segunda-feira, 17 de abril de 2017

Fátima, Torremolinos e as claques de futebol

Ando algo arredado da escrita. Não propositadamente. Apenas porque é assim, pelo menos comigo. Nunca fui capaz de escrever por atacado ou porque tem de ser. Admiro a disciplina de quem o faz e consegue fazer quase livros à la carte. A mim, a escrita nunca me veio por horários nem por calendário. Isto acontece-me assim, mesmo que assunto não falte, como é o caso... Tanta coisa a acontecer, em tantos campos e vertentes... Tanta coisa a despertar a vontade de escrever... Talvez porque a minha vida não dependa disso (com o sucesso monetário do que escrevo, já teria morrido de fome!) ou então, melhor, porque me sinto mais instrumento das palavras do que autor delas. Vão surgindo, devagar, suscitadas por qualquer coisa, boa ou má, e vão ficando, pairando até, à espera que possam tomar forma real, objectiva, e eu as possa escrever, num exercício subjectivo e objectivo ao mesmo tempo. Uma visão delas, que vão fazendo a sua aparição, ante o meu esforço intelectual e de raciocínio de as escrever.
Vem isto a propósito do artigo do Expresso, em entrevista ao Doutor Anselmo Borges, insigne filósofo e pensador, e que também é padre. Nela acaba por, de forma desempoeirada, questionar a compreensão comum do fenómeno de Fátima. A conversa vinha a propósito da crítica, melhor, do espírito crítico (ou falta dele) e da forma como a Igreja (em maiúsculas porque estou a referir-me à instituição) lida mal com ele. É precisamente o espírito crítico (e não a falta de fé) que lhe permite fazer a distinção extraordinária entre a aparição (objectiva) de Maria em Fátima e a visão (subjectiva) que os pastorinhos tiveram em Fátima, ou seja, a forma como vivenciaram uma experiência pessoal de fé. Assim, é perfeitamente possível “ser um bom católico e não acreditar em Fátima, porque não é um dogma”. Permito-me citar a entrevista do Expresso (16/04/1017), para dizer isto: não se nega o fenómeno de Fátima, note-se, põe-se em causa a objectividade da aparição em contraponto com o que poderá ter sido uma vivência pessoal (uma visão) de fé daquelas crianças, no contexto e nos paradigmas da época.
Nada para mim poderia fazer mais sentido. Talvez porque, eu próprio, fui depurando a minha forma de crer em Deus (fé) de roupagens, religiosidades, preconceitos, ideias feitas e, porventura, controladas, apenas para tentar chegar a um conceito de Deus com o qual me sinta confortável, depois de ter passado (e passar) dificuldades na vida nas quais Deus não teve, absolutamente, nenhum papel. Percebi que, por mais que rezasse, ou pedisse, ou firmemente acreditasse e me abstivesse de determinadas coisas ou comportamentos, nada mudaria. As coisas aconteceriam exactamente como tinham que acontecer; os problemas estariam aí para resolver; as dificuldades não desapareceriam; as pessoas de que gosto e me fazem falta, foram morrendo à mesma. A religião responde-me que nada disso era suposto ter acontecido de outra forma; o que mudaria com as minhas preces fervorosas seria o não sentir-me sozinho. Deus estaria comigo, caminharia comigo, partilhando o meu sofrimento e tornando-o suportável. Durante um tempo, isso bastou. Foi deixando de bastar, à medida que se sucediam (e sucedem), uns após outros, episódios tristes, de sofrimento, de perda, de dificuldades, de desemprego... De muitas vezes, procurei ajuda na oração. De nenhumas tive resposta. Percebi (fui percebendo), que não é Deus que está errado. Sou eu. Eu é que precisei de depurar o meu conceito de Deus; a forma como ele se poderá expressar na minha vida e a maneira como eu hei-de relacionar-me com ele. Hoje temos uma relação de mútuo respeito. Ele faz a vida dele; eu a minha. Não duvido em nada da sua existência. Mas não mudo a minha, por causa disso. Esta depuração, trabalho em contínuo aperfeiçoamento, sempre mutante com as circunstâncias da vida, a reflexão, o espírito crítico e teológico (sim, também tenho!), o contexto do mundo em que vivemos, permite-me este conceito de Deus com que me sinto confortável e no qual a religião ocupa um lugar verdadeiramente marginal. Nem eu estou inteiramente certo e todos os outros errados; nem os outros certos e eu errado. Também aqui há uma subjectividade própria de uma vivência pessoal.
