Culpei a vida. Culpei os outros. Culpei as pessoas que amava. Culpei Deus. Depois culpei-me a mim. Nunca tive resposta para os porquês. Só acho tudo tão... injusto.
Pensar que os outros também sofrem não é um consolo. É apenas parte da realidade. E do mundo como ele é. A fome também é injusta. A doença... Quantos porquês há na boca de doentes incuráveis? Ou na de pessoas que descobrem ter uma doença que lhes muda a vida? Num certo sentido, até a morte é injusta, porquanto põe fim á possibilidade de viver e de se concretizar de cada um...
Sempre que na TV se fala de algo realmente chocante (uma tragédia qualquer, mortes, guerras, fomes) ouço o meu Avô dizer “por isso o velho Saramago estava sempre a dizer «onde é que está o Deus?» Não sei quem era o velho Saramago. O meu Avô fala dele com uma certa admiração. “Onde é que está o Deus que permite estas coisas?” Sei que de cada vez que o meu Avô dizia aquilo, os meus cristianíssimos ouvidos tremiam de indignação pela quebra do 2º mandamento... Arrepiava-me “o Deus”. Ele dizia “o Deus” para que não houvesse qualquer dúvida de que era a Deus que se estava a referir. Não sei se diz aquilo só como citação ou se é já ele a dizer com as palavras do velho. A vida tirou-lhe demais para que não haja nele também uns quantos porquês e uma vontade de procurar respostas. Não é um homem religioso. E não tem medo das palavras. Diz o que pensa, não que isso seja sempre bom, como sei de própria experiência. Mas ele próprio não tem qualquer problema em ir pedir contas a Deus.
Dei por mim também a pedir contas a Deus muitas vezes. E também não sei porquê.
Há muitos porquês sem resposta. Pelo menos os meus. Uma pessoa pode afundar-se neles se não se acautela.
Tenho de contentar-me com as bolachas com mel, mesmo sem saber por que lembrei delas. Seria das folhas no chão? Ou só porque é fim de Setembro?
Dei por mim a pensar nelas. E a lambuzar-me de mel. Mas não sei porquê

domingo, 25 de julho de 2010

A mesa velha

Em casa dos meus Avós há uma mesa velha.
Na verdade, há lá muitas coisas velhas. Mesmo as mais novas parecem estar embebidas pelo tempo que lhes faz companhia na velhice. Sempre que lá chego, aquela serenidade, só possível na muita idade, inunda tudo, e a mim também. Fico no silêncio, só a ouvir o tic-tac dum despertador vermelho, também já velho, a marcar os segundos. O relógio de parede da sala já não conta os minutos. Talvez esteja cansado... Os passos vagarosos e inseguros dos meus Avós são consonantes com aquela casa velha, velha e branca. Branca e muito serena, que a mim me seduz e completa.
Um dia, fui ajudar o meu Avô a cortar as pernas à mesa velha, para poder servir de apoio ao fogão da cozinha.
Ó Avô, a mesa ‘tá tão velha!
Ora, também eu sou velho.

