sexta-feira, 17 de agosto de 2018

saudades utópicas

Não digas que tens saudades minhas, se soubeste sempre onde me encontrar. Surgiu-me assim, num rompante, enquanto deslizava o dedo no feed das redes sociais. Quando voltei para trás para ler melhor, já tinha actualizado e já não o tornei a ver. Impressionante o conjunto de coisas que nos habituamos a fazer diariamente. Passar o dedo no telefone é uma delas (sendo “telefone” aqui claramente um termo genérico para aqueles aparelhos de que nos tornámos todos dependentes; há muito tempo que os telefones deixaram de ser telefones). Dissessem-me que bastaria andar com o dedo para cima e para baixo no ecrán dum telefone para saber do mundo, em tempo real, e eu rir-me-ia. E, no entanto, aqui estamos, nessa realidade muito real, sem nada de alternativo ou utópico, cheios de possibilidades e estrangeirismos e de palavras inventadas ao sabor da velocidade a que anda o mundo virtual. Palavras que nunca suspeitámos que pudéssemos usar ou mesmo virem a existir.
Talvez não tenha sido exactamente assim, com aquelas palavras concretas, a citação, mas foi assim que me ficou, num dos milhentos posts que as pessoas vão colocando com dizeres mais ou menos giros, “citações”, às vezes de coisa nenhuma ou de ninguém, mas que passam por bocadilhos de sabedoria universal, que vamos engolindo a goles sôfregos, sedentos que andamos de qualquer coisa mais do que passar o dedo para cima e para baixo, diariamente, no ecrán de um telefone. Como se essas frasesinhas, muitas vezes inventadas e atribuídas a algum nome sonante, para se lhe dar autoridade, ou então genuínas mas perfeitamente desenraizadas e retiradas do seu contexto, pudessem mitigar a nossa sede real de sentido.
Ao mesmo tempo que sabemos todas as coisas do mundo em tempo real, vivemos em desencontro constante e permanente, estabelecendo laços virtuais raramente reais e muitas vezes alicerçados em noções platónicas, tecidas por detrás do ecrán dum telefone, sem nunca nos deixarmos conquistar verdadeiramente. Depois, se insistirmos muito, lá acontece levar ao real concreto essa relação, às vezes de anos, outras vezes fugaz, mas sempre virtual e construída de ideais aparentes. E amiúde é novo desencanto, porque o real concreto não se compadece dos beneplácitos virtuais, nem é nunca perfeito como nos aparecem aqueles fragmentos, nem a pessoa toda inteira cabe no ecrán dum telefone, por mais que se lá tente meter o mundo em tempo real. Mas a pessoa é ela própria um mundo e, portanto, são muitos os mundos para acompanhar em tempo real. Alguns, terão de ficar por explorar.
Não digas que tens saudades minhas. Estive sempre aqui, muito além do dedo a andar para cima e para baixo no ecrán dum telefone. Sempre aqui, muito além da ideia engraçada de te moldares aos meus gostos, como que a meteres-te no telefone do meu mundo, a tomares-lhe a forma para me agradar e eu dizer “sim, sim, és mesmo tu; onde tens andando, que me fartei de andar com o dedo para cima e para baixo, no ecrán dum telefone, como que à tua procura e tu, aí, perfeito, à minha espera?” Ou então, citar-te Sophia e dizer-te que “és tu a Primavera que eu esperava”... Eu, tão estúpido, basbaque num ecrán de telefone, contigo aí à espera. E tu moldando-te cada vez mais ao ecrán do meu mundo, para me apareceres cada dia mais perfeito e esperado, como uma panaceia messiânica ou um bálsamo na aridez do ecrán do telefone dos meus dias. Quando, depois, me permiti regar a aridez do ecrán do telefone dos meus dias com o remédio miraculoso do teu ser, percebeste o erro: não se pode conquistar alguém enganando-nos a nós mesmos. Porque depois, quando conquistamos assim, a pessoa rega-se nessa panaceia e floresce, enquanto que nós, que nos moldámos a um mundo que não era o nosso, para caber no ecrán desse telefone, cada vez mais definhamos e secamos, a ponto de nos morrerem as raízes. Então tiveste de desistir. Atabalhoadamente. Arruinando por completo o mundo que via no ecrán do telefone, sem remédio possível. Nestas coisas não se pode desfazer. Porque a consolação de olhar o mundo pelo ecrán do telefone, deleitando-nos em ideias de perfeição parciais, apenas com o passar do dedo para cima e para baixo, uma vez desfeita, não volta a refazer-se. E a conquista suada de uma paz interior relativa e de aceitação dos desencontros como realidade factual, na miríade de mundos que nos chegam pelo ecrán do telefone, fica em ruínas, levando muito tempo para se poder reparar.
Não digas que tens saudades. Estive sempre aqui, e tu apenas te moldas-te, sem nunca quereres realmente ser, o mundo no ecrán do meu telefone. Soubeste sempre onde me encontrar, porque avidamente vou passando o dedo para cima e para baixo, como um puzzle incompleto, na expectativa permanente da peça em falta. Perdida, porém, lamentavelmente. O mundo virtual em que nos votámos a viver fez-nos cativos dos desencontros e da insatisfação constante. Porque cada pessoa é ela própria um mundo, muito além do que esperamos poder meter no ecrán do telefone. Alguns, ficarão inevitavelmente por explorar.