quarta-feira, 4 de abril de 2012

O cão, o gato e a bomba-de-leite

Passei os olhos pelo jornal, como quase diariamente, num certo ritual das manhãs. Entrei, cumprimentei, sentei-me e peguei no jornal. A menina trouxe-me um café e eu olhei de soslaio a primeira página, enquanto trocava duas palavras. Gosto de café. Pena é que não possa beber tanto quanto me apetece. A primeira página do jornal é como as pessoas. Conta muito a primeira impressão. Pelo menos, para mim. É curioso como raramente se consegue apagar aquela primeira impressão. Dos jornais é a mesma coisa. Olhamos para a primeira página e lá está. Não mente no que é. Ainda que os títulos das parangonas por vezes sejam menos eloquentes e mais voltados ao marketing. Mas ainda assim, são títulos. E primeiras impressões.
Falámos do tempo. Eu disse que a primavera me desgosta, por causa das alergias. Mas não é verdade. Gosto da primavera. Só não gosto que me faça espirrar. Mas não me adiantei em explicações. Ela voltou-se para o trabalho dela, tirando cafézinhos a outros clientes e eu deambulei pelas páginas, ainda a pensar nas primeiras impressões e nos espirros da primavera. As “gordas” do dia não eram muito diferentes das de ontem. Ou mesmo da semana passada. O tema é quase sempre o mesmo, e que é mais ou menos aquilo que poderíamos chamar, grosso modo, de “situação”. Toda a gente sabe o que é, não há muito para explicar nem sequer para ocupar a cabeça com questões mais fundas que as próprias manchetes.
Por desgraça, o jornal que leio, a vapores de café, tem uma secção cor-se-rosa, até na cor das páginas. Detesto o cor-de-rosa, não pelas rosas, por entre cujos espinhos nascem as flores, mas pela cor e por aquilo a que ela se associa, que a mim me repugna pelo fútil, pelo banal, pelo inútil. Mais pelo que não tem do que pelo que tem. E pelo espelho do país que somos. Nessas páginas, tão sobejamente necessárias à sobrevivência do bacoco e do popularucho, tomei conhecimento da novela que se tornou o facto de uma determinada criatura ter dado à luz uma menina. Ali se lêem entrevistas, comentários, aspectos verdadeiramente pungentes da vida da recém-nascida, famosa em tudo, desde o nome, que por um rasgo qualquer, inexplicável para mim, não quer dizer nada senão a junção de letras e iniciais. A maior surpresa para mim, porém, foi saber, em notícia destacada, que a mãe tinha comprado uma bomba de leite. Vieram-me à ideia as primeiras impressões outra vez, e colocaram-se-me, quase imediatamente, duas perguntas: o que (a quem) interessa isto para vir noticiado num jornal e, mais importante, porque raio estou eu a ler isto? Não pára de me surpreender a capacidade que temos para o ridículo.
Fiquei a pensar nisto.
Não tive de pensar muito, porque no mesmo dia, vi na TV a notícia de que o cão que foi a estrela do filme “O Artista” foi jantar à Casa Branca. Esperemos que o distinto cão fique com uma boa primeira impressão daquela gente. E que possa até trocar umas impressões com o Bo, o ilustre cão-de-água presidencial que, recorde-se é bisneto de cães lusos, o que muito nos aprimora. Certamente que os senhores que se ocupam das genealogias caninas hão-de também encontrar nesta nova estrela canina um qualquer antepassado nosso. Não é de espantar que as secções cor-se-rosa tenham tanto para escrever...
Mas que havemos nós de dizer, se as notícias que nos preocupam são os cães de cinema e as bombas de leite? Dir-me-ão: mas grande parte do(s) jornal(ais) não são notícias cor-de-rosa! Verdade. Não são. São discussões tautológicas, às vezes anacrónicas (ou muitas vezes?), encerradas em repetições inúteis, de assuntos discutidos vezes sem conta, sobre os quais se chega de cada vez a uma conclusão, sobre a qual se nomeia ou estabelece mais um grupo de trabalho (já não é de moda dizer-se comissão. Agora são grupos de trabalho), para depois se chegar a outra determinada conclusão, porventura ela própria já velha e testada, mas posta, de novo, à discussão, para se voltar ao mesmo.
Seria quase enfadonho repetir aquilo que o Eça escreveu sobre a política. Toda a gente o repete, sempre que se quer dizer mal da classe política, como se ela precisasse que outrem dissesse mal dela. Não precisa. Não deve existir classe que mais se difame a si própria, se dilacere, se esgane, se afronte, do que a classe política. Cai no ridículo sem precisar da ajuda de ninguém. Mas o que diz o Eça poderíamos ir buscá-lo aos diários do rei D. Pedro; aos escritos do rei D. Luíz (não é erro. Escrevi à moda da época, numa espécie de vénia. Aqui não há acordos ortográficos ad hoc); às cartas da raínha D. Amélia, só para pegar em coisas recentes. Porque, tristemente, o que se disse deste povo e, sobretudo, de quem o governa não tem diferido muito pelos séculos além. Basta dizer que Galba dizia dos lusitanos (ou alguém disse por ele) que é um povo que “nem se governa nem se deixa governar”.
Está tudo dito. Na assembleia, os insígnes deputados entretêm-se a atirar culpas uns aos outros; a fazer queixinhas aos senhores jornalistas, porque A disse qualquer coisa que não fez, porque B mentiu ou porque C não esclareceu o assunto X ou Y. Deputados muito engravatados, outros sem gravata nenhuma porque são modernos, outros ainda de brinco na orelha, porque são mais modernos ainda. Horas e dias passados a tentar descobrir a careca duns e doutros, mais preocupados em expôrem-se mutuamente do que em fazer o que realmente lhes compete, enquanto nas ruas já se vê a fome, a miséria, a tristeza e o desencanto da vida. Vai-se vendo também umas bastonadas às vezes. Doeram, certamente, não apenas aos jornalistas, que por mercê da profissão se têm por imunes a esses flagelos corporais, mas também a todos os que as apanharam. Mas as desses não se discutiram tanto. Espero, contudo, não chegar a ver o desencanto de ser Português.
Que pena que o cão d' “O Artista” não faça um périplo pela Europa... Sempre haveria umas manchetes novas. Não sei é que impressão de cá levaria.
Não creio que a bomba de leite encha páginas por muito mais tempo. O que vale é termos senhores representantes que são, in se, a paródia diária. E, claro, temos pastéis de nata, manifestações sem consequência, velhos que gritam que o país não é para velhos; jovens que gritam que o país também é para jovens; subsídios que hão-de ser devolvidos às mijinhas, se alguma vez o forem, e até o gato Gaspar, que hoje foi chamado à discussão parlamentar. Somos ou não somos um país cor-de-rosa?
Boa Páscoa.