sábado, 30 de outubro de 2010

414

Acordei com o ping-ping da chuva. Esbocei um sorriso ensonado e enrosquei-me o mais que pude, para me deixar ficar a ouvir a chuva a cair. Não deve haver nada que me contente mais. Fiquei assim até a preguiça me permitir, antes de enfrentar o dia. Mais frio do que esperava. Ainda assim bom.
Gosto de dias frios.
E de ouvir a chuva na cama.
Comecei a pensar em marmelada e geleia e broas de mel escaldadas. Coisas boas. Estamos nos Santos. Quando eu era pequeno, ia mais os amigos da rua de porta em porta pedir os “santinhos”. E lá nos davam um punhado de castanhas, romãs, rebuçados, e às vezes umas moedas de 5 escudos. Regressávamos a casa com aqueles pequenos tesouros, que nos iriam entreter por uns dias, juntamente com a marmelada feita à poucos dias, a geleia e as broas de mel. As coisas eram mais simples, e não havia Halloween. Nem sequer sabia o que isso era. Lembro-me de ouvir falar disso nos primeiros anos da Secundária, numa aula de inglês. Alguns colegas já sabiam o que era. Eu fiquei a pensar que era matarroano por nem sequer ter ouvido falar da coisa. Ainda assim achei que o halloween era uma coisa disparatada. Mesmo que pedir os santos ou andar pelas ruas mascarado de bruxa, fantasma ou duende tivessem o mesmo objectivo: arranjar doces.
Era pobre nessa altura. Lembro-me que só tinha um par de sapatos. Que as refeições eram quase sempre uma sopa ou então arroz com qualquer coisa. E que a minha Mãe, discretamente, de vez em quando não comia “porque não tinha fome”. E que muitas vezes fui comer a casa dos meus Avós, a minha verdadeira Casa. Ainda assim, estava rodeado pelas pessoas de quem gostava, podia correr na rua, passar as tardes no campo depois da escola, comer muitos doces e mimos trazidos pela Avó e pelo Avô. Só por causa disso, não era até nada pobre. Mesmo só com um par de sapatos ou com meias muitas vezes remendadas ou com calças de bombazine com as bainhas vincadas a várias alturas, uma por cada vez que a minha Mãe as arranjava para durarem mais um tempo, ou com camisolas fora de moda cheias de borbotos. Mas as coisas eram mais simples.
Pûs-me a fazer a marmelada e a geleia, pensando que dantes era mais simples. Passaram quase trinta anos desde estas memórias. Lá fora ainda se ouve o ping-ping. Depois ri-me de mim mesmo, com a cozinha da casa, onde antes havia as pessoas de quem gostava, agora vazia só comigo, cheia de tachos e panelas. A minha Mãe sempre dizia que eu era muito bom a fazer doces e muito bom a desarrumar tudo. O que não deixa de ser trágico, porque fazer os doces é muito divertido. Limpar e lavar tudo não. Ri-me. Porque dantes, quando pedia os santinhos, era pobre. Hoje, que já não peço – nem sei sequer se os miúdos por aqui ainda pedirão – continuo a ser pobre. Neste sentido, é uma tragédia. Nada mudou para mim. A não ser o estar mais pobre. Faltam-me as pessoas.
Há dias, quando se anunciaram as medidas de corte do Orçamento de Estado para o ano que vem e as pessoas cairam na relidade de que estamos – não é o país, somos nós – a viver há décadas acima das possibilidades e do que produzimos, vi montanhas de projecções, cenários e múltiplas reportagens sobre a vida dos republicaníssimos portugueses. Estava já enjoado de tantas más notícias. Já me bastam as minhas. E a cada dia basta o seu mal. Fui assombrado, outra vez, pelo “pobres sempre os tereis convosco”. Esta inevitabilidade incomoda-me. Por causa da injustiça, da desigualdade, da sensação de impotência. No meio das reportagens alguém disse que estava preocupado porque depois de um apurado estudo se concluiu que metade da população portuguesa não poupa. Outros que se estima que serão dois milhões os portugueses pobres, porque vivem com menos de 414 euros mensais, ou então porque não conseguem fazer duas refeições de carne por semana. Não sei qual é o critério mais preponderante. Ou como se chega a estas conclsões. Ou porque razão hão-de 414 os euros que separam os pobres dos remediados. Que mal tinham os 415? Ou já agora os 500, que são, para a grande maioria das pessoas da minha idade, atirados para call-centers e caixas de supermercado, com um diploma e um sorriso, o rendimento mensal com que a nossa economia nos brinda. Sei-o de facto e na pele. Não por estudos complicados. Gosto das coisas simples. Parece que há um problema qualquer com a produtividade. E portanto, olha, temos de contentar-nos. Afinal, estamos acima da pobreza. Mas o senhor que estava preocupado porque os portugueses não poupam não perguntou porque razão não poupam eles. E o senhor das estatísticas não explicou o que se está a fazer para acudir aos dois milhões. Nem o senhor dos estudos demostrou a razão dos 414 ou das duas refeições de carne. Ninguém, mesmo ninguém, falou de porque é que se chegou a esta situação. Ou de porque é que vivemos em crise desde que me lembro e não só agora... Alguém falou da correlação entre salário-produtividade-motivação. Mas ficou abafado pelas estatísticas. Depois ainda perdi tempo a ir ver o tal site de que toda a gente fala, onde se podem ver as despesas do Estado. Digo perder porque, realmente, parece-me que vivemos cada vez mais num país fantástico, muito longe da Utopia, em que as pessoas e as realidades estão alheadas umas das outras. O problema é que os dois milhões já não serão apenas dois. Já serão mais. E o republicaníssimo país vai brilhando, nas festas e jantaradas, enquanto decorrem os jogos de bancada que vão entretendo os políticos, completamente desacreditados, concentrados nos corredores e a anafar os lenços de seda e as cambraias e a polir as fivelas de prata, enquanto o povo vai raspando o fundo aos tachos. O país estava um caos antes da revolção salvadora. Ficou pior, porque os grandiosos mentores do novo regime andaram a fazer cair governos atrás de governos, como papagaios à cata de poleiro. Continua mal. E os senhores do regime péssimos. E com uma queda para a novela e o drama, que ronda o insulto. Até quando os brandos costumes tolerarão o status quo?...
A mim, parece-me mais simples que nos contentemos com o que temos. Aprender a viver com o que se tem deve ser das coisas mais difíceis do mundo. Embora não pareça.
Tenho os doces prontos. Agora sento-me, mesmo sem ir pedir os santinhos, a lambuzar-me de marmelada e geleia. Fico a pensar nos 414, sem saber que mal teriam os 415. Pobre, afinal, sempre fui. Tinha era uma riqueza diferente, feita de pequenas coisas. E a pobreza não era a coisa mais importante.
Acordei com o ping-ping na janela. A marmelada está boa. E este ano, os senhores do regime não têm outro remédio senão ir pedir os santinhos. Mas hão-de ir mascarados de bruxas e fantasmas e duendes. Dantes era tudo mais simples. No tempo das fivelas de prata, de quem era a culpa daquilo ir mal? Do rei, claro está. E hoje, que não há rei para expulsar, de quem será?
Mas de quem será, de quem será?...
Dantes se calhar era mais simples.
Que bom que chegou a chuva. Já cheira a castanha assada. E a broas dos Santos.
Happy Halloween.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

