quarta-feira, 18 de maio de 2011

As farsas

Mal refeito ainda da farsa das máscaras, Abacílio andava agora em palpos de aranha com as coisas do país. As do país e mais as da sua vida. Compreendia bem que não há país com saúde se a vida das pessoas que o fazem não corre bem. E a ele tudo lhe corria mal. Julgara-se doutor licenciado e, afinal, achara-se parvo.
Sentia-se assim como num imenso teatro, que era o país todo, a assistir a farsas, bem mais intricadas que as das máscaras, e que dele faziam espectador boquiaberto. Na plateia via todos quantos se riam da pátria amada, o que o enchia de lusa cólera, enrubescia-se e berrava que o deixassem ouvir as farsas. Para além desses, alternavam entre o palco imenso e os assentos da bancada os actores e figurantes das farsas. Ora uns, ora outros, e o Abacílio ali, a ver se não perdia o fio à meada por entre os argumentos elaboradíssimos e o vaivém de gente.
Primeiro foram os senhores do governo. Elegantes, janotas, mas com ar grave. Parece que andavam a cortar o rating à república. O Abacílio deixou-se rir. A república já parecia uma manta de retalhos desde há muito, devido às tesouras nacionais. Pois que cortem. Mas não, parece não. Parece que a coisa é séria. Tão séria que se foi o governo. Medidas, pacotes, compromissos, nada valeu. Foi-se o governo. Então aqui d’el-rei…perdão, então acudam, acudam, que a república se afunda!
Muda a cena, porque o senhor presidente também andava incomodado. Não eram os ratings… Eram as siglas. As siglas, senhores! Não acertam com as siglas daquelas entidades seráficas que vão abrir os cordões à bolsa e mandar as agulhas, para pôr toda a gente a cerzir a república… Depois de tantos cortes, era apenas natural. Mas as siglas. Uns que era FMI; outros que era BCE. O senhor presidente lá esclareceu: é FEEF, que é na verdade o nome o que lhe dão agora os senhores da Europa. Quis fazer-se um fundo em bolsos rotos, logo teve de se ir buscar o rico dinheirinho a qualquer lado… Mas, enfim, chamar-se FMI é que não podia ser.
O Abacílio cada vez se via mais confundido. Os senhores do governo retiraram-se. E agora? O senhor presidente fechou-se em copas. Diz que não é da sua posição. Agora era preciso esperar pela troika. O Abacílio esbugalhou os olhos. Troika? Mas que troika? Afligiu-se, pensando que a revolução tinha saído à rua e não tinha dado conta. Pensando que imperava a foice e o martelo. Mas não. Tranquilizou-se logo que os viu em cena. Era assim como que um triunvirato, uma comissão de três figuras, bem-postas, também com ar grave e de pasta. O Abacílio pensou que eram as pastas do dinheiro. Mas não eram. Eram as pastas das medidas. Estamos cheios de medidas até aos olhos, pensou ele. Há que tempos que damos o litro, e ainda vêem mais medidas. Irra! Não há cú que aguente! Chissa!
Entraram logo em cena os da oposição. A culpa é dos senhores do governo, claro está! Nós avisámos, bradavam eles! O Abacílio pôs-se a rir outra vez. Os políticos em cena davam-lhe sempre vontade de se rir. Devia ser do teatro. Divertiam-no as farsas. Eram uns estarolas, a atirar culpas de uns para os outros, como se fossem tartes. E no fim todos se lambuzam!
Mas atenção. Um entendimento era imperioso. Ora, mas como se hão-de eles entender em quinze dias, se há quase quarenta anos que tentam, tentam e nada… Enfim. O independente relativo apresentou logo a resposta: é preciso fazê-lo presidente da assembleia. Presidente da assembleia?! Mas como pode lá ser isso? Os senhores do governo ufanaram-se com a ofensa à dignidade da cadeira. Pois se nem sabe o regimento! Os senhores da oposição ficaram sem pio. Andaram ali a esquadrinhar, a esquadrinhar, a ver se descalçavam a bota. Um deles, mais descarado, disse logo: Mas afinal, elegem-se deputados ou presidentes? Outro pôs-se aos pulos de contente, a dizer que bem sabia que ele não era independente não senhor. Era um golpe político, é o que era. Mas parece que, afinal, foi tudo um mal-entendido. O homem o que quer é servir o país! Gargalhada geral. Foi de tal ordem que nem se perceberam as explicações do senhor candidato-a-presidente-da-assembleia-que-afinal-era-só-a-deputado-e-até-podia-ser-que-aceitasse-o-mandato-se-fosse-eleito.
Mas enfim, o acordo lá chegou, os milhões lá foram prometidos e os senhores do governo informaram que, afinal, estava tudo bem. Sim, há crise, desemprego, e fome, e gente sem casa, famílias atoladas em dívidas. Sim. Mas calma! Agora vêm aí as eleições! Importa concentrarmo-nos nelas. Claro. O Abacílio pensou que aquilo era digno de rir. Mas o momento era solene. Eleições sim. Mas para eleger o quê? Ou melhor… Para eleger quem? Uns não sabem o que fazem. Já fizeram e viu-se o resultado. Outros, não sabem sequer o dizem. E o que dizem hoje amanhã podem emendar. Uns só querem ser do contra. Outros perderam o comboio do tempo. Todos falam dum país que não existe, feito de gente ilusória, e tecido de realidades imaginárias…. Os portuguesitos, tesos, tristes e fartos, não cabem lá. Mas pois, hão-de ir a votos.
O Abacílio não se conteve e rompeu em aplausos, de lágrimas nos olhos. Que bem. Que belo! Que magníficas farsas, a encher de orgulho o peito luso! Apetecia-lhe agarrar na bandeira nacional e espalhar portugalidade por esse mundo fora, como outrora os ventos a levaram nas caravelas!
Estava tão entusiasmado que nem sequer esperou pelo fim das farsas. Ficou sem saber quem seria o próximo primeiro ministro. E já agora, o próximo presidente da pssembleia. Não se sabe. Ninguém sabe. Nem sei se alguém saberá depois das eleições. Talvez o senhor presidente saiba… Anda em retiro há tanto tempo… Ou então, se calhar, enfadou-se das farsas. Pôs uma máscara e ala que se faz tarde. Não fosse o orgulho luso que lhe inflamava as veias, até o Abacílio se punha a andar. Mas não. Não, que a Pátria o chama!