terça-feira, 27 de dezembro de 2011

A caixa de música

Era uma noite fria, assim daquelas de vento a cortar na cara. Uivava lá fora. A mim diziam-me que era a Noite do Caramelo. Caramelo por causa do gelo, como quando o açúcar se faz em ponto e fica caramelizado assim que arrefece. A minha grande preocupação era o presépio. Caixas e caixas de musgo, cascas de árvore, pedras e sei lá que mais, ano após ano, puxavam pelo meu engenho, de modo a dar ao Menino um lugar condigno. Sabia da manjedoura, mas para mim, não chegava. Tinha de haver montes e vales, rios a correr feitos de regatos de areia, pontes, moinhos de vento e uma gruta. Não seria de Belém, mas era, ainda assim, a gruta do presépio.

O meu Avô vinha sempre ver o presépio. Queria saber o que tinha trazido o Menino. Eu dizia-lhe que quem trazia as prendas era o Pai Natal. Ele insistia que era o Menino. Mas eu não me importava. Claro que eu não entendia como podia o Menino, tão pequenino, andar mundo fora carregado de prendas. O Pai Natal sim. Tinha um trenó e podia num repente distribuir as prendas todas. Andei a pensar naquilo um bom par de anos, porque me faltava perceber como sabia o Pai Natal quem tinha sido mau ou bom. Deve ser o Menino que lhe diz, pensei. Servia-me aquela explicação.

Certo Natal alguém me ofereceu uma caixa de música. Era uma pequena casinha de tijolo vermelho, coberta do branco da neve artificial. Tinha encostada uma escada por onde subira o Pai Natal que estava empoleirado no telhado, enquanto a rena esperava cá em baixo, ao pé do pinheiro, também ele coberto de neve artificial. Inchei de orgulho, porque aquilo era a prova provada da minha teoria. Era mesmo o Pai Natal que trazia os presentes. Fui mostrar ao meu Avô, que se riu. “Foi o Menino que te trouxe.” Olhei para ele e perguntei: “Oh Avô, porque gostas tanto do Menino?” “Ora essa, porque é Natal!”, disse ele, como se aquilo fosse a coisa mais óbvia. “Se não houvesse Menino, não havia Natal” explicou-me a minha Avó.

“Ah”, disse eu. E fui atirar-me às filhós.

Fazer as filhós foi sempre um ritual em minha casa. Desde o amassar ao fritar, fui instruído em todos os passos pela minha Avó, que me ia ensinando como se colocam as mãos quando se amassa; como se usa o rolo da massa e como se vê se o azeite já está na temperatura para fritar, tudo enquanto me contava como se fazia quando ela era menina pequena. Foi precisamente a fazer as filhós que me lembrei dela. Não pude evitar uma lágrima, nem sequer enquanto escrevo. O primeiro Natal sem lhe dar as filhós a provar. Não pensei que ligasse tanta importância às filhós.

Tenho um Natal feito de lembranças. E celebro-o não já pelo Menino mas pelas lembranças. Ainda consigo ver o meu Avô segurar me na mão, na missa do Galo, enquanto íamos igreja fora para beijar o Menino. E os risos, lá muito longe, de serões em família. Tudo se foi. Tenho as lembranças. E o Avô, de olhos muitos vivos. E as filhós. E a caixa de música também, embora com muito pó. São eles agora o meu Natal.

Festas Felizes.

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Leccio Nutricionis

Passavam-se os dias e Abacílio continuava na mesma, letárgico, deprimido, apático, tendo posto a vida em latência desde que ficara desempregado. Perdia o ânimo só de pensar em ir ao centro de (des)emprego. Filas intermináveis, sem nenhuma proposta concreta ou qualquer vislumbre de solução. “Tem de procurar”... diziam-lhe as bem-postas senhoras que o atendiam. E ele lá ia, calcorreando centros comerciais, percorrendo agências de trabalho temporário, candidatando-se a call centers... Nada. Nem pó.

Estava triste o Abacílio. Pensava em ir-se embora. Em deixar a amada Pátria. Mas para onde? E com que dinheiro?...

Restava-lhe pouco mais que entregar-se ao sofá e ao zapping. “Anda lá. Não te deixes ir abaixo.” Mas ele deixava. Apoderara-se dele a noção que estava num buraco e dele não podia sair.

De vez em quando enervava-se. Punha-se aos gritos. Saía para manifestações. Queria agir. Queria reclamar. Queria ser do contra. Depois acalmava-se e via que os ideais já não tinham nada de novo, que os modelos estavam gastos e que as concentrações e manifestações e reclamações serviam interesses que não os seus.

Acordava de vez em quando dessa letargia. Enchia-se de zelo patriótico. Mas não lhe servia de nada.

Andava assim desesperado e atormentado, mal de comidas e pior de dormidas, quando soube que a senhora ministra tinha ido ao parlamento dar uma lição de nutrição. Os senhores deputados andavam preocupados porque o IVA dos boiões de comida para bebé ia subir. Por isso, a senhora ministra explicou que, do ponto de vista nutricional, os boiões de comida não eram a alimentação mais adequada. “Ah, bom”, descansaram-se os deputados. Pois evidentemente que não. Que o diga o Abacílio. Quando ele era bebé, haver banana esmagada já era um luxo. Quanto mais comida metida em frascos, meia mastigada. Modernices. Depois crescem sem apreciar o belo cozido à portuguesa, as migas de batata à alentejana, o chouriço assado, a tiborna, o ensopado, a chanfana e eu sei lá que mais petiscos e coisas boas da Pátria querida. Não têm a boca educada para o tempero. Só frascos e latas. Muita razão tem a senhora ministra. Abaixo os boiões. Fora as latas! Fora.

No calor daquela discussão, tão vital na Domus Daemocratiae, chamou-lhe a atenção certo deputado de brinco na orelha. Primeiro achou que não tinha visto bem. Depois olhou melhor, e olhou, olhou, e lá estava. Uma argolita, bem a meio da orelha do insigne deputado da Nação. “Esta agora”... cogitou o Abacílio, “então se aquele pode representar a Nação de brinco na orelha, outros há que a representam em mangas de camisa e colarinhos abertos, porque diabo não hei-de eu ir lá com a Máscara?”

Se bem pensou, melhor o fez. Foi ver da máscara, pegou nos canudos, inúteis apesar de tanto queimar de pestanas, e lá foi a caminho do Parlamento. Havia de ir lá e gritar bem alto os azedumes e os devaneios que deitam por terra a Nação. Havia de denunciar aos ventos as horas, os dias, meses e anos desperdiçados com conversas de mel-coado, quando o Povo, esse esquecido sustento da Nação jazia de fome, desemprego e, sobretudo, jazia de enganos! Ah, que ninguém o havia de calar.

Mas calaram. E bem depressa. Aliás, nem foi preciso. Não podia entrar. Até lá havia uns senhores da polícia, preparados para qualquer motim que pudesse haver. “Quero falar aos representantes do Povo” bradava ele. Mas de nada lhe serviu.

Não se dando por derrotado decidiu-se a encontrar a Nação. Mas onde encontrá-la? Pois se nem nunca a tinha visto... Até pensou que era a senhora de peitos de fora cuja estátua anda espalhada pelos edifícios públicos. Mas não era. Essa era, parece, a Liberdade.

Não sabendo bem por onde comçar, foi ter com os cães de loiça. Ali estavam, muito afilados, de grandes olhos cor-de-laranja, muito inóveis e quietos. Mas nada. Viam muito. Mas a Nação não a viram. Disseram-lhe que estavam até admirados por Ela não estar no Parlamento, ou nalgum palácio ministerial. Como ainda os não tinha visto todos, lá foi, um por um, saber da Nação. Mas não a encontrou.

Fartou-se. “Que se lixe a taça. Vou mas é pr' ó sofá. Assim como assim...” Pronto. Passou-lhe o fervor.

Mas então, inesperadamente, bateram-lhe à porta. Era a Nação. Muito cansada, apoiada numa bengala velha, toda despenteada, vestidos rotos. O Abacílio nem sabia o que dizer. Queria contar-lhe da lição de nutrição, do brinco na orelha, dos desvarios dos deputados, das coisas que têm feito, das que não têm feito, do tempo que perdem a discutir a lã caprina, a acicatar-se e a desdenharem uns dos outros, das mangas de camisa... de tudo isso e mais que se lembrasse. Mas não foi preciso. Ela bem sabia. Oh, se sabia. Pelo estado em que estava, via-se que sabia. E bem.

Quisera ele ter ao menos uns boiões de fruta para lhe dar. Mas nem para isso havia tusto.

