sexta-feira, 11 de março de 2011

A máscara de Abacílio

Abacílio andava preocupado. Era pelo Carnaval. Preocupado com os festejos, atormentava-se por não ter máscara. Não sabia de que se mascarar. Andando pela rua, assim angustiado, viu uma loja pequenina, mas muito arranjadinha, toda cheia de luzes e cores, com balões à porta e meninas bonitas ao balcão. Vendiam-se ali máscaras de Carnaval! Entrou afoito, animado com a perspectiva de ali poder encontrar a sua máscara para o cortejo.
Olhou, olhou, passeou e revirou, mas nada. Umas porque eram grandes, outras porque eram pequenas; umas por serem feias, outras porque serem iguais às de toda a gente, certo é que nenhuma agradava ao Abacílio.
Veio então uma vetusta senhora, muito elegante, de sorriso branco e modos portentosos. Trazia nas mãos uma máscara. Era perfeita! Toda ela à medida, bem proporcionada, de feições robustas, medonha quanto baste. Tudo o que se quer numa máscara. Brilharam os olhos de Abacílio, enquanto a velha senhora lhe estendia a máscara.
“De que é? De que é?”, perguntava sem se conter. A velha senhora segredou-lhe ao ouvido, e ele riu a bom rir, feliz por ter a sua máscara. Saiu a correr, depois de pagar, claro está, que Abacílio era jovem mas era honesto. Era cara. Mas podia pagar a prestações. Em cinco anos pela moeda antiga, ou em três, e amortizações por mais uns quantos, na moeda de agora.
Aprumou-se a rigor, colocou a sua máscara nova e lá foi.
A rua já fervilhava de gente, tudo mascarado. Ouvia-se o riso e os guinchos deliciados dos mais pequenos. Chegou ao corso. Toda a gente admirava a máscara nova do Abacílio. Ele cumprimentava os demais e ia passando, inchado de vaidade: “Eu cá, tenho uma máscara de doutor!”
“De doutor!”, exclamavam os foliões.
Não tardou muitos que toda a gente o cercasse, a admirar a máscara. Juntaram-se e juntaram-se, tantos foliões que não se contavam.
Chegaram, por fim, os amigos e conhecidos de Abacílio, também eles a rigor. Qual não foi o espanto do Abacílio, ao ver que os amigos traziam também uma máscara igual à sua. Pudesse ver-se-lhe a cara e estaria mais branca que a máscara, agora descorada e sem brilho.
“Ó Abacílio, de que é a tua máscara?”
“É de doutor”, respondeu com voz sumida.
“A minha é de engenheiro.”
“A minha de técnico.”
“E a minha de empregado qualificado”.
“Pois a minha, é de colaborador”, disse, emproado um dos amigos.
“Qual colaborador, qual carapuça. Pois se são todas iguais!”, exclamou o Abacílio. “Raio da velha. Se a apanho! Custou-me esta merda cinco anos!”
“A minha três. Mas com juros e amortizações.”
Os foliões começaram a rir-se.
“Ó rapazes, deixem-se disso. Então vocês não vêm que estão todos mascarados de igual?”
“Pois isso vemos. Só não sabemos é de quê…”
“De parvos, senhores. E de parvos escravizados!
“Ai o raio da velha, que nos enganou a todos!”, exclamou o Abacílio. “Ó malta! Às favas para o corso. Vamos mas é atrás da velha”.
E puseram-se em debandada, com o Abacílio de máscara em punho, a pedir os cinco anos de volta. Atrás dele, os amigos, e atrás dos amigos a multidão dos foliões. Todos bradavam à velha.
Correram a bom correr e só pararam quando já não tinham fôlego. Da velha nem sinal. Ia um desfile a passar. Carros bonitos, bem decorados, gente bem vestida e anafada. Todos perdidos de riso. A encimar o desfile ia a velha, num trono. Toda ela de cetim e madrepérola. Acenou-lhes com aquele sorriso branco e untuoso.
Eles bem fizeram menção de a perseguir, mas havia muita gente a proteger o corso. Eram gordos, enormes mesmo, bem juntos em fileira, e os foliões não conseguiam passar. Dos carros, os bem-postos puseram-se a perguntar quem era aquela gente.