O penso rápido

Quando eu era miúdo e fazia uma ferida, a coisa de que tinha mais medo era dos pensos rápidos. Não pelo penso. Mas porque ao tirar arrepelava os pêlos (lamento, escrevo à antiga... fora de moda, bem sei. Mas até eu me parece que já passei de moda) ou então por estar agarrado à ferida ainda não sarada, fazia doer. Pedia à mãe que arrancasse o penso muito devagarinho e que soprasse. E ela lá se punha, com infinita paciência, a soprar-me o joelho ou o braço, enquanto puxava o penso pêlo a pêlo, como se o sopro levasse a dor, por entre um ou outro grito de protesto meu, mas não sem dizer que se arrancasse depressa, todo de uma vez, iria fazer doer menos.
À medida que fui crescendo, a vida foi-se encarregando de me arrancar os pensos de forma rápida. Não me pareceu que doesse menos. Também não sei dizer se doeu mais. A dor é sempre dor. A diferença é que me dói tudo de uma vez, em vez de ser pêlo a pêlo. Mas a contrapartida é que me afunda sem apelo nem agravo, e só a custo volto à tona. Mas também não é mais fácil quando me arranca os pensos devagar. Primeiro porque não sopra na ferida, depois porque devagar, devagarinho me faz repetir a dor uma e outra vez, até não haver mais pêlos. Porque os pensos da vida não são como os rápidos, só aquela tirinha plástica... São enormes, compridos. Às vezes cobrem-nos de alto a baixo.
Com os meus Avós, está a arrancar-me o penso pêlo a pêlo. E dói de cada vez.
Devo estar realmente uma pessoas muito adulta, porque tenho a cabeça cheia de porquês... E uma pessoa pode afundar-se nos porquês. Também me apetece hoje perguntar outra vez “onde está o Deus”. Mas não sei se quero mesmo perguntar ou se é a tristeza que pergunta por mim. Olho para a vida como um sudecer de coisas e contecimentos, inexorável, sem piscar os olhos nem olhar para trás, indiferente aos apelos. Será o tempo que passa ou será a vida que passa no tempo? E os dois, num conluio, vão tirando, todos os dias algo.
A ideia da finitude nunca me meteu medo. A minha finitude olho-a como uma coisa normal da vida. Curiosamente, só me vem o porquê quando penso na finitude das pessoas de quem gosto. O terror de não poder voltar a tocar, a ouvir, a sentir o cheiro... Uma pessoa pode afundar-se nos porquês.
Hoje pus-me a olhar para a casa vazia dos meus avós, nesta fase mais debilitada da sua velhice. Há um sentimento estranho ali, de estarem e ao mesmo tempo não estarem. Vejo-os todos os dias. Estou com eles todos os dias. E, no entanto, hoje, pela primeira vez na minha vida queria não estar sozinho. E a única companhia que me serviria eram eles. Os três, na casa velha e branca, pequenina e quieta. Consigo ver-me ali, à hora de jantar, depois de comer, a brincar no corredor, junto à camilha, com o velho carro da polícia feito de lata, enquantos eles olham para mim e se riem. A minha Avó diz, como de todas as vezes, que não comi quase nada. O meu Avô responde que já como mais, vou comer a fruta com ele. Doeu-me muito. Não sei quantos pêlos a vida me arrepelou hoje.
Mas já descobri que, não importa quantos pensos a vida me ponha, vai doer sempre.