Ah, Nação Portuguesa, que te matam! Não sei se de fome, se de logro ou se hão-de vender-te aos bocados. Mas que te matam, isso matam.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

A avenida

Na cidade onde eu estudei havia um jardim. Digo havia porque nunca mais lá voltei. Mas posso dizer, com toda a certeza, que há um jardim. Grande, enorme, no coração da cidade, ela feita de altos e baixos e o jardim, sempre quieto, também sucalcado, com grandes escadarias de pedra calcária, fontenários, lagos, a estufa, e, claro, a avenida. Era assim que lhe chamava. Por entre o jardim, uma enorme rua ladeada de tílias e plátanos, com muros de calcário elegantes. Era recanto de namorados, escondidos pelos troncos grossos de anos, de tal forma que o transeunte podia passar sem sequer os notar. Havia também um eucalipto da Austrália, tão grande que seriam precisos vários homens para o abraçar.
Era muito perto da minha faculdade. Todos os dias, religiosamente, ritualmente, post prandium (e às vezes também post coenam) lá ia, em passos de passeio, muito vagarosos, sozinho ou acompanhado por amigos, para ajudar na digestão. Outras vezes, muitas, apenas para estar sozinho e pensar. Havia bancos a ladear um grande lago. Todos encostados a ameixas-de-jardim. Formavam uma espécie de gazebo, mas sem cobertura, a não ser a das árvores. Sentava-me lá muitas vezes. Conhecia quase todas as árvores, todos os caminhos, os bancos e os miradouros, de onde se podia ver toda a extensão do jardim ou ver as escadarias, ou até olhar para a parte reservada. Não estava aberto ao público por completo. A razão disto era ser um jardim botânico. E gostava de passar na avenida. Detesto tílias. Fazem-me espirrar. Mas queria lá saber se eram tílias. Gostava daquele cenário de grandeza, como se a natureza, ali amestrada, tivesse ela tomado as rédeas e tivesse feito daquela parte do jardim um triunfo. A toda a hora podia imaginar quadrigas saudadas por multidões, ou carruagens puxadas por cavalos muito penteados, ou simplesmente senhoras de sombrinha acompanhadas por cavalheiros de chapéu alto, que passeavam descontraidamente. Ou então alunos, muitos alunos, que ali passavam todos os dias. Atravessando o jardim e passando pela avenida estava-se praticamente no Campus. Mas naquela altura acho que ninguém lhe chamava campus… Chamava-se-lhe Pátio. O tempo ali era como se parasse. Fora das grades, muito altas, de ferro e bronze, o frenesim de carros. Ali, nada. Umas vezes só o barulho do vento. Ou o som dos pássaros. Especialmente no Outono. A Primavera era bonita, sim. A vida que rompe e se faz sempre nova. Mas eu não gosto de fait-divers. Toda a gente esperava pela força da Primavera. Eu, pelos dias de Outono, ou pelo fim do Verão. Pelas primeiras folhas a cair. Esperava por ver os tons das folhas. Depois respirar fundo, à espera do cheiro do Outono. Na porta mais perto do campus, havia a senhora das castanhas, que no Verão era de gelados. E eu esperava pelo cheiro do carvão e das castanhas, misturados com os primeiros ventos frios que derrubava as folhas, já sem tons de verde ou então de verde-velho, e calcetava o chão da avenida de folhagem. Então, sim, era grandiosa a avenida.
Chegou discreto o Outono. Quase nem dava por ele, tão distraído ando do tempo. E do calendário. Mas mudou o tempo. Houve uma noite fria. E lembrei-me então da avenida, onde o tempo pára. Senti saudades, como todo o estudante sente da sua faculdade. Foi no tempo em que as licenciaturas tinham muitos anos. Fiz da cidade minha, apesar de não ter nunca mais lá voltado.
O tempo é sempre tão relativo… Quando me lembrei da avenida lembrei-me também que a vi pela última vez há mais de onze anos. Onze anos. Pus-me a pensar que para mim foi ontem. A vida é outra já. Os colegas também nunca mais os vi, em grande parte. Mas consigo ainda pôr-me de pé, no meio da avenida a atravessá-la como se ainda lá estivesse. Ou como se tivesse sido ontem que me vim embora. Tenho a certeza que os portões estarão da mesma maneira abertos e a avenida há-de lá estar, ladeada de tílias e plátanos. Se eu agora lá fosse seria como um estrangeiro. Como se nada daquilo tivesse já sido meu um dia. Como se não me tivesse sentado todos os dias naqueles bancos de pedra. E receberia olhares curiosos como se nunca lá tivesse estado. Coisa relativa o tempo. Passa. Mas não para quem está dentro dele. Para quem está dentro dele, leva-nos também com ele. E só parecemos mais velhos a quem passa por fora. Coisa relativa o tempo.
Já é Outono e quase não o senti chegar. Não fora lembrar-me da avenida e estaria ainda noutro tempo. Que saudades do Outono na avenida.

NOTA: Para os preciosistas, o Outono, que como se sabe tem início com o Equinócio de Setembro, este ano é apenas a 23, amanhã, pelas 09.04h. Para o texto literário, contudo, já é Outono.

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Dantes

Gosto de chá. Há dias alguém me perguntou: “Gostas mesmo muito de chá, não gostas?” Eu acenei que sim, que gosto muito. O chá é uma das memórias mais bonitas da infância, que me acompanha todos os dias. Lembro-me, muito criança, de ficar a olhar para aqueles pontos pretos pequenos, num montinho na palma da minha mão, que a minha avó despejava dum pacote de Chá Li-Kungo. Encantava-me (encanta ainda) aquele ritual de esperar a água ferver e depois despejar lá dentro aqueles pontinhos pretos, muitos e amontoados, para os ver desdobrarem-se em folhas e mais folhas, como se tivessem sido muito bem dobrados por mãos experientes que, ao dobrá-los, puseram neles segredos escondidos.
“Avó, porque é que os pontinhos ficam grandes?”
“Por causa do calor da água, filho.”
“Não é isso avó. Porque é que ficam como se fossem folhas?”
Não sabia ainda naquela altura que o chá era feito de folhas.
Os porquês das coisas sempre me incomodaram. Às vezes podemos perdermo-nos nos porquês sem sequer nos darmos conta.
Ela sorria e respondia aquilo que sabia que não ia dar origem a mais perguntas de porquês: “Não sei. Mas tu vais descobrir – festinha na cabeça – e depois vais contar-me. Segredo nosso”.
O segredo do chá, ficava-me eu a pensar e a olhar para o chá, que dentro da chávena não era vermelho, nem castanho, nem cor-de-laranja, nem dourado, mas uma mistura de todas elas. Como se o sol que secou as folhas deixasse nelas uma faúlha que depois o calor da água fazia desprender para dentro da chávena, com um brilho próprio, íntimo do próprio chá.
Acabei por ficar desapontado com a ciência. Claro está que descobri o segredo do chá. Como todas a gente… Fiquei chateado. Perdeu a mística. Fiquei sem o fascínio do porquê. Continuo a fingir que não sei.
Tenho saudades do Chá Li-Kungo. E de ficar à espera que as folhas se desdobrem. A minha mãe apresentou-me ao chá Tetley em saquetas. Mas não é a mesma coisa. Mais prático, sim. Mas a ciência que fez do chá uma coisa prática, tirou-lhe o misticismo, aquele ritualismo próprio, muito cadenciado que faz do chá chá e não apenas uma coisa que se bebe. Gosto das saquetas, sim. Que seria do mundo civilizado, aliás, sem as saquetas. Mas já alguém viu a faúlha de sol sair das saquetas? Pois como há-de sair, se nem sequer as folhas são folhas? Não, não é a mesma coisa.
Já não há Li-Kungo. Mas eu tenho saudades dele. Guardo ainda uma caixa amarela. Havia também as cor-de-rosa. Gosto de guardas coisas. Não que fosse preciso. Na minha memória estará sempre o cheiro, a cor e o sabor do Li-Kungo. Dantes, o mundo do chá para mim era simples. Havia o Li-Kungo, que era o chá, e havia as saquetas. E pronto. Era assim. Depois, que acabou o Li-Kungo, tive de aprender o intricado mundo dos chás. O English Breakfast, o Earl Grey, o Darjeeling; o Oolong; os verdes; os brancos e todos os outros. Continuo a gostar imenso de chá, mas sobretudo preto. Os outros não me cativam. O Li-Kungo também pertencia aos pretos. Os apreciadores dizem que os verdes são aromáticos. A mim sabem-me a ervas. E para que queria eu um chá onde não posso ver o sol?
Gostava mais quando era simples. Dantes. O Li-Kungo ou as saquetas. Gosto das coisas simples.
Há dias o meu irmão também se lembrou de qualquer coisa de antes. Não me lembro o que foi, porque não o ouvi. Ia a pensar no chá. E depois no dantes.
Dantes.
Deixei-me sorrir, porque me lembrei de imediato do meu amigo Sousa. Tinha horror ao dantes. Não pelo dantes. Mas porque o afligia a ideia da resistência à mudança, quando ela significava o melhor. Gostava da tradição. Mas não do tradicionalismo. Desta moda revivencialista que agora há de querer fazer tudo como era dantes, sem se parar um bocadinho para pensar que, entretanto, mudou o mundo. E a vida. E as pessoas. Que já não é como era dantes, porque não pode ser. Agora é hoje. Também já não há chá Li-Kungo… Nesse aspecto achava-o muito parecido com a Miss Marple, outra das minhas heroínas, se bem que, esta, de fantasia.
Dantes. Quando alguém lhe dizia qualquer coisa de como era dantes, ele punha logo as mãos à cabeça, olhava para mim e fazia aquele sorriso discreto e cúmplce, como se partilhássemos os dois um segredo quanto a esse assunto e dizia: “Oh meu Deus, dantes, dantes…” Olhava sempre para mim com aquele sorriso cúmplice, quando estava mais alguém. Teríamos à volta de quarenta anos de diferença, mas tratava-me como par. Fascinava-se a ouvir as ideias retocadas e de cara lavada, acabadas de sair dos doutos corredores da universidade. A forma como dantes era e agora já era diferente. Depois dizia: “No fundo, é a mesma coisa. Mas tem muito mais gracinha assim”. E ria. Era extraordinário. Isso custou-lhe um preço. O empreendedorismo nem sempre é bem-vindo. Sobretudo quando o dantes se impõe esmagadoramente. Há muita gente que é incapaz de ver o sol, mesmo numa chávena de chá. Sobretudo numa chávena de chá. Fica preso no porquê. E não percebe a vida a fluir. E o sol a escapar-se.
Dantes era tudo mais simples. Havia o chá Li-Kungo e havia as saquetas. Gosto de chá, mas também gosto das coisas simples. Sempre que me apetece que o tempo pare, lembro-me dele a pôr as mãos à cabeça. Dantes, dantes… A vida segue. Mesmo sem chá Li-Kungo. Levamos as memórias. Ao menos que isso nos acompanhe. Ah, e o sol. O sol também vai. Preso em folhas de chá, que seja. Mas há-de à mesma ser luz.

