terça-feira, 11 de setembro de 2018

O estranho caso dum buraco no chão ou a política de casos

Diz-se da avestruz que quando se assusta ou pressente perigo enterra a cabeça na areia. Parece, no entanto, que isto não é verdade, mas é daqui que vem a expressão que todos associamos a um certo acto de cobardia ante as dificuldades ou, então, a um fazer-de-conta que passa se eu fizer de conta que não vejo.
Há buracos, contudo, que são muito maiores do que as cabeças ou que é impossível não ver. Tal como há buracos que o não são. Quem nunca ouviu falar das impressionantes ilusões de óptica pintadas no chão, que quase parece que vamos cair num precipício quando, afinal, é apenas tinta? Porventura terá sido este o caso do incauto visitante, na exposição de Anish Kapoor, em Serralves que, apreciando a obra, caiu no buraco. Uma verdadeira “descida para o limbo”, assim se chama a peça que o visitante admirava e nela caiu.
Confesso que a minha relação com a arte contemporânea é difícil. Custa-me muito apreciá-la, talvez por ser mais dado aos grandes mestres do Renascimento e do Barroco. Talvez por não compreender o génio artístico (o que é muito provável. Não compreendo mesmo). Suponho que até os grandes mestres, na sua época, foram incompreendidos. Provavelmente, daqui a centos de anos, a arte hoje contemporânea será reverenciada por muitos e não apenas por um restrito grupo de eleitos que se deleita na contemplação de buracos no chão, ou outras peças de igual gabarito. Lembro-me de estar uma vez no Reijksmuseum de Amesterdão, no último piso dedicado à arte contemporânea e estar muita gente de roda duma vitrina que não tinha nada, apenas os contornos de qualquer coisa. Uma dúzia de asiáticos comentava e tirava fotos. Parecia que estavam a apreciar maravilhados os contornos de qualquer coisa e isso era um epíteto da contemporaneidade. Aproximei-me mais, na tentativa de encontrar, eu próprio, qualquer satisfação na fruição do que lá estaria (nada, para mim). Levantando os olhos para fora da vitrina, na parede, estava uma pequena placa, onde se lia: “Peça retirada para estudo”. Ninguém pareceu notá-la. Eu sorri, os asiáticos, que entretanto tinham atraído mais uns quantos turistas à vitrina, continuaram a tirar fotos, e eu prossegui na minha visita. A arte está nos olhos de quem vê, portanto. Um bocadinho como as polémicas, ou os buracos no chão. Para uns uma ilusão sendo verdade, para outros uma verdade sendo ilusão. Uns empolgando-os; outros desprezando-os.
Nem todos os buracos no chão são de desprezar, note-se. Em Tolkien, por exemplo, “num buraco no chão vivia um hobbit”. E daí nasceu uma obra-prima, conhecida de todos. Tal como o de Serralves, amado por muitos, menosprezado por alguns. A ninguém, contudo, é indiferente. Os buracos verdadeiros tendem a não deixar as pessoas indiferentes. Mesmo que sejam reais só literariamente.
De facto, a arte de empolgar coisas parece estar na moda. Enquanto em Serralves se cai em buracos, julgando-os ilusórios, pelo país fora espreitam oportunistas da ilusão. Coisa triste haver pessoas cuja estratégia de vida é a ilusão. Como, por exemplo, o fazer-se de conta que se é importante ou que se tem muito a dizer ou se detém todas as soluções... Claro, todos temos certas soluções, certas coisas importantes a dizer, certo peso ou importância. Cada um no seu espaço relativo. No seu mundo, se quisermos. E, claro, todos vemos e apontamos com muito mais facilidade o que está mal. Apontar o dedo é muito fácil. Tanto mais fácil quanto não nos comprometemos ou fazemos de conta que nada daquilo é connosco. Meros espectadores, como a ver buracos pintados no chão. Esta atitude é tanto mais grave quanto maior é o grau de responsabilidade da pessoa na sociedade. Cria-se aqui um ciclo nefasto: alguém pretende ser importante, apontando o dedo aos defeitos, todos e qualquer um, mesmo aqueles que são apenas aparências de erro, mas nunca apresentando soluções que vão além do senso comum ou daquilo que é fácil. Pretende-se ganhar importância à custa dos problemas alheios, fazendo com eles um jogo triste, ao mesmo tempo que se desresponsabiliza e demarca completamente, como se vivendo noutra realidade e dando a sim mesmo, perante os outros, uma aparência de saber fazer melhor, mesmo que isso não seja verdade. Chama-se a isto populismo. Poder-se-á defini-lo com outras palavras, naturalmente. Mas na sua essência, é isto. E é perigoso. Muito perigoso. Joga com as fragilidades das pessoas; aproveita os desaires alheios; empolga todo e qualquer deslize dos adversários, mesmo aqueles que não têm nenhum significado ou se vêem a provar falsos; agita as massas e toma como suas causas que sabe, à partida serem impossíveis ou pouco viáveis, mesmo que anteriormente tenho sido absolutamente contra elas... E tudo para subir à conta dos outros, disfarçando a sua própria incapacidade, canalizando ao seu redor o desencanto alheio e moldando a opinião dos outros a seu proveito, muitas vezes sem qualquer estratégia para fazer melhor. Transportemos isto para a política e facilmente se percebe o perigo. E, no entanto, isto acontece a olhos vistos, disfarçadamente, impondo-se como um discurso sério. Acontece no presente do nosso País, à escala nacional e à escala local. Quantos Presidentes de Câmara (com maior ou menor mérito, diga-se) contam com uma oposição deste tipo nas suas terras? Estranhamente, uma parte significativa das pessoas considera esta forma de actuar válida. Pior, muitos políticos (ao nível nacional e local) fazem desta forma de actuar a sua própria estratégia quando, na verdade, não é estratégia nenhuma! Uma política de casos, sem quaisquer soluções que não seja apenas o desgaste para forçar as pessoas ao desagrado. A arte da ilusão posta em prática. É fácil. Há muita gente a servir-se de buracos pintados no chão e a prometer às pessoas que vão cair neles, sabendo que, de verdade, são apenas tinta no chão. Contudo, convém sempre saber onde está a realidade e a ilusão, sobretudo no que toca a votos e a estratégias políticas. Não vá o feitiço voltar-se contra o feiticeiro e esses engenhosos obreiros do populismo acabarem por cair, eles próprios, no buraco com que andaram a amedrontar os outros. A ilusão tem destas coisas às vezes. Que o diga o visitante de Serralves.