“São os parvos”, respondeu a velha. E todos gargalharam, bem-postos e gordos, todos num conluio. “Velha senhora”, gritou um dos bem-postos, “atira-lhes com notas de 500, que os acalma”.
“Está bem. Mas uma por mês. Só uma!” E riram e riram. Passava o corso, e os foliões ali parados não podiam senão olhar.
“Ó Abacílio”, gritou um dos bem-postos, “de que te mascaras?”
“De parvo”.
Ai que parvos. Que parvos que nós somos!
Fim da festa.

segunda-feira, 7 de março de 2011

Quaerendo

Estava outra vez a chover. Gosto da chuva. É aborrecido andar à chuva. Mas eu gosto. Era de noite e pûs-me a reparar nos pequenos regatos de água, que se formavam junto aos passeios e que corriam rua abaixo, como se fossem torrentes dum dilúvio em miniatura.
Não havia ninguém na rua. Andei devagar, permitindo que de vez em quando uns pingos escapassem ao guarda-chuva e me caíssem na cara. Reparei como a luz dos candeeiros, presa pela chuva a cair, formava um pequena auréola ao redor das lâmpadas. Achei giro. Pensei que era um cenário engraçado para uma história de detectives. Imaginei um homem, de gabardine e chapéu a descer a rua. O cigarro ao canto da boca fumegava sem ser fumado. Estava ali apenas por vício. Só se via uma luzinha pequena, a dar sinal de que ainda estava aceso. Ia a olhar para o chão, para os regatos de água. Não trazia guarda-chuva.
“Boa noite.”
“Boa noite”, respondi.
“Vem de baixo?”
Pergunta óbvia, pensei. Que raio de detective. Pensaria ele que eu estava ali parado na rua só por gosto?... Gosto de chuva. Mas não de estar na rua com chuva. Mesmo com as auréolas dos candeeiros e os pingos na cara. “Sim.”
“O senhor, por acaso, não viu um papel verde?”
“Não... não reparei. Está tudo encharcado. Se calhar desfez-se. Ou então...”
“Foi levado pela água, sim” - interrompeu-me ele. Franzi o sobrolho. Não gosto de ser interrompido. Mesmo que seja por um detective. “Mas é importante. Muito importante” - e seguiu adiante, de olhos pregados no chão.
Eu olhei outra vez para os candeeiros, sem guarda-chuva. Fiquei assim, de olhos fechados a sentir as gotas frias na cara. Não se ouvia nada. Só o pingue-pingue. Suspirei. Estava tão cansado. E com saudades. Fiquei ali, quieto, até a chuva escorrer pela cara, como se fossem lágrimas.
“Ei!”
Olhei para trás. Era o detective.
“Achei!”
Acenei e esbocei um sorriso de assentimento. Ele acenou de volta.
Retomei o caminho de casa. Senti o andar lento, pesado. Como se levasse nos pés o peso da minha vida. Não gostava dela, da vida. Nem quando me deixava gozar a sensação da chuva a cair-me na cara. Nem quando abria a porta da casa, que dava para o quartinho alugado onde morava. Nem quando a cama quantinha me abraçava e eu tentava sossegar os pensamentos e dormir.
Gostava mais da chuva. Deitei-me e fiquei quieto, à espera que o calor se espalhasse pelo corpo e me entorpecesse. Ainda conseguia ouvir a chuva. Foi apenas um momento, até os pensamentos tomarem conta de mim e me quebrarem a quietude. Pensei nas dívidas. Na vida miserável. No emprego que tinha acabado de perder. Na semana péssima, vazia, tudo em vão. Nada. Nem um empregozinho. Pensei também que vivia há demasiado tempo no quartinho alugado, que detestava. E que não havia ninguém à minha espera à noite, nem ninguém se despedia de mim de manhã. Senti a cara molhada outra vez, mas não chovia no meu quarto... A vida. A vida... Pfff. É boa para quem tem sorte. Se ao menos a morte viesse. Se viesse e me levasse. Quem seria que me choraria? Alguém choraria?... Pûs-me a murmurar uma oração. Por que seria que ainda rezava? Continuei a murmurar uma prece. Mas rezava à morte. Não a Deus.