Post Scriptum. Precisamos tanto de luz. E de chá. Tanta falta de chá… É que o chá conforta. Relaxa. E ajuda a pensar. Pergunto-me que diria o meu amigo Sousa se fosse discursar na União Europeia. Ou só que fosse ver aqueles debates. Aquelas discussões, sempre muito civilizadas, cada um na sua postura, acompanhado de uma miríade de consultores, assessores e tradutores, que tornam possível que se debata naquela Babel. Faria bem àqueles senhores pensar, ao redor duma chávena de chá. E ver o sol. Talvez que tivessem mais ideias mais interessantes para além de brincar com as bandeiras… Não me importo que pusessem a bandeira de Portugal a meia haste. Seria de luto. Porque a Europa esqueceu-se donde vem. Vive no dantes. E perdeu o norte. Não sabe para onde vai.
Do meu ponto de vista, a crise financeira da Europa tem uma vantagem, claro. Acabaram-se as máscaras. A conversa fiada de entreajuda e cooperação internacional, de promoção dos mais pobres. Seremos sempre pobres enquanto pensarmos assim. E a Europa será o que sempre foi. Um conjunto de países a vários tempos e compassos, incapaz de sarar as feridas e pôr de lado os orgulhos. O senhor comissário da Alemanha tem um problema com as bandeiras. Ou melhor, com os países devedores. Não andarão ali ainda uns resquícios de um certo racismo histórico… Há coisas que continuam sempre como dantes. Quando nos perguntamos como foram possível certos episódios da história, perdemo-nos nos porquês. Uma pessoa pode ficar-se perdida nos porquês. Depois o hoje presenteia-nos com respostas. Ou com interrogações. A resposta também pode ser uma pergunta.
E depois, também pode ser só indigestão… Hm, não sei. Talvez seja. Chá, senhor comissário?

terça-feira, 2 de agosto de 2011

O tiro aos pratos

Certa vez, em miúdo, fui a um torneio de tiro aos pratos. O meu pai fartou-se de me explicar o que era o tiro aos pratos. Mas a mim fazia-me confusão como é que se atiravam pratos tão alto e tão longe para que depois se lhes pudesse dar tiros. E ainda mais quando pensei em como raio se havia de acertar em pratos a voar. Imaginei a baixela toda em alvoroço, pratos pelo ar, e os homens, de barriga grande, boina e bigodes fartos, de caçadeira bem encostada ao ombro a derrubá-los. Pensei no desperdício. Cheguei a ir ao armário buscar um prato e pus-me a olhar para ele, muito redondo. Tive pena dos pratos.
Se calhar é como os discos, pensei. Imaginei-me na rua em frente de casa a atirar um disco ao ar e a correr atrás dele, eu e os amigos da vizinhança. Mas por que hão-de fazer pontaria aos pratos?
Lá fui, tomado desta dúvida, a ver o torneio.
Pai, não vejo os pratos!
Tens de olhar com atenção. Eu olhava, mas não via.
Espera aí.
Desapareceu uns minutos e trouxe-me uma mão cheia de pratos.
Vês! Isto são os pratos.
Os pratos? Mas isto não são pratos! Não se pode comer nisto!
O meu pai riu-se. Mas não explicou mais nada. Eu não conhecia ainda a ideia de prato. Só os pratos. Não podia conceber que houvesse uma coisa de cerâmica a que chamavam prato e que servia apenas e só para se disparar contra eles.
Deve ser preciso muita força para atirar isto tão alto!
Mas não era. Era uma máquina que os atirava, e os homens de barriga e farto bigode esperavam alinhados.
Achei giro. Mas chato. Só mais tarde é que percebi a importância de afinar a pontaria. Só quando me levaram à caça. Também achei giro. Mas triste. Pensei nos pratos. Depois nos pombos. Os pratos não largavam sangue. Tive pena. Nesse dia decidi que a pontaria era uma coisa boa mas só para torneios.
Gostava muito de tiro ao alvo. Aos pratos não. Sou demasiado magro para disparar caçadeiras sem fazer figuras tristes. Mas ao alvo sim. Desafiava-me a paciência. Depois compraram-me um arco. Podia passar dias a fazer pontaria a tudo. Mais ou menos pela mesma altura li um livro do Pateta, em que ele era xerife no Velho Oeste. Ia fazer pontaria para a lixeira. Acertava sempre, claro. Na lixeira acerta-se sempre em alguma coisa. Senti-me um xerife do Oeste. Depois alguém me disse que os xerifes não tinham arcos e flechas. Isso eram os índios.
Ora, mas os índios são os maus! Assim já não quero. Fiquei-me pelos alvos. E por todas as latas que conseguisse encontrar.
Continuo a gostar de tiro ao alvo. Do jogo da respiração. Do saber que consigo, por mais pequeno ou longe que esteja. Lamentavelmente, vejo mal. Acabou-se o tiro. Tive pena.
Passei anos sem pensar em pratos, nem pombos, nem índios. E o arco partiu-se. Mandei-o para o lixo na última limpeza que fiz ao sótão. Mas não aos pratos. Vieram-me às mãos, por entre o pó e as coisas velhas. Os pratos daquele dia. Guardei-os. Não sei para quê. Gosto de guardar. Não precisava de ter guardado o arco partido tantos anos. Afinal, ainda me lembro dele, apesar de agora já não ser arco nem estar na minha casa. Mas sou assim. Guardo.
Voltei a pensar neles, nos pratos. Na inocência com que fui ao torneio. No domínio da ideia de prato. É inevitável para mim pensar no torneio dos pratos e não pensar em homens de grandes barrigas. Deve ser uma coisa de estatuto. Embora não saiba bem porquê. Penso que qualquer um, mesmo sem barriga ou bigode farto, poderia fazer tiro aos pratos. Até eu poderia. Claro que não os veria, e não sei se me daria bem com os tiros de caçadeira. Mas os homens de barriga grande sempre hão-de personificar para mim o torneio dos pratos. Assim como numa caricatura. Nas revistas velhas que encontrei no sótão havia montes de caricaturas. Da situação, dos políticos, da crise que, obviamente, é de sempre. E os políticos sempre de cartola e charuto. As cartolas estão, por assim dizer, para os políticos como as barrigas e os bigodes para os pratos. Lamentavelmente, se fossem fazer pontaria aos pratos, também não sei se os veriam. Ou se aguentariam o recuo das caçadeiras. Haveria de estilhaçar-se os pratos, mas não pelos tiros. Saem sempre ao lado. Tenho pena dos pratos. A importância da pontaria vêm-me outra vez à ideia. Ficou-me para a vida, mesmo que agora já não faça tiro ao alvo. Mas gostava. Gostava muito. No vernáculo que hoje usamos a pontaria pode ser muita coisa. Acuidade, claro. Centrar-se em objectivos. Focar-se (resisto ao focalizar. Desprezo-o quase tanto como o recepcionar que, por mister do destino, hoje substitui o receber). Para quem já disparou uma arma, sabe que o controlo é o segredo. Não apenas o olho. O respirar. E pronto, depois sabemos o momento certo. Isto é a pontaria. Seja de cartola ou de barriga grande. Não convém ir aos pratos (nem aos patos) se não se fizer pontaria. E termos presente que os pombos sangram. É o preço a pagar pelo chumbo. Um tiro reclama sempre um preço. Não se deve puxar o gatilho se não estivermos dispostos a pagar o preço. Tenho pena dos pratos. E dos pombos. E dos patos.
Gostava de voltar à inocência das ideias sobre os pratos.
E ao tiro ao alvo. Os pratos não largam sangue. Mas também se estilhaçam. Mesmo que não levem tiros.

domingo, 10 de julho de 2011

In memoriam

Cheirei um manjerico. Foi casual, sem querer ou fazer por isso. Passei pelo friso onde está um, pus a mão e cheirei. Lembrei-me imediatamente de ti, querida Avó. Há muitas coisas que me fazem lembrar de ti.Quase tudo, na verdade. Estranho que hoje tenha sido um manjerico. Gostavas de manjericos. De flores. Lembrei-me de estarmos no quintal, eu muito pequeno, e tu a teceres ramos de rosmaninho em coroas de flores. Chamavas-lhes capelas. Umas coroas pequenas, à medida da minha cabeça, bem seguras com linha, que não se via, feitas do rosmaninho que o Avô trazia, não sei de onde. Era pequeno demais para ir com ele. Depois dizias “Pronto”, eu punha-a na cabeça e andava por ali aos saltos. “Dá cá, para logo à noite”. Logo à noite era noite das fogueiras. As capelas serviam para queimar nas fogueiras, depois de andarmos com elas na cabeça. Não sei dizer para quê. Explicaste, por certo. Eu é que já me não lembro. Talvez qualquer coisa de casamentos…
Quase todas as minhas memórias, sobretudo da infância, têm a ver contigo ou com o Avô. Lembro-me das coisas mais tontas. Das mousses de chocolate sem haver frigorífico para as solidificar. “Fazemos de conta”. E sabia bem! Do carro da polícia, marca Pepe, a imitar os antigos carochas da Polícia, que fazia um chinfrim enorme pelo soalho da sala… Nem uma só vez me mandaste parar. Mesmo que aquilo te pusesse doida. Acho que ser Avó deve ser isso. Abnegação. É uma palavra estranha para dizer das avós e dos avôs. Mas dizem que a avó é mãe duas vezes. Não creio que possa haver amor maior. Portanto, abnegação adequa-se.
Já faz quase um mês que partiste. Não sei porque raio de razão havemos de dar tanta importância à divisão deste tempo. Uma semana, quinze dias, um mês, seis meses, um ano, dois, três, quatro…muitos anos. Missas. Uma por cada marca. O bom Deus tem tanto trabalho… Como se uma semana, quinze dias, um mês, o que seja, representasse um alívio. Ou então mais um lamento. Um dia sem ti já é demais. Mas somos assim. Precisamos de compartimentar. E enquanto compartimentamos vamos pegando nas coisas e tirando delas memórias. Lembranças. Às vezes risos, que não vêm sem uma lágrima, que se limpa apressadamente, antes que ela tome conta daquele ritual de memórias e nada mais nos reste senão o choro. Parece que limpa. Que alivia. Talvez. A mim não. Alivia-me apenas o que já não pode ser.
Não me lembrava já de que doía tanto o luto. Podia pensar-se que agora, já homem feito, não havia de ser tão custoso. Mas é. Afinal, quando fazemos luto, é sempre a primeira vez. Porque sempre que nos parte alguém, é alguém.
Tempo. Esse curandeiro sorrateiro da vida. Ele é que há-se ser a bengala. Pena que demore tanto. E que o choro o vença tantas vezes antes da batalha ganha.
Obrigado, querida Avó. Direi de ti que gastaste a vida a amar os teus.
Até sempre. Bem sabes que te guardo comigo.
Descansa em paz. Ámen.

