terça-feira, 21 de dezembro de 2010

O fim do açúcar

21 de Dezembro de 2012. Estamos precisamente a dois anos da data do final do Calendário Maia. Resta saber final de quê... Parece que, na cultura maia, a data se refere ao fim do ciclo de vinte e seis mil anos em que nos inserimos. O mistério está precisamente na razão pela qual o calendário maia tem um fim. Sabemos pouco das razões deles.
A par disto, a história está cheia de profetas e adivinhos, mais ou menos documentados (e acreditados), todos a apontar para a mesma data ou lá perto. Parece que os egípcios também disseram qualquer coisa sobre isto. Os babilónios dos zigurates também. A cabala hebraica. Nostradamus, claro. Para alguns estudiosos do assunto, até a Bíblia.
Não sou estudioso do assunto. Antes de mais, porque não sei a que fim se refere. O calendário maia tem um fim porque a data marca o fim da vida da terra? O fim da humanidade? Ou o fim do tempo? Ou será apenas que marca o fim dum ciclo e o começo de outro? E este fim trás o quê? Uma catástrofe? Um conjunto de calamidades que exterminarão a vida na terra ou as coisas como as conhecemos?... Não sei. O senso comum manda-me acreditar que a data pode marcar um fim. Da concepção de tempo como ele era concebido pelos maias. Ou da vida como a conhecemos... Ou mesmo até deste período de existência da Terra, consequência das adaptações que o planeta precisa de fazer em resposta às alterações que nós próprios provocámos. Isto é o lógico. A mim parece-me que é. Seguramente não marcará o fim in abrupto, como se agora fôssemos e amanhã tivéssemos deixado de ser. Como se a vida tivesse um relógio biológico que repentinamente fosse desligado.
O problema com as profecias é que, se nos esforçarmos o suficiente, ela dizem aquilo que queremos que elas digam. Mesmo que o façamos inconscientemente ou sem malícia. É exactamente por isso que, qualquer exegeta sabe, o princípio básico e fundamental para a interpretação de qualquer texto é o contexto. Também nos textos das profecias. Sobretudo neles, tanto mais que, muitas vezes, a linguagem utilizada segue um estilo próprio, que chamamos linguagem apocalíptica. Tenho sempre medo de usar esta expressão, por causa do equívoco que provoca. Ainda assim, corro o risco, elucidando que não se trata aqui do livro da Bíblia propriamente dito. Não é a isso que me refiro, mas sim à linguagem, ao estilo utilizado para escrever ou descrever profecias. A Bíblia está cheia desse estilo. Mas existe em quase todos os textos de índole profética, sobretudo quando pretendem fazer certas premonições ou falar de alguns assuntos em particular. Trata-se do uso de números, animais, palavras, figuras de estilo, todos usados de forma simbólica, de tal modo que, no verdadeiro sentido do texto (aquele que o autor lhe diz dar, e que na exegese chamamos intenção de autor) nada é o que parece. E é precisamente aqui que está o problema das profecias. Tire-se uma frase do seu contexto, e será muito fácil encontrar nela a data do fim do mundo. Pode ser perigoso isto. É fácil descontextualizar, e com as melhores intenções. E, no entanto, a data existe. E, mais ainda, marca um fim. Um terminus. Para eles foi-o certamente. Lamentavelmente, finaram-se eles muito antes do calendário chegar ao fim. E também não foram muito claros quanto ao que queriam dizer com esta coisa de fim. Ou não foram, ou nós não sabemos ler o que deixaram com a devida clareza. Sabemos pouco das razões deles.
Quanto a mim, vou esperar para ver, se daqui a dois anos, a terra se consome em chamas (e nós com ela, e portanto não verei coisa nenhuma) ou se a polaridade da terra se inverte, ou se haverá um cataclismo doutra espécie, ou se restarão apenas as baratas. Ou, quem sabe, se será apenas e maravilhosamente o início duma nova fase. Dum novo ciclo. Um novo Génesis. Estarei directamente em contradição com a Bíblia, uma vez que Deus prometeu a Noé que não mais destruiria a humanidade, ou seja, que não haveria um segundo dilúvio. Não me parece que Deus tenha mentido. Já os homens... Ainda assim, nada impede que, sem dilúvio, não se possa começar de novo. E Deus sabe o quanto precisamos dum novo começo. Deus sabe. Os homens é que não.
É estranha a nossa sociedade. Há muita gente a criticar a nossa forma de viver em sociedade. Eu incluído. In extremis, estamos a criticar-nos a nós próprios, porque nós é que somos a sociedade e somos nós que a construímos e a fazemos ir nesta ou naquela direcção. E, no entanto, não somos capazes de a mudar. A sociedade, criação humana, tomou conta do seu criador, a ponto de ser ela, a criada, a reger o criador e não o criador a dar-lhe o sentido e a direcção. Naturalmente que isto tem consequências. Todas bem assimiladas e aceites, desde que os benefícios sejam maiores que os custos. Haverá sempre uma franja que terá de pagar um preço de sangue para a engrenagem social não parar. E para nutrir as gordas e abastadas camadas e estractos em que decidimos dividir-nos a nós próprios. Perdurará pela história dahumanidade adiante a lacónica e triste sentença de Cristo: "Pobres, sempre os tereis convosco".