Bateram à porta. Não liguei. Queria tudo, menos ver alguém. Mesmo estando só. Pensei no oxímoro. Não havia ninguém para me aconchegar, mas eu não queria conversar. Não agora. Precisava daquela comiseração, sózinho, para impedir a lucidez de me fugir. Outra batida. Não gostava de me levantar depois de estar deitado. Muito menos de ter de descer as escadas até à porta da rua. Outra, mais forte. “Já vai!!!”, gritei, enquanto procurava o roupão. “Mas quem será a estas horas. Que raio!”
Desci devagar, porque os chinelos estavam-me largos e tinha medo de cair. “Já vai”, disse outra vez.
“Boa noite” - disse, pensativo.
“Boa noite”. Era uma senhora. Sem guarda-chuva. Trazia um manto com capuz, de um tecido meio aveludado. Não entendo nada de tecidos. Mas era bonito. Ainda chovia e os candeeiros ainda tinham auréolas de luz amarela.
“Posso entrar?”
“Faz favor de dizer” - respondi, não muito simpaticamente. Não sou simpático por natureza. Muito menos em roupão e chinelos largos.
Ela sorriu e olhou para mim. Eu, fiquei a olhar para ela. “Não me reconhece?”
“Na verdade, não estou a ver... lamento”.
Sorriu outra vez. Passou por mim e começou a subir as escadas.
“Mas olhe... Espere!” - disse-lhe numa voz mais autoritária. Achava pouca graça a desconhecidas de manto com capuz.
“Queria que viesse, aqui estou. Venha!”, e continuou a subir sem esperar por mim. Subi atrás dela, o mais depressa que pude, dada a condição dos chinelos. “Esta mulher tem fogo nos pés! Credo! Mas que raio de coisa”.
Parou à porta do quarto, até que eu chegasse para a mandar entrar. Instalámo-nos o melhor que o quarto nos permitia. Eu pasmo, ela sorridente.
“Continuo sem saber quem é ou o que deseja”, atalhei em jeito de início de conversa.
“Disseram-me que estava farto”.
“Eu? Farto?... Não estou a perceber”.
“A minha irmã está preocupada consigo. Diz que se desecantou.”
“Ah, a senhora é a irmã...”, respondi, pensando que ela seria a irmã da dona do quarto. Ela continuou, não sem antes sorrir mais uma vez. Sorria como se fosse dona de um segredo qualquer e aquilo começava a irritar-me.
“Estou aqui para chorar consigo”.
“Chorar comigo?!... Mas que conversa é essa?”
“A comiseração é um exercício muito mais frutuoso se for feita a dois.”
Não respondi. Olhámo-nos. Era a Morte. Mas como podia ser a Morte? Desde quando a morte bate à porta e anda por aí à chuva com mantos de capuz? “Afinal, sempre me fugiu a lucidez”, pensei. “Estou doido”.
“Surpeende-o que eu esteja aqui?”
Foi a minha vez de sorrir. Mas ela continuou: “Decidi vir. Tenho-o ouvido chamar por mim. Já nos conhecemos antes... Não se recorda?”
“Perdão” - sobrolho franzido outra vez.
“Não se lembra?... Era muito pequeno... É natural que se não se lembre...”
Mas lembrava. Lembrei-me de imediato. Era mesmo muito pequeno. Tinha tido um acidente. Caíra dum cavalo e estive entre a vida e a morte. Olhei bem para ela. Não me lembrava do manto, mas lembrava-me dos olhos e do sorriso. Lembrava-me daquela sensação de liberdade... De sentir o vento na cara. Lembro-me de ir a rir, de me debruçar no pescoço do cavalo e abraçá-lo. Adorava aquele cavalo. Lembro-me da luz do sol. Era primavera. A terra estava molhada ainda, mas tudo era verde e fresco, e vivo... Depois a queda. Lembro-me de voar por cima do cavalo, cair no chão e não ter tempo para me desviar dele. Caiu-me em cima. Lembro-me dos gritos do meu avô. Depois não ouvi mais nada. Só sentia a luz do sol. E ela a estender-me a mão. Sorria como agora. “Toca a levantar!” Lembro-me de me perguntar se podia ir com ela. “Ainda não pode ser. Há gente à espera. Mas um dia sim.” E piscou-me o olho. Devo ter dormido muito tempo. Quando acordei o meu avô tinha barba branca e olhos fundos.