sábado, 11 de junho de 2011

O poço de Samarra

Há entre os árabes uma história acerca dum homem que, estando numa taberna de Damasco a beber vinho, viu a Morte. “Não, não pode ser! Ainda não chegou o meu tempo!” exclamou esbaforido. Saiu da taberna e cavalgou pelo deserto. Perto de Samarra, dirigiu-se para um poço, para beber e matar a sede ao seu cavalo. Ao chegar lá, viu novamente a Morte. “Mas como é possível? Eu fugi de ti em Damasco!” A Morte respondeu-lhe: Também eu fiquei surpreendida ao ver-te em Damasco, porque o nosso encontro esteve sempre marcado aqui em Samarra”.
A moral da história não é muito difícil de inferir: não se pode fugir do destino. Não importa se acreditamos nele ou não. A mim pouco me interessa. Podemos sempre dizer que a vida é de cada um, e cada um faz o seu destino, de acordo com as escolhas que faz. Eu concordarei. Deixar que a minha vida corra a bel-prazer dos caprichos do destino não é ideia que agrade a ninguém. Gostamos de controlar. Tanto mais quando é a nossa vida. Temos, naturalmente, uma palavra a dizer.
Não sei se acredito na história ou não, porque não sei se acredito no destino ou não. É uma lenda, uma história-de-fogueira, daquelas contadas pelos avós aos netos, pelos anciãos aos novos. Não sei. Espero um dia perguntar ao homem de Damasco.
É fácil distrairmo-nos do que nos rodeia. Ficarmos imersos na nossa vida e nem repararmos no que acontece ao redor. Aconteceu-me ainda há dias. Por causa disso, só soube por acaso do que aconteceu na Síria. Estava à procura duma notícia e dei de caras com o relato do assassinato do pequeno Hamza, a criança de 13 anos assassinada pelo regime daquele país. Não costumo chocar-me muito. Há muito que a crueldade de que o homem é capaz deixou de me assustar. Às vezes, até de me incomodar. Mas é impossível ficar indiferente. Torturado, queimado com cigarros, cortado, baleado, esmurrado, desfigurado. A pergunta: Que crime pode ter cometido, para ser tratado daquela maneira? Diria inumana, se não fossem inumanas tantas atrocidades. Outra pergunta: com que direito (de autoridade, até) um regime político profana os seus cidadãos daquela maneira?
O regime fez o favor de devolver à família o corpo, em troca do silêncio. Felizmente, tiveram a coragem de não calar esta história de horror. Não sei que terá acontecido aquela família. O desafio de ter denunciado a situação e mostrado o corpo mutilado, deve certamente ter represálias. Não quero pensar nelas. Penso antes na bravura indignada duma família que não se pôde conter (gostava de saber como é que os partidários da nova forma de escrever assinalam graficamente a diferença entre pôde e pode. Eu, para minha desgraça, não sei. Vejo-me agora quase analfabeto) mesmo sabendo que esse acto trará consequências. A coragem sempre cativa mais que o medo. Aliás, é a coragem que fez desse menino estandarte dum protesto que se vai espalhando, enquanto o resto do Mundo espera para ver. Há muito em jogo. A capacidade nuclear, o petróleo, o gás, o fanatismo enraizado de gerações... Esperar para ver é uma boa estratégia, se estivermos dispostos a lidar com os danos colaterais. Uma coisa fria de se dizer. Mas não será mais frio, ou calculista até, do que dizer coisas que se sabe que não são verdade e prometer o que se sabe não ser possível cumprir. Não mais do que fingir que não existem certos problemas ou deliberadamente ignorá-los, num jogo perigoso, que conta sobretudo com a ignorância e a incapacidade para questionar correctamente os problemas e as situações, na esperança de alcançar alguma coisa que, de outro modo, seria impossível. É assim que por cá andamos. Vieram as eleições e soaram apoteóticas aclamações aos vencedores. Muito certo. Mesmo que os vencedores sejam notoriamente ineptos, não só pelo programa que propõem como, sobretudo, pela escolha de pessoas. Mas, em boa verdade, haja o primeiro que conscientemente e sem clientelismos de qualquer espécie me diga qual, dentre a horda de gente a concurso, era realmente o que faz falta. Veremos, naturalmente, se me engano. O tempo dirá. Veremos também se daqui a dois ou três meses, as aclamações não passam a apupos e, mais uma vez, como sempre, acordamos tarde para o que aí vem. Veremos.
Coisa curiosa o tempo. Voltei a pensar no homem de Damasco. Como podia ele saber que não era ainda o seu tempo? E a Morte, encontrou-se com ele fora de tempo? Fugiu sim. Mas porque tinha por onde fugir. E como fugir. Acreditava, sobretudo, em si próprio… nas suas convicções. Mas ainda assim a Morte esperou por ele. O pequeno de Daraa não precisou de ir a Samarra. A Morte foi buscá-lo, quase sem ele perceber. Só percebeu que a Morte vinha quando a dor lhe fustigou o corpo. E o espírito. Penso nos porquês que lhe devem ter surgido. De incompreensão. De medo. De incredulidade. Às vezes a Morte também se engana. Sobretudo quando se deixa usar como arma.
Será talvez este o nosso destino: fugir sem ter para onde, sabendo que, não importa a quem nos rendamos, será sempre para nos castigar. O fado chama-lhe sina. Terá, certamente outros nomes, menos pomposos. Fiquemo-nos pela sina ou pelo destino. È tão mais português. Não temos Samarra. Mas poços não nos faltam. A Morte há-de estar num deles. Ou, quem sabe, numa manifestação qualquer. Quem será o juiz? Hei-de perguntar ao homem de Damasco.

quarta-feira, 18 de maio de 2011

As farsas

Mal refeito ainda da farsa das máscaras, Abacílio andava agora em palpos de aranha com as coisas do país. As do país e mais as da sua vida. Compreendia bem que não há país com saúde se a vida das pessoas que o fazem não corre bem. E a ele tudo lhe corria mal. Julgara-se doutor licenciado e, afinal, achara-se parvo.
Sentia-se assim como num imenso teatro, que era o país todo, a assistir a farsas, bem mais intricadas que as das máscaras, e que dele faziam espectador boquiaberto. Na plateia via todos quantos se riam da pátria amada, o que o enchia de lusa cólera, enrubescia-se e berrava que o deixassem ouvir as farsas. Para além desses, alternavam entre o palco imenso e os assentos da bancada os actores e figurantes das farsas. Ora uns, ora outros, e o Abacílio ali, a ver se não perdia o fio à meada por entre os argumentos elaboradíssimos e o vaivém de gente.
Primeiro foram os senhores do governo. Elegantes, janotas, mas com ar grave. Parece que andavam a cortar o rating à república. O Abacílio deixou-se rir. A república já parecia uma manta de retalhos desde há muito, devido às tesouras nacionais. Pois que cortem. Mas não, parece não. Parece que a coisa é séria. Tão séria que se foi o governo. Medidas, pacotes, compromissos, nada valeu. Foi-se o governo. Então aqui d’el-rei…perdão, então acudam, acudam, que a república se afunda!
Muda a cena, porque o senhor presidente também andava incomodado. Não eram os ratings… Eram as siglas. As siglas, senhores! Não acertam com as siglas daquelas entidades seráficas que vão abrir os cordões à bolsa e mandar as agulhas, para pôr toda a gente a cerzir a república… Depois de tantos cortes, era apenas natural. Mas as siglas. Uns que era FMI; outros que era BCE. O senhor presidente lá esclareceu: é FEEF, que é na verdade o nome o que lhe dão agora os senhores da Europa. Quis fazer-se um fundo em bolsos rotos, logo teve de se ir buscar o rico dinheirinho a qualquer lado… Mas, enfim, chamar-se FMI é que não podia ser.
O Abacílio cada vez se via mais confundido. Os senhores do governo retiraram-se. E agora? O senhor presidente fechou-se em copas. Diz que não é da sua posição. Agora era preciso esperar pela troika. O Abacílio esbugalhou os olhos. Troika? Mas que troika? Afligiu-se, pensando que a revolução tinha saído à rua e não tinha dado conta. Pensando que imperava a foice e o martelo. Mas não. Tranquilizou-se logo que os viu em cena. Era assim como que um triunvirato, uma comissão de três figuras, bem-postas, também com ar grave e de pasta. O Abacílio pensou que eram as pastas do dinheiro. Mas não eram. Eram as pastas das medidas. Estamos cheios de medidas até aos olhos, pensou ele. Há que tempos que damos o litro, e ainda vêem mais medidas. Irra! Não há cú que aguente! Chissa!
Entraram logo em cena os da oposição. A culpa é dos senhores do governo, claro está! Nós avisámos, bradavam eles! O Abacílio pôs-se a rir outra vez. Os políticos em cena davam-lhe sempre vontade de se rir. Devia ser do teatro. Divertiam-no as farsas. Eram uns estarolas, a atirar culpas de uns para os outros, como se fossem tartes. E no fim todos se lambuzam!
Mas atenção. Um entendimento era imperioso. Ora, mas como se hão-de eles entender em quinze dias, se há quase quarenta anos que tentam, tentam e nada… Enfim. O independente relativo apresentou logo a resposta: é preciso fazê-lo presidente da assembleia. Presidente da assembleia?! Mas como pode lá ser isso? Os senhores do governo ufanaram-se com a ofensa à dignidade da cadeira. Pois se nem sabe o regimento! Os senhores da oposição ficaram sem pio. Andaram ali a esquadrinhar, a esquadrinhar, a ver se descalçavam a bota. Um deles, mais descarado, disse logo: Mas afinal, elegem-se deputados ou presidentes? Outro pôs-se aos pulos de contente, a dizer que bem sabia que ele não era independente não senhor. Era um golpe político, é o que era. Mas parece que, afinal, foi tudo um mal-entendido. O homem o que quer é servir o país! Gargalhada geral. Foi de tal ordem que nem se perceberam as explicações do senhor candidato-a-presidente-da-assembleia-que-afinal-era-só-a-deputado-e-até-podia-ser-que-aceitasse-o-mandato-se-fosse-eleito.
Mas enfim, o acordo lá chegou, os milhões lá foram prometidos e os senhores do governo informaram que, afinal, estava tudo bem. Sim, há crise, desemprego, e fome, e gente sem casa, famílias atoladas em dívidas. Sim. Mas calma! Agora vêm aí as eleições! Importa concentrarmo-nos nelas. Claro. O Abacílio pensou que aquilo era digno de rir. Mas o momento era solene. Eleições sim. Mas para eleger o quê? Ou melhor… Para eleger quem? Uns não sabem o que fazem. Já fizeram e viu-se o resultado. Outros, não sabem sequer o dizem. E o que dizem hoje amanhã podem emendar. Uns só querem ser do contra. Outros perderam o comboio do tempo. Todos falam dum país que não existe, feito de gente ilusória, e tecido de realidades imaginárias…. Os portuguesitos, tesos, tristes e fartos, não cabem lá. Mas pois, hão-de ir a votos.
O Abacílio não se conteve e rompeu em aplausos, de lágrimas nos olhos. Que bem. Que belo! Que magníficas farsas, a encher de orgulho o peito luso! Apetecia-lhe agarrar na bandeira nacional e espalhar portugalidade por esse mundo fora, como outrora os ventos a levaram nas caravelas!
Estava tão entusiasmado que nem sequer esperou pelo fim das farsas. Ficou sem saber quem seria o próximo primeiro ministro. E já agora, o próximo presidente da pssembleia. Não se sabe. Ninguém sabe. Nem sei se alguém saberá depois das eleições. Talvez o senhor presidente saiba… Anda em retiro há tanto tempo… Ou então, se calhar, enfadou-se das farsas. Pôs uma máscara e ala que se faz tarde. Não fosse o orgulho luso que lhe inflamava as veias, até o Abacílio se punha a andar. Mas não. Não, que a Pátria o chama!