Tenho já dito que escrever é expôr-se, em alguma medida. O texto de hoje é claramente uma exposição, íntima, revelando um pedaço do turbilhão em que o meu raciocínio se move. Neste caos, há sentido para mim. Há, no entanto, alguma segurança neste expôr-me, porque o número de pessoas que lerá é francamente irrelevante e, para os que lêem, o que lhes importa é o gosto por ler o que eu escrevo e nada podia ser mais circunstancial do que a minha experiência pessoal.
As redes sociais, sobre as quais me debrucei à tão pouco tempo (veja-se, por exemplo, o texto do dia dos namorados) são pródigas e rápidas nos comentários. Tenho lido coisas absolutamente incríveis sobre a entrevista do Doutor Anselmo Borges, também padre. Atrevo-me a dizer que a maioria desses comentários provém de pessoas que não passaram além do título ou, então, passando, não entenderam nada do que leram. E isso é triste. É verdade que os espíritos críticos, dotados de muita inteligência, nem sempre são compreendidos. Normalmente não o são. Seja porque escrevem ou falam com categorias semânticas e de raciocínio pouco usuais para o dia-a-dia, seja porque o seu pensamento e a forma como o expressam requer que, ao ler, se utilize realmente a inteligência. Enfim, a liberdade de opinião é algo bonito e desejável, mesmo que seja de pessoas que têm tanta dificuldade em lidar com o espírito crítico e em aceitar uma opinião diversa ou abrir o seu pensamento e o seu raciocínio à novidade e à diferença. É exactamente isto que o Papa Francisco tem feito e é exactamente por isto que o seu discurso é pouco aceite e tem tanta dificuldade em entrar numa certa parte do catolicismo moderno, e não apenas na Igreja institucional. É uma pena ver que há cristãos leigos que continuam com as janelas encerradas ao mundo, um bocadinho à maneira do espírito anti-moderno do século XIX e do Papa Pio IX... E é também exactamente por isto que o Papa Francisco tem tanta aceitação fora da Igreja. A mudança está aí. Somos seres resistentes à mudança, por natureza. Mas ela acontece, apesar disso. Adaptarmos-nos a ela ou não é o desafio. A forma como escolhermos, definirá as pessoas que queremos ser.
A propósito da liberdade de opinião não poderia ficar de fora desta reflexão o fenómeno das claques do futebol, de que tanto se tem falado, por causa do mau-gosto na escolha das frases com que vituperam nos jogos. É bem sabido, entre os que me conhecem, que eu não gosto de futebol. Isso dá-me uma certa capacidade de ver além das rivalidades e olhar para o futebol como aquilo que ele realmente é: um jogo. De emoções, de rivalidades, de milhões de euros, envolvido num sub-mundo, mais ou menos delinquente e quase marginal, de apostas, de drogas, de negócios por baixo da mesa, trocas de influências, insultos, galhardetes, pressões... a coordenar uma parte significativa disto as claques, legalizadas ou não, dirigidas por indivíduos na sua maior parte com cadastro, sem qualquer outra ocupação profissional. Fazem ainda parte desta “machina” enxames de comentadores e fazedores de opinião, em todos os canais, que vão difundindo determinadas ideias em detrimento de outras; veiculando certas formas de estar, pensar e agir e construindo verdadeiras correntes de opinião. O terreno fértil para tudo isto: uma massa adepta socialmente transversal e culturalmente multiforme, com uma característica comum: o amor pelo seu clube e o ódio pelo outros. A escolha das palavras não é ao acaso. Amor e ódio. Eis o que define o fenómeno do futebol, no meu entendimento. Um fenómeno sócio-cultural, julgo que mal estudado pela sociologia e pela psicologia, em muitos casos assumindo uma forma de relação com os adeptos que ronda a experiência religiosa, quase vivencial... Um jogo cercado por um autêntico polvo. No cerne de tudo isto duas coisas: as somas inimagináveis de dinheiro que movimentam esta máquina e que a máquina faz movimentar e, num núcleo mais pequenino, os jogadores, figuras semi-heróicas ou endeusadas, pagas a peso de ouro, literalmente. Poderá ser uma visão redutora; para um adepto convicto, será por certo uma visão horrífica, mas para mim, muito evidente, tentando ser tão imparcial quanto as circunstancias