Esta estratificação social, soube recentemente, não é exclusiva da espécie humana. Muitas outras espécies animais diferenciam os seus indivíduos em ordem a uma escala social. Isto não é novidade para mim. A novidade é que, em algumas, particularmente no mundo primata, essa diferenciação assume contornos de casta, de classe. Achei isso demasiado... humano. Não vamos pensar que as espécies, por diferenciarem os indivíduos são segregadoras. Mas até podem ser. Cruéis mesmo. Mas a diferenciação tem o objetivo de escolher os mais aptos para a continuidade. E eventualmente, os que este ano não são aptos, poderão vir a sê-lo amanhã, não estando, portanto, vedada uma certa ascensão social.
Dirão: mas na sociedade humana é exactamente a mesma coisa! Diferenciar para escolher os melhores e mais adequados. Sim, é verdade. Mas se houver um mendigo que consiga, digamos, escapar à mendicidade e fazer sucesso, que dirão? “Ah, teve sorte!” Mais ainda: “olha, lá vai o mendigo com a mania que é rico”. Chama-se a isto preconceito. Esta é uma noção tipicamente humana, que não se verifica na diferenciação social das outras espécies animais. Quanto às outras espécies sei pouco das razões, fora esta da sobrevivência do mais apto. Das nossas, humanas, sei ainda menos.
Imaginemos mais. Imaginemos que falta, digamos, o açúcar.
Quase no Natal, tudo atarefado com tantas compras e coisas para fazer, esquecendo por uns dias esta coisa da crise (que parece que é de 2008, embora eu ande a ouvir falar dela desde que me tenho por gente), já tudo pronto para marcar umas fériazitas e...zás. Falta o açúcar.
“Não! Que é isso? Um disparate. Há montes de açucar” – vem logo um senhor do governo dizer, muito incomodado a ajeitar as polainas e a sacudir a cinza do charuto. Vai olhando de soslaio para os sapatos de verniz e para o relógio de bolso, por cima da barriga farta, desesperado com aqueles boatos, capazes de arruinar a almoçarada da rapaziada do clube. “Mas, senhor”... “Senhor nada. Há açucar às toneladas homem! Veja se toma tino no que diz. As pessoas ainda acreditam. E depois? Uma crise. O descalabro!”
E assim foi. Acabou-se o açúcar. Seja porque não havia mesmo, seja porque parece que só temos licença dos amáveis senhores que governam o nosso clube europeu para importar a matéria-prima de que se faz o seráfico ingrediente (só importar, note-se. Produzir jamais!), seja porque os senhores que vendem a matéria-prima querem fazer subir o preço, ou antes a querem vender aos senhores do biocombustível, que a pagam mais cara, seja lá por que razão foi, o certo é que se acabou. Nada de açúcar. Nada, nada. Abaixo as rabanadas, o arroz-doce, os sonhos, os pudins, as azevias, o bolo-rei. Fim às filhós.
O senhor do governo ficou atarantado. E nós ficámos sem doces. Se era este o fim da profecia, chegou dois anos adiantado. Fosse como fosse, doces, nem vê-los. Toda a gente se lembrou da crise outra vez. Ficou tudo cinzento outra vez. Foi preciso uma operação de charme a convencer as pessoas que, afinal, era falso alarme. “Estão a ver, seus patetas! Muito açúcar! Voltem aos doces. Chega de conversa fiada”. Ah, a propaganda...
Só tiro uma lição da crise do açúcar (nunca pensei escrever sobre uma crise do açúcar): estamos demasiados nervosos. E descrentes. Do açúcar, do governo, da sociedade, da vida. Os ingleses têm uma palavra gira para isto: dizem jumpy. É isso mesmo. Estamos todos jumpy. Irrequietos, incomodados, numa calmaria disfarçada por pudins e rabanadas. E infelizes. Muito infelizes.
Gostava tanto de ver o fim. O fim das mentiras, dos logros, das desigualdades sociais, dos esquemas, dos compadrios, das coisas podres que matam e corrompem o meu país a partir de dentro. O fim das pessoas a pedirem esmola. A quererem trabalhar e a não haver quem lho dê. O fim do faz-de-conta. O fim do tempo dos cães de loiça. O fim da hipocrisia.
Mas ainda faltam dois anos. Só espero que não se tenham enganado nas contas... E que já tenha começado, há uns anos bons, mais um ciclo.
Feliz e doce Natal.
Bom 2011, tanto quanto possível. Mesmo que seja com pouco açúcar.