Para todos aqueles que estudaram
Filosofia, ou então para todos aqueles que estudaram com o mesmo
Doutor que eu (devida vénia), saberão indelevelmente que um ismo é
uma teoria ou doutrina segundo a qual. Uma maneira fácil de
apreender como se define um ismo. Diz-nos logo duas coisas
importantes: ou é uma teoria (qualquer coisa que pode vir a ser
aplicada ou experimentada ou que existe somente no campo das
formulações) ou é uma doutrina (algo que já foi experimentado,
aplicado no campo concreto da vida, com todas as implicações e
consequências disso mesmo). Aceitando que se pode discordar disto,
para mim, funciona. E é assim que arrumo mentalmente todos os ismos
que me vão aparecendo. Arrumei o neoliberalismo no campo das
doutrinas. E como todas as doutrinas, estende-se por vários campos
da sociedade. Neste em concreto, não apenas ao económico, mas também
ao político e, consequentemente, ao social. Não pode haver
doutrinas económicas que não sejam também políticas. E sendo
políticas influem na vida das pessoas entrando, portanto, no campo
social. E daqui... Bom, daqui, chega a todos os campos.
Curioso como as ideias, primeiro
pequenas, incipientes, vão crescendo. Se fazem hipóteses, se testam
em teorias e transformam em doutrinas, apanhando nelas todos os
campos possíveis do espectro humano e social. A mim fascina-se como
o pensar se pode traduzir em algo assim. Claro, com uma boa ajuda de
outros elementos, sobretudo quando falamos em ideias que se
transformam em modelos ou filosofias económicas, que depois se
abraçam às políticas e são levadas por diante. Às vezes,
menosprezando as consequências e os resultados marginais, quase como
sub-produtos, dessas aplicações e dessas estreitas colaborações e
implicações entre as ideias, o económico, o político e o social.
De tal forma que, quase sem se dar por isso, as pessoas se aglomeram
politicamente em torno de determinados modelos que mais não são do
que ideias de filosofia económica que, para subsistirem e vingarem,
necessitam da pujança do campo político, que as regula, implementa,
fomenta, ramifica, mas também que as estigmatiza. É o preço a
pagar.
Vivemos um dos maiores períodos de
transformação política e social. Poderia dizer o maior, porque
nunca passei pelas transformações anteriores a esta, e seria
legítimo. Mas a Historiografia tem algo a dizer sobre isso. Não
seria verdadeiro. Não será porventura a maior. Mas uma das maiores,
sim. Talvez mesmo a mais complexa, pelo grau de informação
disponível; pela necessidade de confronto e consenso de tantas
partes que compõem o espectro da sociedade em que vivemos; pelo facto
de ser uma transformação a nível global e, penso eu, por ser o fim
dum sistema económico e a passagem para outro, embora não definido
(ainda). Esta é, verdadeiramente, a crise. Estranho como perdemos o
real significado de crise. Habituámo-nos a dizer “crise” sempre
que algo não corre bem. Nesse sentido, eu digo a brincar que vivi na
crise toda a vida, e não apenas desde 2008, altura do famoso
problema do sub-prime, que arrastou o mundo para a maior recessão
desde a Segunda Guerra e, no meu modesto entender, para níveis muito
semelhantes aos dos da crise de 1929-33. Pelo menos, no impacto concreto
na vida das pessoas. O problema das crises é que afecta sempre as
pessoas. E o problema dos modelos económicos é que nem sempre se
dão conta da forma como afectam a vida das pessoas.
A transformação social que vivemos,
depara-se, neste nosso Portugal, com desafios tremendos. Serão
muitos. Não saberei dizê-los todos. Mas o maior deles, a não
culpabilização dos governantes e dirigentes que, desde a revolta
democrática, foram sustentando modelos, práticas e políticas que
não responderam às necessidades reais dos País e das pessoas,
levando-o mesmo à quase falência. Depois, a falta de alternativas
credíveis e realizáveis, agudizada pela alternância política de
poder entre esquerda e direita, muitas vezes diluída e com programas
opacos que, por diversas vezes, sustentaram mais o interesse privado
do que o público. Depois a forma de fazer política, muito assente
na promessa, na troca de acusações, no dabate inflamado, no
prometer-esquecer, no dizer hoje e desdizer amanhã, nas contradições
e controvérsias, ao invés da discussão de ideias e programas, e
assente em noções concretas e reais do estado do País.
Naturalmente, a razão disto é o facto de não existirem estadistas, nem
homens de ideias e de ideais sólidos, com experiência de vida e de
trabalho, feitos apenas nas escolas partidárias, onde se filiam
desde novos e embarcam num carreirismo que os leva até aos cargos
dirigentes. Depois a ausência de um plano político-económico de
longo prazo, a que se junta a ausência de um modelo
económico-político que sirva realmente os interesses das pessoas e
do País. É que o modelo focado no mercado e no capitalismo está,
simplesmente, esgotado. E enquanto se adoptam medidas de contenção
de modo a evitar o colapso desse modelo, prologando a agonia dum
modelo gasto e retirando às pessoas mais do que ética ou moralmente aceitável, vai-se esvaziando realmente a possibilidade concreta de sair desta
situação.
E eis que, neste clima, nos vemos
confrontados com a proposta de um modelo neoliberal. É lícito
propô-lo certamente. Da mesma forma, que é lícito propôr à
discussão (note-se propôr, não impôr) qualquer outro modelo. O
que não é lícito é não assumir que se está a ter uma
determinada orientação neoliberal. Sobretudo quando todas acções,
formas de dizer e atitudes vão nesse sentido. E, acima de tudo,
quando esse modelo não foi sufragado claramente pelo voto
democrático. É que o neoliberalismo já foi testado. Já foi posto
em prática. Já sabemos os resultados. E assim, há que perguntar:
queremos um modelo político-económico neoliberal? A mim, ninguém
me perguntou. A resposta é: não, não quero.
A minha resposta é baseada
precisamente nos resultados já conhecidos do neoliberalismo. Se a
própria teorização de Hayek é já realmente desconcertante, os
resultados sociais e económicos da sua aplicação, nos modelos da
Senhora Tatcher, do Presidente Reagan ou até do ditador Pinochet,
são calamitosos. Não quero um Estado que se reduz ao mínimo, sem
função económica e social, apenas como agente facilitador de
privatizações e negócios. Não quero um Estado que veja a
desigualdade social como própria da liberdade humana e que olhe para
os pobres como os incapazes da economia de mercado. Não quero um Estado que deixe o mercado entregue e si mesmo para se renovar e
reorganizar ele próprio. Vimos bem, na crise do sub-prime, que essa
auto-regulação não funciona. E a forma como, por causa da
globalização que é realmente o grande veículo dinamizador do
mercado livre e desta forma de entender a economia, arrastou todo o
mundo. Não quero um Estado que, por via das necessidades do mercado
esteja cada vez mais dependente dos países ricos, caminhando a
passos largos do neoliberalismo para um neocolonialismo económico.
Não quero, sobretudo, um estado de
negociatas; de gente incompetente; de modelos económicos e políticos
falhados e gastos. Quero um Estado que olhe para as pessoas e veja
nelas Pessoas. E quero que me perguntem se quero ou não embarcar nessa
loucura.
Devo dizer que não me revejo em nenhum
dos ismos em que habitualmente gostamos de agrupar as pessoas.
Entendo que faz falta uma outra via, porventura ainda não pensada.
Mas urgente.
A questão é: o Estado existe para as
pessoas, não as pessoas para o Estado. Se o Estado não existir para
as pessoas, para que serve o Estado?