sexta-feira, 22 de abril de 2011

Vepres

Parecia-me verão aquele Abril, só desmentido pelos campos de erva verde e viçosa, pontilhados por malmequeres brancos e amarelos, e pelas giestas em flor e pela urze, que estende de vez em quando, na erva, um manto lilás, e pelos carapeteiros que na minha memória pendiam em grossos ramos floridos de branco de enormes jarrões na Matriz, nas cerimónias da Ressurreição, por entre nuvens de incenso e cantos e toalhas de alvura ofuscante, em honra do Ressuscitado.
Mas não era verão. Ainda. Estava calor e era pela Páscoa. Ia observando a sombra projectada da carruagem do comboio e pus-me a pensar na páscoa, na passagem. Pensei nos carapeteiros também. Gosto da flor. São ramos enormes, cobertos de flores, que não deixam ver os espinhos, fortes e bem afiados. Não se esquecem aqueles espinhos. E apesar deles, a beleza daqueles ramos é singular. Íamos sempre procurá-los para a Páscoa. Tinha qualquer coisa de apoteótico, potenciado pelo fumo do incenso e pela imensidão de ritos que a maioria das pessoas não entende. Foi aí que compreendi a importância do rito… Por causa do incenso e dos carapeteiros em flor. Tudo aquilo, cheio de Mistério, fazia-me querer entender. Querer tocar. Depois chegava a Páscoa. Depois de tanto ritual, de muito incenso e procissões. De dias e noites passados a correr. Era bom.
Perguntei um dia o que era a Páscoa. Porque é que era Páscoa. Sim, a Ressurreição e tudo isso. Mas se a páscoa era a ressurreição então porque é que lhe chamávamos Páscoa e não somente Ressurreição? Disseram-me que páscoa era Páscoa porque páscoa é passagem. Da morte à vida. Páscoa da Ressurreição. E é esperança. Renovação. Fazer de novo. Tornar novo. Por isso é que é na primavera… Porque na primavera a natureza renova-se. E o Ressuscitado recapitula tudo. Torna tudo Novo. Essa é a Páscoa. Achei bonito.
Depois, mais tarde, aprendi que havia pessoas que dedicavam a vida a estudar essas coisas. Aprendi sobre Theilhard de Chardin e como ele entende esta recapitulação no Ressuscitado. Percebi melhor o apoteótico. Aprendi hebraico e aprendi sobre o 14 de Nisan; sobre os cultos pagãos mistéricos; sobre as festas das primícias. A Páscoa é, sempre foi, passagem, em todas as culturas. Respeitei mais a Páscoa, mesmo agora que já não me impressionam as nuvens de incenso e os ramos dos carapeteiros. Gostava, contudo, de me sentir renovado…
De todas as coisas da Páscoa, a que gosto mais é a esperança. Levei anos a compreender isso. Percebi que mesmo o mais belo tem espinhos, como os carapeteiros. Inter vepres rosae nascuntur. Mas apesar dos espinhos, é belo. Não é fácil viver pela esperança, e acreditar que ela renova, quando tudo à nossa volta de desmorona. Mas é assim. Pensei na caixa de Pandora, mesmo sendo Páscoa. Quando todos os males saíram da caixa e se espalharam pelo mundo, saiu também uma coisa frágil: era a esperança. O futuro não parece bom. Não sei como será esta passagem. Mas haverá mais Páscoas, com ramos de carapeteiros floridos, pelo menos na minha memória. Na terra onde passo a Páscoa já nada é como na minha memória. Mas ainda é Páscoa. E eu tenho a minha memória para me fazer lembrar do encanto do Mistério. E também ainda tenho a esperança.

Adoramus te Christe, et benedicimus tibi, quia per sanctam crucem tuam redemisti mundum.

Boa Páscoa. Muitas amêndoas. E depressa, antes que o FMI as penhore...