que tecem a minha visão sobre o assunto permitem. É certo que este fascínio pelo jogo, mormente pelo jogo de rivalidades, tem acompanhado a humanidade ao longo da História. Escuso-me de exemplos, deixando-os para um estudioso mais abalizado. Muito gostaria de ler um tratado académico sobe o assunto... É certo também que o poder político, épocas fora, tem aproveitado esse gosto peculiar da humanidade, servindo-se dele, acicatando-o por vezes, alimentando-os por outras, colhendo dele grandes dividendos. A nossa época, contudo, porventura por ter sido esvaziada da maior parte das referências ancestrais, está esfomeada de coisas que lhe deêm sentido e respostas e caminhos... De coisas que possam canalizar a dicotomia do amor/ódio, que a Igreja, em tempos idos, controlou, mas cujo papel há muito está esquecido.
Ora, não há coisa que mexa mais com as emoções do que um desafio de futebol. Para os adeptos, evidentemente, e que são, atreveria a dizer-me, a larga maioria das pessoas. Há, portanto, um vasto campo de oportunidades para o jogo. As últimas décadas parecem ter sido fecundas na forma como os múltiplos vectores que controlam o polvo que rodeia o jogo têm oferecido aos adeptos verdadeiras experiências de satisfação pessoal, conquistando-os, quase sem esforço, para alimentar a enormíssima “machina” do jogo, colhendo, entre outros, os frutos do seu amor/ódio. É aqui, neste campo, que entram as claques, recolhendo, sobretudo esse ódio, exacerbando-o ao ponto do ridículo e, mais do que isso, do irracional. Só isso explica as letras (se se pode chamar letras) daqueles urros que vão soltando nos jogos, verdadeiros gritos de ódio, e que a mim me lembram os relatos feitos pelos escritores antigos do que seriam os gritos de desafio entre forças antes dos combates, insultando-se mutuamente, procurando a desestabilização e a quebra do moral, provocando no outro lado, as mesmas invectivas ou piores. O fenómeno, trazido à escala do que hoje assistimos, é exactamente o que se passa. Insultos, verdadeiramente ofensivos, sem qualquer barreira moral ou ética, visando a provocação gratuita e até, quem sabe, a violência. A uns, respondem outros, numa escalada irracional mas, porventura, bem pensada e com um objectivo perverso por detrás. Abre-se aqui campo para a discussão na violência no mundo do futebol, verbal e física, uma outra vertente que acompanha este jogo. Ganha, assim, não a melhor equipa, mas a equipa mais bem preparada psicologicamente para aguentar este jogo e aquela que tiver a melhor máquina a abrir-lhe caminho. Para mim, este ano, isso é muito evidente. Há uma equipa que vai em primeiro e outra que lhe quer passar à frente. Usa, para tanto, todos os artifícios, sendo que o que passa no jogo de futebol propriamente dito é o menos importante, uma vez que, como já sabem muito bem, o estado de alma dos jogadores, pressionados por múltiplas forças e condicionados por diversas vertentes deste jogo, nomeadamente pelo trabalho das claques e dos fazedores de opinião, é que ditará o resultado: a derrota virá se forem capazes de desestabilizar suficientemente o adversário em campo e instilar neles a incapacidade para ganhar ou o sentimento de inferioridade. Isto, mais que a qualidade técnica e táctica, é que, hoje, determina o jogo, sobretudo, nas fases finais dos campeonatos, onde tudo parece valer. Tenho acompanhado, por exemplo, a estratégia de um outro clube, completamente arredado da possibilidade de ganhar o campeonato mas que nutre pelo clube que vai à frente um autêntico ódio irracional, que ultrapassa qualquer rivalidade desportiva que a razão possa compreender: a estratégia tornou-se a desestabilização daquele adversário por todos os meios possíveis, fazendo uso inclusivé de ferramentas ridículas, levantando questões que sabe, muito bem e à partida que não vão ter prosseguimento, mas aventando-os e tentando provocar um contínuo clima de polémica, na expectativa da quebra psicológica do adversário. Se acontecer, será para este clube, a derradeira vitória: a humilhação do adversário, quebrando a sua psiqué e provando ter uma “machina” mais eficaz. Há muito que o futebol dos dias de hoje se deixou de jogar nos campos.