Há solução para o populismo? Podemos evitar a política de casos? Certamente que sim. Não poderei eu arvorar-me na condição de ter a solução. Mas tenho uma solução. Desde logo, a consciencialização/educação/responsabilização das pessoas. A aposta no seu esclarecimento, em vez de alimentar a sua preguiça intelectual natural. Reparemos, por exemplo, nas notícias. Um exemplo banal do quotidiano. Num bloco noticiário, quanto tempo se dedica às notícias (factuais) e quanto tempo é dedicado ao seu comentário (interpretação)? Temos telejornais a demorarem horas, porque a maior parte desse tempo é dedicado a comentar as notícias, não a apresentá-las. Já lá vai o tempo em que os noticiários eram de notícias, ou seja, o jornalista limitava-se a apresentar a notícia factual sem a comentar ou a fazer sobre ela qualquer juízo. Competia a quem ouvia/via interpretá-la para si próprio. Hoje, não só isso não acontece, como o próprio jornalista que apresenta a notícia factual tem já sobre ela uma determinada carga, às vezes impercetível (o acentuar de um determinado número ou percentagem; a entoação da voz; um simples torcer de cabeça...) outras mais visível, socorrendo-se de uma bateria de comentadores que, expressando cada um a sua opinião, de acordo com as suas próprias tendências (ninguém é acepticamente imparcial; isso não existe: o homem é ele e a sua circunstância), mesmo que inadvertidamente ou sem essa intenção específica, vão fazendo correntes de opinião, ao mesmo tempo que se dá o fenómeno concomitante das pessoas deixarem de pensar por si para adoptarem as formas de pensar dos comentadores da sua predileção.
Isto acontece por duas razões principais, a par de uma quantidade de outras, que apenas reforçam estas: a “revolução” social que levou ao abandono dos parâmetros de vida tradicionais trouxe também uma certa preguiça intelectual, que entronca no vazio contemporâneo; ao mesmo tempo que os media, eles próprios a braços com uma autêntica revolução de parâmetros, descobriram a predisposição e o gosto das pessoas pelo reality show, preferindo que a informação seja “mastigada” e apresentada como se fosse um espectáculo. Daí a empolgar toda e qualquer notícia, por vezes até ao extremo do ridículo, procurando alimentar esta sede do espectacular, foi um pequeno passo. É isto que se passa com os chamados “casos”: coisas pequenas, muitas delas sem qualquer significado, ou então decorrentes de erros, que em circunstâncias normais seriam lidados com rapidez e eficácia, arrastadas e exploradas à saciedade, empolgando-os muito além do seu contexto concreto, sem olhar, tantas vezes, a consequências. Moldar a opinião pública à custa destes “casos” tornou-se banal, ao mesmo tempo que se apresentam e exploram circunstâncias da vida das pessoas como se fossem verdadeiros espectáculos, que prendem aos ecráns os espectadores. Acredite-se, ou não, este é um campo fértil ao populismo. E cresce. Crescerá enquanto houver audiência e enquanto houver oportunistas da desgraça.
Às vezes gostava de poder resolver as coisas com a facilidade com se podem resolver os buracos pintados no chão. Ou com a facilidade com que se podem resolver dilemas a 10 euros... Há dias, vi no facebook (esse monstruoso espelho da nossa contemporaneidade) um anúncio que dizia: “Dois dilemas, 10 euros”, fazendo reclame à pagina de um qualquer profissional das coisas ocultas. Não sei como lhe chamar, lamento. Charlatão seria deselegante. E, pois, se há quem acredite que se podem resolver dois dilemas, duma penada, apenas pela consulta de cartas ou outra coisa do género, porque é que não há-se haver quem lucre com isso? Em terra de cegos... Os políticos de casos vão fazendo mais ou menos o mesmo e ninguém estranha. Fosse tudo assim tão fácil. Eu poria como dilemas a consciencialização das pessoas e a estupidez humana. Dava dez euros de bom grado. Em todo o caso, sempre é mais genuíno o negócio das fraldas para galinhas. A mim parece-me muito mais legítimo. Chama-se aproveitar nichos de negócio: se passámos dos cães e gatos, de que eu dilecto amante me confesso, para galinhas por animal de companhia, porque não havemos de as ter limpas e bem-comportadas? Já se sabe, as galinhas são estúpidas, quando comparadas com padrões humanos (outro erro). É da sua natureza. Elas querem lá saber se cagam o sofá ou o corredor da sala, enquanto debicam o chão da cozinha... Querem é tratar da sua vida. Se as queremos na nossa, dentro de casa, pois, que haja fraldas. Alguém percebeu isso, em Inglaterra. E está a ganhar muito dinheiro, indiferente aos buracos no chão. Esperemos que não se passe para avestruzes. Não haverão fraldas que aguentem. Nem buracos.
Da próxima vez que for a Serralves hei-se ver bem onde ponho os pés.