Silêncio. E depois: é velha, mas para o que é, serve. Se eu atirasse fora tudo o que é velho, tinha que atirar tudo fora. E a mim também.
Agarrei-me à mesa com mais vigor. Ele de serrote em punho, num certo esforço.
A pouca idade faz-nos pouco sábios. A muita, mais sábios. Nenhuma novidade nisto.
Fiquei a pensar na sabedoria da mesa velha, dum verde desbotado, quase sem tinta no tampo, das paredes, do despertador vermelho,do relógio de sala, da cómoda, do guarda-loiça, já muito moderno, mas também velho.
Simpatizo muito com a mesa velha verde. E com tudo o resto. Tudo ali são memórias de muitas vidas vividas, muitas histórias. Tudo ali me lembra sempre qualquer coisa.
O meu Avô tem sempre coisas para contar. De como era dantes. Do que se passou. Do que ele passou. De como agora é diferente. E pior. A minha Avó, mais calada pela doença, fala menos. Mas de vez em quando também se lembra dumas coisas. Ali, sempre se aprende. Há sempre a memória. Falam-se das searas, das ceifas, do descamisar do milho, do malhar do trigo. Do tempo em que uma sardinha era almoço para três, com uma fatia de pão. Das saudades do cão a que o meu Avô chamava só “Rapaz”...
E toda a gente se governava. E vivíamos melhor – lamenta-se o Avô. E mais contentes... – acrescenta a Avó.
Trabalhar do nascer ao pôr do sol.
Não conheço nada dessa vida. Só sei da memória que me contam.
Fico outra vez no silêncio, mergulhado na sabedoria da velhice, a pensar na dureza da vida.
Lamento-me da minha. E sei nada da deles. Do que foi e das coisas por que passaram. E ainda assim, ali estão. Agora já quase só memórias, tecidas na muita idade. Mas perseverantes. Já parte do Tempo e a andar à frente dele simultaneamente. São uma centelha de esperança, sabendo o que custa a vida e sinal de que ela vale a pena.
Faz-me falta o silêncio. E a sabedoria das paredes brancas, do relógio, do guarda-loiça, da mesa velha... E dos meus Avós. Quedo-me naquele santuário. E sou grato por ele.
Feliz Dia dos Avós.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

O grão de areia

Menosprezamos o grão de areia. Aquela coisa pequena. Deve ser mesmo por ser pequeno. Parece que era rocha dantes. E o tempo – esse Mestre – fez dela areia e da areia grão. Pequeno.
Quando eu era pequeno a minha Mãe pôs-me o gosto pelos livros. Deu-me a ler uns livrinhos pequeninos, que religiosamente comprou todos os quinze dias até fazer 60 – era a Colecção Formiguinha. Guardo-a religiosamente. Num desses livros conta-se a história da princesa da ervilha, uma linda menina que se apaixonou por um bonito príncipe. A mãe do príncipe quis tirar as provas quanto à nobreza do sangue da pequena e pôs-lhe uma ervilha seca por debaixo duma resma de colchões. Na sua sabedoria de raínha, julgo eu, era teste suficiente saber que a rapariga dormira mal por causa da ervilha. Atestava a sua sensibilidade real. E assim foi, que a menina se levantou cheia de dores nas costas. Uma ervilha. Pequena.
Penso no efeito dum grão de areia na engrenagem dum relógio. Da ervilha seca por debaixo dos colchões. No efeito duma pessoa mal intencionada no meio de um grupo de pessoas. E penso na ampulheta sem o número certo de grãos (pequenos) de areia. Na história da princesa sem a ervilha... Como iria a régia senhora saber se a moça era ou não de sangue real, não fora aquela pequeníssima leguminosa? Ou num grupo de pessoas sem haver uma que lhe dê alma... E no que seria eu, pequeno, sem a Colecção Formiguinha, também ela feita de livros pequeninos....
Pequeno. Não damos importância ao pequeno. Não temos noção da sua importância. Queremos até ser mais do que pequenos. Ser sempre mais. Maiores!
Talvez não esteja mal isto...
Mas a vida? A vida, dom das coisas pequenas...
Que importância há-de ter um grão de areia? Ou uma gota? Que não mata a sede a ninguém, mas faz transbordar a água do copo?
Dom de coisas pequenas. Feitas de coisas pequenas. Nascida de coisas pequenas. E nós a querer ser somente grandes!... Só grandes, sem nos lembrarmos que a rocha era grande antes de ser areia. E grão. E que os grãos, juntos são muita areia e o Tempo os voltará a compactar em rocha.
A vida, Dom de coisas pequenas.
Ámen.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

In memoriam

"Os cães rodearam-na, farejam os sacos, mas sem convicção, como se já lhes tivesse passado a hora de comer, um deles lambe-lhe a cara, talvez desde pequeno tenha sido habituado a enxugar prantos. A mulher toca-lhe na cabeça, passa-lhe a mão pelo lombo encharcado, e o resto das lágrimas chora-as abraçada a ele."