domingo, 3 de abril de 2011

O guardador de sonhos

Então pediram-lhe: “Fala-nos da ingratidão”. “Certo homem, guardador de sonhos, apascentava o seu rebanho nos campos. O seu rebanho era grande e estimado, e cuidava dele como dum filho, de tal modo, que pelas redondezas, todos o conheciam e elogiavam. Vivia pobre, mas não esperava nada, porque tinha sonhos, e os seus eram os mais belos e mais cobiçados. Vivia simples, mas não esperava nada, porque tinha sonhos, e os seus chegavam para lhe completar a vida. Vivia satisfeito, e não desejava mais nada. Vivia também só, mas nunca se sentia sozinho, porque tinha os sonhos, que o acompanhavam. Nada esperava, a não ser ver os seus sonhos crescerem e tornarem-se concretos, e fazerem-se realidade, da mesma maneira que um pai se compraz no filho que, ontem criança, se faz homem. E o completa. Assim era o guardador de sonhos. Um dia, apareceu um estranho. Andava só e não tinha sonhos. Vivia triste e nada o acalentava. Era pobre e ninguém lhe oferecia sequer as migalhas dos sonhos. Era faminto, sem ter o que o satisfizesse. Esperava nada, mas porque nada era o que tinha e a vida lhe dava. Passou mendigo, como passam os desesperados, de cara no chão, indo sem rumo, puxando as pernas para caminho nenhum. O guardador de sonhos compadece-se dele, porque nada entristece mais um homem do que ver um seu semelhante sem esperança. 'Amigo', disse-lhe, 'senta-te comigo à minha mesa. Sou pobre e nada tenho, mas deixa-me lavar-te as feridas, dar-te de vestir e dividir contigo o pão do meu dia'. Comeram e saciaram-se e o guardador de sonhos deixou que o estranho pernoitasse em casa dele. Conversaram até o sono tomar conta deles. O estranho sentiu-se grato por ter um tecto nessa noite, o guardador de sonhos por ter alguém com quem rir. De manhã cedo, o guardador de sonhos saiu para cuidar do seu rebanho. O estranho saiu com ele, dizendo: 'Deixa-me ajudar-te com o teu rebanho, antes de seguir o meu caminho.' Já o sol ia alto quando o estranho se pôs a caminho. 'Quando voltares, aqui estarei', disse-lhe o guardador de sonhos. Passaram-se dias, até que o estranho tornou a passar pela casa do guardador de sonhos. 'Amigo, és bem-vindo à minha mesa'. Comeram e beberam, conversaram e riram. O estranho ficou grato, mais uma vez, pelo tecto nessa noite; o guardador de sonhos pela conversa. No dia seguinte, o guardador de sonhos disse-lhe: ’Confio-te o que tenho de mais precioso. Toma. Leva um sonho’. E ofereceu-lhe um sonho. O homem segurou-o com cuidado nas mãos em concha, agradeceu com lágrimas, e seguiu o seu caminho. Passaram dias e semanas, sem que o guardador de sonhos nada mais tivesse ouvido ou visto do estranho, que chamava amigo. Certo dia, porém, precisou de ir à cidade e pôs-me a caminho. Chegando lá, viu grande comoção de gente e aproximou-se para ver o que era. Passava pela multidão um homem muito rico, acompanhado dos seus criados. Era de caminhar altivo, vestido de ricos panos. Todos se juntavam para o ver, porque se tornara rico da noite para o dia. O guardador de sonhos furou a custo pela turba, aproximou-se e tocou-lhe no ombro. ‘Amigo’, e logo um dos criados o derrubou ao chão batendo-lhe. ‘Como te atreves?’ ‘Este homem é meu amigo’, respondeu o guardador de sonhos. O rico olhou para ele e perguntou: ‘Porque me chamas amigo? Não te conheço. Vai-te daqui’. O guardador de sonhos nada disse. Levantou-se, voltou costas à multidão e foi tratar dos seus assuntos. Depois, seguiu para casa, deixando pelo caminho lágrimas. Procurou consolo nos seus sonhos. Passaram dias e semanas, e o guardador de sonhos esqueceu-se do rico ingrato. Tratava dos seus sonhos. Era pobre, mas não esperava mais nada senão os sonhos. Estava só, mas não se sentia sozinho, enquanto tivesse os seus sonhos. Certo dia, viu passar um mendigo. Caminhava como quem já nada espera. O guardador de sonhos chamou-o e quis dar-lhe algum conforto. Ao chegar junto dele, reconheceu-o. Era o rico ingrato. ‘Que aconteceu?’, perguntou o guardador de sonhos. ‘Amigo, perdão. Sei que agi mal para contigo. Estava cego. Tudo o que ganhei, com o sonho que me deste, perdi. Voltei a ser um errante’. ‘O que passou, passou. Vem sentar-te comigo à mesa’, disse o guardador de sonhos. Acolheu-o na sua casa novamente, sem rancor, porque quem está satisfeito com o que tem não se deixa conquistar pelo rancor. Nem pelo ódio. Falaram e falaram. Comeram e riram. O guardador de sonhos ouviu a história do rico ingrato, que mesmo quando foi rico era mendigo. Nessa noite, lembrou-se das lágrimas derramadas. E foi grato por elas. No dia seguinte, antes que o mendigo quisesse tomar caminho, disse-lhe: ‘Amigo, vou dar-te outro sonho. Mas desta vez, ficarás comigo por um tempo. Vou ensinar-te a cuidar-te dele para que não se torne ilusão. Quando te ensinar tudo o sei, seguirás então a tua vida. E o sonho seguirá contigo’. O mendigo caiu-lhe aos pés: ‘Não sou digno!’ ‘Todos os homens são dignos. Também a mim alguém um dia me tomou pela mão e ensinou a pegar nos sonhos’. Passaram dias e dias. O guardador de sonhos ensinava tudo quanto podia ao mendigo. Eram bons amigos. Mas chegou, por fim, o tempo em que o mendigo pegou no sonho e partiu. Mas a amizade que os unia era forte. Por isso a tristeza não foi maior que o desejo de querer bem. O guardador de sonhos não o podia segurar numa vida que não era a dele, nem vedar-lhe o caminho que o esperava. E assim passaram mais dias e semanas, sem que nada de novo soubesse do seu amigo. Certa manhã, pôs-se a caminho da cidade, a tratar de assuntos. Chegado lá, viu uma grande multidão que aclamava alguém que passava. Aproximou-se para ver. Era o mendigo. Ficara outra vez rico com o sonho. Vestia-se outra vez de tecidos finos. Passeava-se altivo, seguido por um séquito de criados maldispostos e zelosos. Furou a multidão a custo, para lhe chegar: ‘Amigo!’ Um dos criados derrubou-o com um encontrão. ‘Quem és tu para me chamares amigo? Vai-te daqui’. E a multidão riu-se dele, enquanto voltou costas e se afastou. Nada disse. Tratou dos seus assuntos e voltou a casa, fazendo um caminho de lágrimas. Buscou novamente consolo nos sonhos. E a eles se dedicou, esquecendo-se do rico ingrato, que o humilhou. Foi então que, certo dia, voltou a ver o ingrato. Conheceu-o de longe. O rico ingrato atirou-se-lhe aos pés e pediu perdão. O guardador de sonhos compadeceu-se dele. Apanhou-o do chão e ouviu tudo quanto tinha para dizer. Falaram e falaram. O guardador de sonhos perdoou-o novamente. No dia seguinte, o mendigo disse-lhe: ‘Amigo, sei que não mereço, nem tenho o direito de te pedir, mas gostaria de te pedir mais um sonho’. O guardador de sonhos ficou em silêncio um momento. Depois perguntou: ‘Foi para isso então que vieste ter comigo… E para que o queres?’ ‘Para mudar de vida’. Iluminou-se o rosto ao guardador de sonhos, acreditando nas palavras do mendigo. ‘Pois aqui o tens. Estima-o. Já viste que se o não cuidares, te arruinará. Tudo quanto sei te ensinei. Usa-o com sabedoria e encontrarás a felicidade. A felicidade segue o coração. Da abundância do que nele houver se alimentará o teu sonho. E a tua felicidade.’ E o mendigo partiu novamente. Passaram muitos meses até que o guardador de sonhos teve de voltar à cidade. Logo que chegou notou, novamente, a multidão que se apinhava. Aproximou-se também para ver. Era o mendigo, outra vez rico. Entristeceu-se por ele. Passou pela multidão, mas os criados do rico impediram-no de se aproximar. ‘Vens para pedir, louco?’, perguntou-lhe o rico, do alto dum estrado finamente talhado. A multidão perdeu-se de riso, ao ver como os criados manietavam o guardador de rebanhos. ‘Vai-te daqui. E leva as tuas palavras. Palavras não me contentam, não me compram vestidos nem pagam criados.’ O guardador de sonhos levantou-se e disse: ‘Por três vezes te estendi a mão. Por três vezes te acolhi. Por três vezes te confiei os meus tesouros. E por três vezes me menosprezaste’. O rico irou-se com aquelas palavras. ‘Some-te daqui ou mando prender-te’. O guardador de sonhos voltou a casa, semeando novamente lágrimas. Consolaram-no os sonhos. No dia seguinte, viu ao longe que o rico vinha ao seu encontro. Vinha sozinho. Sem criados e sem multidão para o aclamar. Atirou-se-lhe aos pés: ‘Perdão. Não sou digno!’ ‘Todo o homem é digno’, respondeu-lhe o guardador de sonhos. ‘A não ser que perca a dignidade de ser homem. A dignidade não é minha para que ta dê, nem tu a podes ter se a ela renunciares. De cada vez que aqui vieste, alimentei-me, confortei-te, acolhi-te, estendi-te a mão, o ouvido e o coração. Confiei-te a sabedoria dos sonhos e ofereci-tos, para que deles cuidasses e satisfizesses. Por três vezes me humilhaste e esbanjaste os sonhos que te dei. Conseguiste ficar rico por fim, mas sem sonhos. Tens ouro e prata, servos e bons vestidos. Mas és oco, porque o teu coração não conhece mais nada. Rico que sejas, continuas mendigo, que procurando não quer encontrar, pedindo não sabe aceitar, e aceitando cospe e intruja a mão que o levanta. Procuras perdão? Pois bem, três vezes semeei lágrimas no caminho da cidade até aqui. Traz-me uma e encontrarás perdão.’ ‘Mas, amigo, como posso eu encontrar uma lágrima no caminho? Por certo já a poeira e o sol as secaram’, respondeu incrédulo o rico ingrato. ‘As lágrimas que nascem da ingratidão jamais secam. Quando conheceres a gratidão conseguirás encontrá-las. Então encontrarás o perdão para ti próprio.’ Partiu o rico e o guardador de sonhos dedicou-se aos seus sonhos. Era grato por eles. Passaram dias e dias. Muito tempo. E o rico continua a percorrer o caminho todos os dias, à procura duma lágrima. Soubera ele, que encontrando a gratidão, as suas lágrimas lhe haveriam de remir as lágrimas do guardador de sonhos.”

sexta-feira, 11 de março de 2011

A máscara de Abacílio

Abacílio andava preocupado. Era pelo Carnaval. Preocupado com os festejos, atormentava-se por não ter máscara. Não sabia de que se mascarar. Andando pela rua, assim angustiado, viu uma loja pequenina, mas muito arranjadinha, toda cheia de luzes e cores, com balões à porta e meninas bonitas ao balcão. Vendiam-se ali máscaras de Carnaval! Entrou afoito, animado com a perspectiva de ali poder encontrar a sua máscara para o cortejo.
Olhou, olhou, passeou e revirou, mas nada. Umas porque eram grandes, outras porque eram pequenas; umas por serem feias, outras porque serem iguais às de toda a gente, certo é que nenhuma agradava ao Abacílio.
Veio então uma vetusta senhora, muito elegante, de sorriso branco e modos portentosos. Trazia nas mãos uma máscara. Era perfeita! Toda ela à medida, bem proporcionada, de feições robustas, medonha quanto baste. Tudo o que se quer numa máscara. Brilharam os olhos de Abacílio, enquanto a velha senhora lhe estendia a máscara.
“De que é? De que é?”, perguntava sem se conter. A velha senhora segredou-lhe ao ouvido, e ele riu a bom rir, feliz por ter a sua máscara. Saiu a correr, depois de pagar, claro está, que Abacílio era jovem mas era honesto. Era cara. Mas podia pagar a prestações. Em cinco anos pela moeda antiga, ou em três, e amortizações por mais uns quantos, na moeda de agora.
Aprumou-se a rigor, colocou a sua máscara nova e lá foi.
A rua já fervilhava de gente, tudo mascarado. Ouvia-se o riso e os guinchos deliciados dos mais pequenos. Chegou ao corso. Toda a gente admirava a máscara nova do Abacílio. Ele cumprimentava os demais e ia passando, inchado de vaidade: “Eu cá, tenho uma máscara de doutor!”
“De doutor!”, exclamavam os foliões.
Não tardou muitos que toda a gente o cercasse, a admirar a máscara. Juntaram-se e juntaram-se, tantos foliões que não se contavam.
Chegaram, por fim, os amigos e conhecidos de Abacílio, também eles a rigor. Qual não foi o espanto do Abacílio, ao ver que os amigos traziam também uma máscara igual à sua. Pudesse ver-se-lhe a cara e estaria mais branca que a máscara, agora descorada e sem brilho.
“Ó Abacílio, de que é a tua máscara?”
“É de doutor”, respondeu com voz sumida.
“A minha é de engenheiro.”
“A minha de técnico.”
“E a minha de empregado qualificado”.
“Pois a minha, é de colaborador”, disse, emproado um dos amigos.
“Qual colaborador, qual carapuça. Pois se são todas iguais!”, exclamou o Abacílio. “Raio da velha. Se a apanho! Custou-me esta merda cinco anos!”
“A minha três. Mas com juros e amortizações.”
Os foliões começaram a rir-se.
“Ó rapazes, deixem-se disso. Então vocês não vêm que estão todos mascarados de igual?”
“Pois isso vemos. Só não sabemos é de quê…”
“De parvos, senhores. E de parvos escravizados!
“Ai o raio da velha, que nos enganou a todos!”, exclamou o Abacílio. “Ó malta! Às favas para o corso. Vamos mas é atrás da velha”.
E puseram-se em debandada, com o Abacílio de máscara em punho, a pedir os cinco anos de volta. Atrás dele, os amigos, e atrás dos amigos a multidão dos foliões. Todos bradavam à velha.
Correram a bom correr e só pararam quando já não tinham fôlego. Da velha nem sinal. Ia um desfile a passar. Carros bonitos, bem decorados, gente bem vestida e anafada. Todos perdidos de riso. A encimar o desfile ia a velha, num trono. Toda ela de cetim e madrepérola. Acenou-lhes com aquele sorriso branco e untuoso.
Eles bem fizeram menção de a perseguir, mas havia muita gente a proteger o corso. Eram gordos, enormes mesmo, bem juntos em fileira, e os foliões não conseguiam passar. Dos carros, os bem-postos puseram-se a perguntar quem era aquela gente.
“São os parvos”, respondeu a velha. E todos gargalharam, bem-postos e gordos, todos num conluio. “Velha senhora”, gritou um dos bem-postos, “atira-lhes com notas de 500, que os acalma”.
“Está bem. Mas uma por mês. Só uma!” E riram e riram. Passava o corso, e os foliões ali parados não podiam senão olhar.
“Ó Abacílio”, gritou um dos bem-postos, “de que te mascaras?”
“De parvo”.
Ai que parvos. Que parvos que nós somos!
Fim da festa.