“Continua a querer ir comigo, não é?”
Assenti. Pensei que a vida era injusta. Que não valia a pena.
“Essa conversa devia ter com a minha irmã... Não posso reponder-lhe a isso”. Olhei para ela. “A Vida. A Vida é minha irmã. Devia ter chamado por ela. O seu problema é com ela, não comigo. Mas já que estava aqui perto...”
“Isto é tudo tão...”
“Sim, eu sei. Mas já somos velhos conhecidos”. Piscou-me o olho outra vez. “E se fôssemos passear?”
“Passear? Com esta chuva?...”
“Vamos”, disse de mão estendida. Dei-lhe a mão. O sol estava quente. Era agradável senti-lo na cara. Estava outra vez no campo. Voltei a sentir o cheiro a terra molhada. E a sensação de liberdade. Apesar dos chinelos largos.
“Foi aqui que nos conhecemos”, disse.
“Pois foi”, assenti numa voz ausente, enquanto agradecia aquela sensação do calor do sol na cara e que me fazia sentir... vivo. “É muito injusto, tudo isto”.
“É. Justiça e Vida não são coisas iguais. Na verdade, a Justiça dá-se melhor comigo”. Outra piscadela de olho. “Recorda-se do que lhe disse que vinha fazer?”
“Sim. Chorar comigo.”
Não me lembrava das lágrimas serem tão purificadoras. Deixei-as vir, tratando a Morte como uma amiga e chorando com ela. Chorava por mim. Pelo desencanto.
“Não acha que seria maravilhoso se em vez de cemitérios tivéssemos florestas?” Pegou-me de novo na mão e começámos a caminhar, com o manto de veludo a arrastar pela erva húmida. “Se por cada pessoa que vem ter comigo nascesse uma árvore. E o mundo fosse todo verde, todo límpido, todo fresco. E se o vento as balouçasse, arrancando delas cânticos à Vida?”
Sorri. “Sim, acho que seria fantástico”. Na verdade, também não percebo nada de florestas. Nem de cemitérios. Mas assenti para lhe fazer a vontade.
“Não há propriamente um fim, sabe... Toda a gente pensa que há. Depois fica triste. Porque eu sou apenas uma passagem”.
“No tempo?”
“Na existência.”
Levantou-se vento e as árvores começaram a murmurar um cântico.
“Eu voltarei, meu caro amigo. E passaremos juntos, dessa vez. Mas não tenha pressa. Não deixe que a Vida lhe roube o viver. Cante e ria e chore. Ame e odei. Faça tudo o que tiver de fazer. Diga tudo o que lhe apetecer. Viva. Um dia de cada vez. Custa. A Justiça e a Vida não são as melhores amigas. Mas viva. A Vida não presta sem viver. Mesmo que por vezes pareça que vive sem si.”
Sentámos-nos e ficámos em silêncio. Depois levantou-se, pegou-me na mão e disse: “Penso que é tudo... Agora é tempo. O seu tempo. Aproveite-o!” Outra piscadela. “Até outro dia.”
Ainda chovia na rua. E eu gostava de ver as auréolas de luz dos candeeiros. Vi alguém que jazia prostrado no passeio, mais abaixo. Voltei para trás a correr. Aproximei-me devagar. Era o detective, de gabardine mas sem chapéu, completamente encharcado. Havia sangue na calçada. “Achei, achei”, disse numa voz sumida. Agarrava um papel verde na mão fechada.
“Pois foi. Achou.”

NOTA: Esta história de ficção foi criada a pedido do fotógrafo Bruno Silva, que pretende recontá-la através da fotografia. A seu tempo, será recontada no site do fotógrafo.