in Ensaio sobre a Cegueira

Obrigado, José Saramago
(1922 - 18/06/2010)

sábado, 29 de maio de 2010

A parede

Pus-me a falar com uma parede, eu e ela, como dois amigos que não se viam há muito tempo. Pus-me a falar com ela, sem palavras, ela a mostrar-me os disparates que nela escreveram e as coscuvilhices que ouve de quem por ela passa, e eu a falar-lhe em confidência, como dois amigos que não se vêem há muito tempo.
Pus-me a falar com ela, a parede, na esperança de que ela, parede, me entendesse.
Falámos da vida, do mundo. Falámos das pessoas. E de cães de loiça.
Vi os arabescos, escritos em caracteres para mim imperceptíveis, mais sinal de rebeldia do que vontade de transmitir mensagem. E ela falou-me dos murmúrios e lamúrias que ouve ali. Eu quedei-me, numa conversa surda, sôfrego por escutá-la.
Vi as pessoas que passavam, também eu agora já atento aos murmúrios, enquanto eu e ela, a parede, conversávamos descontraidamente, como que a pôr a conversa em dia. Ela falou-me da mudança. Do antes. De como tinha sido e agora estava a ser. E eu a ouvir, respeitosamente, a experiência duma parede velha, toda riscada e já sem resquício da tinta que outrora teve. Ou talvez não, já não se lembra. E a mim também pouco me importa. O que me importa é o que ela me conta.
Também me falou dos cães de loiça. E eu disse-lhe, divertido, que também achava que sim. Que tinha razão e andavam para aí muitos cães de loiça de olhos cor de laranja. Que de certo modo, todos andamos às vezes feitos cães de loiça, com a vida a passar ao lado e nós só expectadores. E ela disse-me que, no caso dela, só lhe restava ser cão de loiça. Concordei... Mas disse-lhe também que ela tinha a possibilidade de mostrar a quem passa as marcas do tempo que passa. E da vida.
Tenho, pois tenho. Mas é preciso que haja quem queira ver, respondeu ela.
Às vezes penso que andamos desfocados. Iludidos mesmo. Fascinados. Não sei de quem é a culpa. Se calhar de ninguém. Ou então da conjuntura (é sempre fácil ser da conjuntura). Ou talvez seja do modo de vida que criámos... E nesse caso é uma chatice, porque a culpa seria mesmo nossa...
O fascínio é mau. Muito mau. Distrai. Alheia da realidade das coisas. Faz acreditar que as coisas são o que não são. Tira a atenção do essencial. E é uma janela aberta à indeferença.
Falámos de como as pessoas andam aponquentadas. Tão apoquentadas que perderam a capacidade de pensar. De reagir. E de se importar. Falámos dos rabiscos desconexos, que gritam contra ninguém. Não há ninguém que os veja. Cada tijolo à mostra tem uma história para contar. Cada rabisco apagou outro.
Mas ninguém os vê.
Parece que se chegou à conclusão que as crianças (12 anos para mim são crianças. Mesmo que se queira chamar adolescentes) andam metidas no alcoól. E têm facilidade em chegar a ele nos cafés e supermercados... Como se isto fosse alguma novidade. Nunca consegui perceber o encanto das bebedeiras. Mas percebo que atraia as mentes novas. A vontade do desconhecido e do proibido não é novidade para ninguém. O que me parece é que é estranho que só agora se tenha concluido isto, que toda a gente sabe e vê. Perdi a conta ao número de vezes em que vi miúdos à minha frente na caixa do supermercado a comprar a garrafa de vodka, ou a cerveja. Ninguém estranha. Mas agora talvez alguém tenha visto... A parede acha que sim. Só não sabe em que parede é que viram.
A questão é que, hoje, no hoje em que vivemos, na era de toda a informação, já ninguém – nem uma criança de 12 anos ou um adolescente de 15 – pode dizer que não sabia. Que desconhecia. A realidade ou os malefícios. Quantas campanhas sobre droga e alcoól e coisas mais se têm feito? Quanta informação se tem passado e chega às pessoas por todos os meios imagináveis e mais alguns? Portanto, que ninguém diga que não sabia... E a criança? A criança se tem idade para entrar num supermercado e comprar uma garrafa de vodka, também tem idade para saber que lhe faz mal.
Faz mal??? Pffff... Claro que não.
Ou faz?...
O que eu acho é que ninguém quer saber. A começar pelos pais... Que até acham normal os filhos experimentarem uma cervejita... Estão crescidos. Ah... Que mal faz? Estão aqui estão casados e não hão-de apanhar umas pielas para gozar a vida?
Vá, digam lá, é ou não é? Um dia não são dias.
O pior é o depois. Mas isso, se acontecer, logo se vê. E a culpa, de que será?...
Toda a gente encara como normal que miúdos de 12, 13, 14, 15 anos andem pela noite até altas horas da madrugada. Pensarão realmente que andam a beber sumo e a comer batata frita? Ou quererão pensar?
O que eu acho é que já ninguém liga. Seja aos miúdos, ao alcoól, à droga, às doenças, ao estado do País, à economia, ao desemprego. Está-se tudo nas tintas, cada um no seu cantinho, a olhar para o bico dos sapatos, sem ligar muita importância ao que passa ou a quem passa.
O problema já não é que as pessoas não sabem. O problema é que não querem saber.
A parede tem lá escrito. Mas tem que haver quem queira ler.