segunda-feira, 7 de março de 2011

Quaerendo

Estava outra vez a chover. Gosto da chuva. É aborrecido andar à chuva. Mas eu gosto. Era de noite e pûs-me a reparar nos pequenos regatos de água, que se formavam junto aos passeios e que corriam rua abaixo, como se fossem torrentes dum dilúvio em miniatura.
Não havia ninguém na rua. Andei devagar, permitindo que de vez em quando uns pingos escapassem ao guarda-chuva e me caíssem na cara. Reparei como a luz dos candeeiros, presa pela chuva a cair, formava um pequena auréola ao redor das lâmpadas. Achei giro. Pensei que era um cenário engraçado para uma história de detectives. Imaginei um homem, de gabardine e chapéu a descer a rua. O cigarro ao canto da boca fumegava sem ser fumado. Estava ali apenas por vício. Só se via uma luzinha pequena, a dar sinal de que ainda estava aceso. Ia a olhar para o chão, para os regatos de água. Não trazia guarda-chuva.
“Boa noite.”
“Boa noite”, respondi.
“Vem de baixo?”
Pergunta óbvia, pensei. Que raio de detective. Pensaria ele que eu estava ali parado na rua só por gosto?... Gosto de chuva. Mas não de estar na rua com chuva. Mesmo com as auréolas dos candeeiros e os pingos na cara. “Sim.”
“O senhor, por acaso, não viu um papel verde?”
“Não... não reparei. Está tudo encharcado. Se calhar desfez-se. Ou então...”
“Foi levado pela água, sim” - interrompeu-me ele. Franzi o sobrolho. Não gosto de ser interrompido. Mesmo que seja por um detective. “Mas é importante. Muito importante” - e seguiu adiante, de olhos pregados no chão.
Eu olhei outra vez para os candeeiros, sem guarda-chuva. Fiquei assim, de olhos fechados a sentir as gotas frias na cara. Não se ouvia nada. Só o pingue-pingue. Suspirei. Estava tão cansado. E com saudades. Fiquei ali, quieto, até a chuva escorrer pela cara, como se fossem lágrimas.
“Ei!”
Olhei para trás. Era o detective.
“Achei!”
Acenei e esbocei um sorriso de assentimento. Ele acenou de volta.
Retomei o caminho de casa. Senti o andar lento, pesado. Como se levasse nos pés o peso da minha vida. Não gostava dela, da vida. Nem quando me deixava gozar a sensação da chuva a cair-me na cara. Nem quando abria a porta da casa, que dava para o quartinho alugado onde morava. Nem quando a cama quantinha me abraçava e eu tentava sossegar os pensamentos e dormir.
Gostava mais da chuva. Deitei-me e fiquei quieto, à espera que o calor se espalhasse pelo corpo e me entorpecesse. Ainda conseguia ouvir a chuva. Foi apenas um momento, até os pensamentos tomarem conta de mim e me quebrarem a quietude. Pensei nas dívidas. Na vida miserável. No emprego que tinha acabado de perder. Na semana péssima, vazia, tudo em vão. Nada. Nem um empregozinho. Pensei também que vivia há demasiado tempo no quartinho alugado, que detestava. E que não havia ninguém à minha espera à noite, nem ninguém se despedia de mim de manhã. Senti a cara molhada outra vez, mas não chovia no meu quarto... A vida. A vida... Pfff. É boa para quem tem sorte. Se ao menos a morte viesse. Se viesse e me levasse. Quem seria que me choraria? Alguém choraria?... Pûs-me a murmurar uma oração. Por que seria que ainda rezava? Continuei a murmurar uma prece. Mas rezava à morte. Não a Deus.
Bateram à porta. Não liguei. Queria tudo, menos ver alguém. Mesmo estando só. Pensei no oxímoro. Não havia ninguém para me aconchegar, mas eu não queria conversar. Não agora. Precisava daquela comiseração, sózinho, para impedir a lucidez de me fugir. Outra batida. Não gostava de me levantar depois de estar deitado. Muito menos de ter de descer as escadas até à porta da rua. Outra, mais forte. “Já vai!!!”, gritei, enquanto procurava o roupão. “Mas quem será a estas horas. Que raio!”
Desci devagar, porque os chinelos estavam-me largos e tinha medo de cair. “Já vai”, disse outra vez.
“Boa noite” - disse, pensativo.
“Boa noite”. Era uma senhora. Sem guarda-chuva. Trazia um manto com capuz, de um tecido meio aveludado. Não entendo nada de tecidos. Mas era bonito. Ainda chovia e os candeeiros ainda tinham auréolas de luz amarela.
“Posso entrar?”
“Faz favor de dizer” - respondi, não muito simpaticamente. Não sou simpático por natureza. Muito menos em roupão e chinelos largos.
Ela sorriu e olhou para mim. Eu, fiquei a olhar para ela. “Não me reconhece?”
“Na verdade, não estou a ver... lamento”.
Sorriu outra vez. Passou por mim e começou a subir as escadas.
“Mas olhe... Espere!” - disse-lhe numa voz mais autoritária. Achava pouca graça a desconhecidas de manto com capuz.
“Queria que viesse, aqui estou. Venha!”, e continuou a subir sem esperar por mim. Subi atrás dela, o mais depressa que pude, dada a condição dos chinelos. “Esta mulher tem fogo nos pés! Credo! Mas que raio de coisa”.
Parou à porta do quarto, até que eu chegasse para a mandar entrar. Instalámo-nos o melhor que o quarto nos permitia. Eu pasmo, ela sorridente.
“Continuo sem saber quem é ou o que deseja”, atalhei em jeito de início de conversa.
“Disseram-me que estava farto”.
“Eu? Farto?... Não estou a perceber”.
“A minha irmã está preocupada consigo. Diz que se desecantou.”
“Ah, a senhora é a irmã...”, respondi, pensando que ela seria a irmã da dona do quarto. Ela continuou, não sem antes sorrir mais uma vez. Sorria como se fosse dona de um segredo qualquer e aquilo começava a irritar-me.
“Estou aqui para chorar consigo”.
“Chorar comigo?!... Mas que conversa é essa?”
“A comiseração é um exercício muito mais frutuoso se for feita a dois.”
Não respondi. Olhámo-nos. Era a Morte. Mas como podia ser a Morte? Desde quando a morte bate à porta e anda por aí à chuva com mantos de capuz? “Afinal, sempre me fugiu a lucidez”, pensei. “Estou doido”.
“Surpeende-o que eu esteja aqui?”
Foi a minha vez de sorrir. Mas ela continuou: “Decidi vir. Tenho-o ouvido chamar por mim. Já nos conhecemos antes... Não se recorda?”
“Perdão” - sobrolho franzido outra vez.
“Não se lembra?... Era muito pequeno... É natural que se não se lembre...”
Mas lembrava. Lembrei-me de imediato. Era mesmo muito pequeno. Tinha tido um acidente. Caíra dum cavalo e estive entre a vida e a morte. Olhei bem para ela. Não me lembrava do manto, mas lembrava-me dos olhos e do sorriso. Lembrava-me daquela sensação de liberdade... De sentir o vento na cara. Lembro-me de ir a rir, de me debruçar no pescoço do cavalo e abraçá-lo. Adorava aquele cavalo. Lembro-me da luz do sol. Era primavera. A terra estava molhada ainda, mas tudo era verde e fresco, e vivo... Depois a queda. Lembro-me de voar por cima do cavalo, cair no chão e não ter tempo para me desviar dele. Caiu-me em cima. Lembro-me dos gritos do meu avô. Depois não ouvi mais nada. Só sentia a luz do sol. E ela a estender-me a mão. Sorria como agora. “Toca a levantar!” Lembro-me de me perguntar se podia ir com ela. “Ainda não pode ser. Há gente à espera. Mas um dia sim.” E piscou-me o olho. Devo ter dormido muito tempo. Quando acordei o meu avô tinha barba branca e olhos fundos.
“Continua a querer ir comigo, não é?”
Assenti. Pensei que a vida era injusta. Que não valia a pena.
“Essa conversa devia ter com a minha irmã... Não posso reponder-lhe a isso”. Olhei para ela. “A Vida. A Vida é minha irmã. Devia ter chamado por ela. O seu problema é com ela, não comigo. Mas já que estava aqui perto...”
“Isto é tudo tão...”
“Sim, eu sei. Mas já somos velhos conhecidos”. Piscou-me o olho outra vez. “E se fôssemos passear?”
“Passear? Com esta chuva?...”
“Vamos”, disse de mão estendida. Dei-lhe a mão. O sol estava quente. Era agradável senti-lo na cara. Estava outra vez no campo. Voltei a sentir o cheiro a terra molhada. E a sensação de liberdade. Apesar dos chinelos largos.
“Foi aqui que nos conhecemos”, disse.
“Pois foi”, assenti numa voz ausente, enquanto agradecia aquela sensação do calor do sol na cara e que me fazia sentir... vivo. “É muito injusto, tudo isto”.
“É. Justiça e Vida não são coisas iguais. Na verdade, a Justiça dá-se melhor comigo”. Outra piscadela de olho. “Recorda-se do que lhe disse que vinha fazer?”
“Sim. Chorar comigo.”
Não me lembrava das lágrimas serem tão purificadoras. Deixei-as vir, tratando a Morte como uma amiga e chorando com ela. Chorava por mim. Pelo desencanto.
“Não acha que seria maravilhoso se em vez de cemitérios tivéssemos florestas?” Pegou-me de novo na mão e começámos a caminhar, com o manto de veludo a arrastar pela erva húmida. “Se por cada pessoa que vem ter comigo nascesse uma árvore. E o mundo fosse todo verde, todo límpido, todo fresco. E se o vento as balouçasse, arrancando delas cânticos à Vida?”
Sorri. “Sim, acho que seria fantástico”. Na verdade, também não percebo nada de florestas. Nem de cemitérios. Mas assenti para lhe fazer a vontade.
“Não há propriamente um fim, sabe... Toda a gente pensa que há. Depois fica triste. Porque eu sou apenas uma passagem”.
“No tempo?”
“Na existência.”
Levantou-se vento e as árvores começaram a murmurar um cântico.
“Eu voltarei, meu caro amigo. E passaremos juntos, dessa vez. Mas não tenha pressa. Não deixe que a Vida lhe roube o viver. Cante e ria e chore. Ame e odei. Faça tudo o que tiver de fazer. Diga tudo o que lhe apetecer. Viva. Um dia de cada vez. Custa. A Justiça e a Vida não são as melhores amigas. Mas viva. A Vida não presta sem viver. Mesmo que por vezes pareça que vive sem si.”
Sentámos-nos e ficámos em silêncio. Depois levantou-se, pegou-me na mão e disse: “Penso que é tudo... Agora é tempo. O seu tempo. Aproveite-o!” Outra piscadela. “Até outro dia.”
Ainda chovia na rua. E eu gostava de ver as auréolas de luz dos candeeiros. Vi alguém que jazia prostrado no passeio, mais abaixo. Voltei para trás a correr. Aproximei-me devagar. Era o detective, de gabardine mas sem chapéu, completamente encharcado. Havia sangue na calçada. “Achei, achei”, disse numa voz sumida. Agarrava um papel verde na mão fechada.
“Pois foi. Achou.”