Poderíamos pensar, eu no meu bom-senso pensaria, que os clubes quereriam demarcar-se desta realidade. O facto é que, não só não se demarcam como fazem vista grossa, facilitando estas realidades oficial ou oficiosamente. A questão não está em saber se as claques devem estar ou não legalizadas. A discussão deve ser que tipo de futebol queremos e se as claques, quaisquer que sejam e da forma como se organizam, têm lugar num futebol limpo... Dificilmente veremos esta discussão. Ganhar tornou-se o único objectivo, competir é quase irrelevante. Para ganhar, far-se-á o que for preciso.
Vamos assistindo, mais ou menos, impotentes, a este clima crispado, que perpassa todo o mundo, neste momento um pouco à deriva, tudo na expectativa do que pode acontecer, dependendo do que o senhor Trump decidir fazer. Percebeu, não sem uma boa dose de “espírito americano”, que as suas falhas como Presidente ponderado e para quem os seus concidadãos e o resto do mundo olham, podem ser colmatadas (ou, pelo menos, esbatidas) pela força, desviando o olhar para a panela de pressão que é o mundo. Mostrou, simplesmente, que não tem medo de utilizar as armas e a força que tem. Pode concordar-se ou não. Não consigo ainda, neste momento, perceber os efeitos que esta posição traz. Será, porventura, este o maior perigo dos populismos vazios: fazer coisas aparentemente justificadas, que talvez outros gostassem de fazer mas não têm coragem para fazer ou não podem, sem conseguirmos perceber onde é que esses actos de aparente justificação nos podem levar. Além disso, dogma número um do populismo, quando as coisas não correm como se promete ou não se consegue cumprir o que se prometeu (provavelmente por ser inverosímil ou porque os outros não percebem a grandeza do pensamento populista e colocam entraves que se olham como absurdos), nada melhor do que criar um outra questão onde a superioridade do que somos ou de quem somos basta para se afirmar, sem mais força de argumentos.
Uma última palavra para o hotel em Torremolinos e a questão dos finalistas. Não me alongarei. Tome-se um grupo de adolescentes em idade de se emanciparem; retirem-se do seu ambiente e da supervisão das figuras a que estão habituados e que têm como autoridade; lancem-se num ambiente propício, sem este entrave, com bebida e drogas à descrição e com a ideia já pré-feita de que, naquela viagem, tudo é possível. Juntem-se outros factores essenciais desta questão, como sejam as agências de viagens e o seu papel; as eleições das associações de estudantes ou das comissões de finalistas; o factor económico das centenas de milhares de euros que estes eventos geram... O que se espera? Um grupo de peregrinos?... Todos nós já vimos, melhor ou pior, imagens destas “viagens” na televisão... Eu, que tenho a desdita de viver num local que tem um dos maiores festivais de verão, já vi ao vivo coisas indescritíveis... Deito-me, apenas, a indagar: rituais de emancipação?... Diversão?... Limites?... “Viagens” de finalistas?...
Também aqui há muito terreno fértil para se discutir e reflectir. E também aqui, dificilmente, veremos esta reflexão feita.