quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

O problema do neoliberalismo

Para todos aqueles que estudaram Filosofia, ou então para todos aqueles que estudaram com o mesmo Doutor que eu (devida vénia), saberão indelevelmente que um ismo é uma teoria ou doutrina segundo a qual. Uma maneira fácil de apreender como se define um ismo. Diz-nos logo duas coisas importantes: ou é uma teoria (qualquer coisa que pode vir a ser aplicada ou experimentada ou que existe somente no campo das formulações) ou é uma doutrina (algo que já foi experimentado, aplicado no campo concreto da vida, com todas as implicações e consequências disso mesmo). Aceitando que se pode discordar disto, para mim, funciona. E é assim que arrumo mentalmente todos os ismos que me vão aparecendo. Arrumei o neoliberalismo no campo das doutrinas. E como todas as doutrinas, estende-se por vários campos da sociedade. Neste em concreto, não apenas ao económico, mas também ao político e, consequentemente, ao social. Não pode haver doutrinas económicas que não sejam também políticas. E sendo políticas influem na vida das pessoas entrando, portanto, no campo social. E daqui... Bom, daqui, chega a todos os campos.
Curioso como as ideias, primeiro pequenas, incipientes, vão crescendo. Se fazem hipóteses, se testam em teorias e transformam em doutrinas, apanhando nelas todos os campos possíveis do espectro humano e social. A mim fascina-se como o pensar se pode traduzir em algo assim. Claro, com uma boa ajuda de outros elementos, sobretudo quando falamos em ideias que se transformam em modelos ou filosofias económicas, que depois se abraçam às políticas e são levadas por diante. Às vezes, menosprezando as consequências e os resultados marginais, quase como sub-produtos, dessas aplicações e dessas estreitas colaborações e implicações entre as ideias, o económico, o político e o social. De tal forma que, quase sem se dar por isso, as pessoas se aglomeram politicamente em torno de determinados modelos que mais não são do que ideias de filosofia económica que, para subsistirem e vingarem, necessitam da pujança do campo político, que as regula, implementa, fomenta, ramifica, mas também que as estigmatiza. É o preço a pagar.
Vivemos um dos maiores períodos de transformação política e social. Poderia dizer o maior, porque nunca passei pelas transformações anteriores a esta, e seria legítimo. Mas a Historiografia tem algo a dizer sobre isso. Não seria verdadeiro. Não será porventura a maior. Mas uma das maiores, sim. Talvez mesmo a mais complexa, pelo grau de informação disponível; pela necessidade de confronto e consenso de tantas partes que compõem o espectro da sociedade em que vivemos; pelo facto de ser uma transformação a nível global e, penso eu, por ser o fim dum sistema económico e a passagem para outro, embora não definido (ainda). Esta é, verdadeiramente, a crise. Estranho como perdemos o real significado de crise. Habituámo-nos a dizer “crise” sempre que algo não corre bem. Nesse sentido, eu digo a brincar que vivi na crise toda a vida, e não apenas desde 2008, altura do famoso problema do sub-prime, que arrastou o mundo para a maior recessão desde a Segunda Guerra e, no meu modesto entender, para níveis muito semelhantes aos dos da crise de 1929-33. Pelo menos, no impacto concreto na vida das pessoas. O problema das crises é que afecta sempre as pessoas. E o problema dos modelos económicos é que nem sempre se dão conta da forma como afectam a vida das pessoas.
A transformação social que vivemos, depara-se, neste nosso Portugal, com desafios tremendos. Serão muitos. Não saberei dizê-los todos. Mas o maior deles, a não culpabilização dos governantes e dirigentes que, desde a revolta democrática, foram sustentando modelos, práticas e políticas que não responderam às necessidades reais dos País e das pessoas, levando-o mesmo à quase falência. Depois, a falta de alternativas credíveis e realizáveis, agudizada pela alternância política de poder entre esquerda e direita, muitas vezes diluída e com programas opacos que, por diversas vezes, sustentaram mais o interesse privado do que o público. Depois a forma de fazer política, muito assente na promessa, na troca de acusações, no dabate inflamado, no prometer-esquecer, no dizer hoje e desdizer amanhã, nas contradições e controvérsias, ao invés da discussão de ideias e programas, e assente em noções concretas e reais do estado do País. Naturalmente, a razão disto é o facto de não existirem estadistas, nem homens de ideias e de ideais sólidos, com experiência de vida e de trabalho, feitos apenas nas escolas partidárias, onde se filiam desde novos e embarcam num carreirismo que os leva até aos cargos dirigentes. Depois a ausência de um plano político-económico de longo prazo, a que se junta a ausência de um modelo económico-político que sirva realmente os interesses das pessoas e do País. É que o modelo focado no mercado e no capitalismo está, simplesmente, esgotado. E enquanto se adoptam medidas de contenção de modo a evitar o colapso desse modelo, prologando a agonia dum modelo gasto e retirando às pessoas mais do que ética ou moralmente aceitável, vai-se esvaziando realmente a possibilidade concreta de sair desta situação.
E eis que, neste clima, nos vemos confrontados com a proposta de um modelo neoliberal. É lícito propô-lo certamente. Da mesma forma, que é lícito propôr à discussão (note-se propôr, não impôr) qualquer outro modelo. O que não é lícito é não assumir que se está a ter uma determinada orientação neoliberal. Sobretudo quando todas acções, formas de dizer e atitudes vão nesse sentido. E, acima de tudo, quando esse modelo não foi sufragado claramente pelo voto democrático. É que o neoliberalismo já foi testado. Já foi posto em prática. Já sabemos os resultados. E assim, há que perguntar: queremos um modelo político-económico neoliberal? A mim, ninguém me perguntou. A resposta é: não, não quero.
A minha resposta é baseada precisamente nos resultados já conhecidos do neoliberalismo. Se a própria teorização de Hayek é já realmente desconcertante, os resultados sociais e económicos da sua aplicação, nos modelos da Senhora Tatcher, do Presidente Reagan ou até do ditador Pinochet, são calamitosos. Não quero um Estado que se reduz ao mínimo, sem função económica e social, apenas como agente facilitador de privatizações e negócios. Não quero um Estado que veja a desigualdade social como própria da liberdade humana e que olhe para os pobres como os incapazes da economia de mercado. Não quero um Estado que deixe o mercado entregue e si mesmo para se renovar e reorganizar ele próprio. Vimos bem, na crise do sub-prime, que essa auto-regulação não funciona. E a forma como, por causa da globalização que é realmente o grande veículo dinamizador do mercado livre e desta forma de entender a economia, arrastou todo o mundo. Não quero um Estado que, por via das necessidades do mercado esteja cada vez mais dependente dos países ricos, caminhando a passos largos do neoliberalismo para um neocolonialismo económico.
Não quero, sobretudo, um estado de negociatas; de gente incompetente; de modelos económicos e políticos falhados e gastos. Quero um Estado que olhe para as pessoas e veja nelas Pessoas. E quero que me perguntem se quero ou não embarcar nessa loucura.
Devo dizer que não me revejo em nenhum dos ismos em que habitualmente gostamos de agrupar as pessoas. Entendo que faz falta uma outra via, porventura ainda não pensada. Mas urgente.
A questão é: o Estado existe para as pessoas, não as pessoas para o Estado. Se o Estado não existir para as pessoas, para que serve o Estado?