NOTA: Esta história de ficção foi criada a pedido do fotógrafo Bruno Silva, que pretende recontá-la através da fotografia. A seu tempo, será recontada no site do fotógrafo.

sábado, 22 de janeiro de 2011

O feio

Sou um homem de gostos simples. Gosto das coisas simples. Das pequenas. Das sem importância. Gosto de acordar cedo. De ouvir os pardais de manhã. Gosto de ouvir o vento nas folhas das árvores. Gosto de nevoeiro. De frio. Duma lareira acesa. Gosto da sensação de me deitar numa cama acabada de fazer. Gosto de casas de campo. Rústicas. Gosto de livros. Do cheiro do papel e de passar os dedos pelas páginas. Não gosto do barulho. De lugares cheios de gente. Da obcessão pelas marcas. Da confusão. Do luxo. Da futilidade. Da vaziez de espírito. Da confusão entre o que se é e o que se tem. Da incapacidade de se aceitar como se é. Não gosto da crítica burra. Nem da malícia. Nem da conivência entre compadres.
Deve ser por isso que as pessoas me acham bizarro. Seria excêntrico, se fosse rico. Como não sou, sou meramente estranho.
É um facto. Sou estranho. Sinto-me estranho ao mundo que me rodeia. Estou desadequado. As minhas prioridades são invariavelmente diferentes.
Há alguns anos tive um trabalho que me obrigava a apanhar um comboio de regresso a casa já depois das onze e meia da noite. Não gosto de trabalhar de noite. Só de escrever. Mas no trabalho de escrever a noite é conselheira. Assim como a manhã, ou tarde... Mas prefiro a noite. Uso-a como se fosse uma manta para as pernas. E gosto dela. Aconchega-me. E o silêncio deixa que as palavras se aproximem no lusco-fusco.
Mas não naquele trabalho. Nem a noite era conselheira nem eu consigo trabalhar bem de noite. Detestava-o. Mas tinha de ser. Também não gosto de viver numa sociedade em que tenho de trabalhar no que não gosto e, por consequência, o trabalho que faço não me realiza. Mas tem de ser.
Vinha, quase sempre, com uma colega, de horário semelhante. Tornámo-nos amigos, através das nossas conversas e da convivência pelo caminho. Nunca mais soube dela depois de sair desse trabalho. Curioso como as necessidades da vida nos moldam. E como as relações entre as pessoas dependem delas. Penso que me achava estranho. Sei mesmo que sim. Intrigava-a a minha forma de estar na vida. Gostava de conversar, enquanto aguardávamos pelo comboio, com olhos de sono. Gostava de ouvir o que eu pensava. E eu deixava-a ouvir. Pensava, muitas vezes, diferente de mim. Mas isso nunca nos impediu de continuar a conversar.
Certa vez ficou chocada porque eu, já não me lembro a que propósito, disse que era feio. Só ao fim de algum tempo é que percebi que ela estava de boca aberta a olhar para mim, sem saber o que dizer, só porque eu tinha dito que era feio. Calei-me. Primeiro porque não percebi de imediato o que tinha eu dito que a chocasse. Depois para ser ela a elucidar-me. Não deu grandes explicações. A resposta foi simples. “Ninguém é feio.” Gosto das coisas simples. Mas desta não, porque é hipócrita. Há muita gente feia. A fealdade não é uma coisa que tenha sido proscrita da face da Terra. Na verdade, sempre houve gente feia. Hoje não é excepção. Mas o choque dela era por duas razões: por eu o ter expressado abertamente e, sobretudo, por ela saber que era verdade, embora não o conseguisse admitir. Tranquilizei-a. Disse-lhe que não se devia chocar com o facto das coisas serem como são. Com os factos. Voltámos à conversa. E passou o choque. Dela. Não o meu. O meu choque foi ter percebido a dificuldade que as pessoas têm em aceitar as coisas como são e em dizê-las.
Para a sociedade de hoje é lícito pensar que alguém é feio. É bastante aceitável que se goze com alguém, na surdina, por ser feio. Mas não que se diga abertamente. E, certamente, nunca que alguém diga de si mesmo que é feio. Isto faz-me confusão. Prefere-se a hipocrisia. Por que razão alguém que é feio não há-de dizer que o é?... Claro que poderíamos atalhar que ninguém é realmente feio, isto é, que o ser íntimo da pessoa, aquilo que a pessoa é, não é feio. Mas eu acho que pode ser. Existem pessoas feias. Muitas pessoas e muito feias. Por mais que isso custe. Mas sim, no caso da conversa do comboio, eu referia-me à beleza física, e foi isso que despoletou a reacção de choque. O mundo em que vivemos não permite que alguém diga de si mesmo que é feio. Simplesmente porque o paradigma actual é precisamente o oposto. E quem não vive pelo paradigma, está fora dele e, consequentemente, a arriscar estar fora do mundo.
Há riscos nesta maneira de ver. Se dividirmos o mundo entre ricos e pobres, bonitos e feios, campónios e citadinos, totós e populares, retrógrados e evoluídos, heteros e metros, arricamo-nos a deixar de ver as pessoas pelo que são e a olhá-las apenas pelo que aparentam ser. Como nos aparecem. É isto o apelo da beleza, como paradigma. Uma sociedade onde apenas contam os sorrisos bonitos e simpáticos, a estatura alta e bem proporcionada, as feições mais primorosas e os corpos bem definidos. A beleza torna-se uma ditadura do aparente. Já não como uma meta. Mas como uma condição. Só têm lugar os que enquadram. Ser feio, ainda que se seja, está fora de questão.
O problema que daqui decorre é evidente. Nem todas as pessoas são bonitas. Fisicamente apelativas. Os que o são vêem abrir-se-lhe as portas; os que o não são têm de bater com força. E esperar que alguém abra. Umberto Eco tem duas obras sobre este assunto. Magníficas. Em português, entitulam-se História da Beleza e História do Feio. Leitura recomendada.
O apelo da beleza e o repúdio do feio podem, realmente, marcar uma vida. Marcam com certeza objectivos. Comportamentos, formas de estar, posturas de vida. Opções. De vária ordem: social, profissional, mesmo pessoais. O exemplo mais trágico, e que naturalmente passará na mente de todos por estes dias, é o do caso Castro/Seabra. Ambos vítimas, cada um na sua perspectiva. E ambos culpados, também cada um na sua medida. Ambos fruto da época. Sucumbidos a ela e aos seus ditâmes. Triste.
Gosto das coisas simples da vida. De acordar cedo, com o barulhosdos pardais e o vento nas árvores. De cheirar a humidade do nevoeiro e abrir as cortinas ao sol. Gosto até de ser feio, desde que isso signifique ser livre. E estar consciente de mim.