sábado, 10 de abril de 2010

Boa Páscoa!

"Quid quaeritis viventem cum mortuis?
Non est hic, sed surrexit."

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

No tempo dos cães de loiça

Lembro-me de um cão de loiça em casa da minha madrinha, quando era pequeno.
Era um cão branco, enorme (ou pelo menos parecia-me), pintado de dálmata, muito direito, afilado, numa pose quase felina, assim de guarda num canto do corredor, de olhos muito cor-de-laranja, sem nunca emitir um rosnado, de sentinela.
Parecia-me grande, enorme. E sempre alerta, como se os olhos cor-de-laranja me seguissem sempre, fitando-me, e instigando-me ao silêncio, de guarda àquele santuário que era o lar.
Hoje já não deve haver cães de loiça. Em casa da minha madrinha julgo já não haver.
O tempo é uma coisa tão efémera. Não é novidade isto... Já S. Agostinho, nas Confessiones (sim, é latim, mas existe em português para os interessados), Livro XI, lá fala do tempo...
Pensando bem, tudo é relativo, no tempo. Até os cães de loiça.
Gostava de ter a possibilidade de observar fora do tempo, numa dimensão atemporal, e ver a vida a passar, olhando para ela de fora, como mero espectador. Pergunto-me a mim mesmo se conseguiria ser apenas espectador. E ficar indiferente à vida. E aos que a vivem. Aos dramas, aos sofrimentos, aos problemas, ás coisas boas, ficando eu de tudo e todos imune.
Não sendo completamente espectador (vivo os meus dramas e do mundo que me envolve e falta-me estar fora do tempo), ainda assim consigo imaginar. Eu ali a um canto, afilado, e o mundo a passar. E eu a vê-lo.
E vejo as ondas de solidariedade na tragédia, com o mundo a desdobrar-se em campanhas de apoio para as vítimas do Haiti, tentando acudir a miséria de quem sem nada ter, com mais nada ficou. Fico à espera de ver o que se fará pelo mundo fora quando, acudidas as vítimas, se lhes entregue de novo o país moribundo (que já antes era) para as mãos.
E vejo a guerra tomar conta, cada vez mais, dos países alimentados pelos fanatismos cegos (são sempre cegos) e interesseiros, que jogam com a falta de esclarecimento e com o orgulho de povos e nações inteiras. E amealham interesses e engordam a carteira com o sangue de quem julga defender algo maior que si próprio. Fico à espera de ver quem lhes estenderá a mão, quando finalmente perceberem que foram usados. Quem os consolará? E de quem será a mão forte para castigar quem se aproveitou da sua boa vontade?
Vejo a fome aterrorizar mães e filhos. Vejo o desemprego. Vejo a injustiça social.
Vejo o país, meu país, doente. Vejo como a corrupção dilacera a partir de dentro, a república que pomposamente já se celebra no centenário, silenciosa e impiedosa. Vejo os políticos entretidos com questões, todas elas estruturantes e fundamentais para a democracia, numa miríade de discussões tautológicas, tornadas fúteis e completamente inúteis, de tão distantes da realidade de quem vive no limiar da pobreza e sente na pele o drama de não ter pão na mesa. E aguardo para ver a resposta a esta crise, que não é só nacional, dizem, mas afecta toda a gente. Como se no país, no meu país, a crise não estivesse quase intrincada com o ar que se respira e não fosse parte do quotidiano. Parece que sempre que se apregoa que vai passar, outra logo surge.
Quem nos consolará?
E vejo o país atolado no desânimo, na falta de crença, inundado pelo excesso de imigração não absorvida, que faz disparar a criminalidade para números e formas que nunca tínhamos visto nem sabemos lidar; pelo excesso de licenciados sem emprego ou empregados em caixas de supermercados e call-centres; pela legião de gente que vive com quinhentos euros de ordenado e se vê confrontado com a incapacidade para se sustentar e pagar sequer as contas do mês; com o crescente número de trintões que ainda depende e irá depender dos pais, por não conseguir sequer alugar uma casa... E vejo como não há respostas. Todos calados. Aprumados e direitos, muito em poses.
Vejo muita gente muito afilada, encostada aos cantos dos corredores, a fitar a vida enquanto ela passa. Mesmo (sobretudo) os que têm a responsabilidade e o dever de iniciar a mudança e trabalhar para ela. Muito quietos, a engordar a carteira, só de olhos cor-de-laranja a mirar, na expectativa de mais uma oportunidade que satisfaça um novo interesse.
Mesmo só de faz-de-conta, muita gente ficou fora do tempo, sem fazer parte dele.
Tudo é tão relativo, no tempo.
Talvez haja, afinal, muitos cães de loiça. Que guardarão eles agora?...
E a nós, quem nos consolará? De quem será a mão e quem será que no-la vai estender?

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Cinzento

Hoje o céu estava dum cinzento chumbo, muito carregado.
Passei, como sempre, apressado e cara enterrada nas golas do casaco e no cachecol. Uma mãe arrastava uma filha pequena pelo braço, num passo mais ou menos vagaroso, a que correspondiam passos saltitantes, quase de corrida, da criança. Ia dizendo para a mãe “não gosto do céu cinzento”. A mãe lá disse “sim, é porque vai chover”.
A mim, tudo me parece cinzento carregado.
Mas eu gosto do céu cinzento. Gosto da chuva. Gosto do frio. Gosto do nevoeiro.
Gosto do inverno. De sentir o vento na cara.
E do cinzento.
Falta a cor do verão.
Falta.
Mas a vida não é sempre verão. Muitas vezes é inverno. Mais vezes que verão.
Dantes também não gostava. Contentava-me com o branco da neve e o preto da noite. Suspirava pelos amarelos, os encarnados, os verdes, e o azul ciano.
Depois percebi que por baixo do branco da neve o verde ainda lá estava. Mortiço, talvez. Mas ainda lá. Que o escuro da noite não apagava as cores do dia. Só as encobria. Que os amarelos e os vermelhos também estão no outono. E que por detrás das nuvens o céu continuava da mesma cor. E alguém me ensinou que a vida não é (não pode ser) a preto e branco. Que às vezes é cinzento. Muitas vezes é cinzento. E é importante aprender a discerni-lo.
E aprendi a gostar o cinzento. E quando olho para o céu de chumbo vejo a chuva que renova, mesmo quando mata.
Gostava que aquela menina aprendesse o valor do cinzento. No azul do céu. E nas cores da vida.