sábado, 8 de junho de 2013

E se nos levantássemos?

Os sofás. As cadeiras. Essas peças de mobiliário a que nos habituámos e que sobre nós exercem um certo tipo de atracção que quase nos faz depender delas e nos faz ansiar pelo momento de nos refastelarmos nelas.
Um dos meus maiores amigos tem o dom de dizer as coisas mais banais com um ar grave, de tal forma que quem o não conhece acha que aquele assunto é de suprema importância, mesmo que seja a coisa mais corriqueira do mundo. Não raro, são momentos que nos proporcionam boas gargalhadas. “As cadeiras. São as cadeiras, caríssimo... O problema são as cadeiras”... Quase que consigo ouvi-lo.
Despertei para esta problemática das cadeiras e dos sofás e da atracção que exercem em nós – um verdadeiro poder – por intermédio dum anúncio publicitário que passa vezes sem conta na televisão, juntamente com todos os outros de cremes de veneno de cobra, baba de caracol, sumos de frutos de que nunca ninguém ouviu falar, mas verdadeiramente milagrosos, remédios para unhas, colchões especialíssimos e robots de cozinha verdadeiramente inteligentes.
Vi o réclame, como dantes se dizia, mas que agora é um francesismo desusado, quase deselegante, apesar das raízes francesas, e logo pensei que, realmente, as cadeiras têm o poder. São elas, e todas as outras peças que servem para sentar, que realmente nos aturam. E nos puxam. Muito mais que uma compulsão ao ócio, é uma verdadeira estratégia de poder, de forma a enredar nelas, nos seus braços, nos seus assentos, todos os traseiros que possam, ainda que remotamente, ter qualquer espécie de poder, decisório ou executório. E nelas se concentra assim todo o poder que rege este mundo.Extraordinária coisa. Quase maquiavélica, fossem elas capazes de ler "O Príncipe" ou capazes de qualquer conjectura.
Mas, e se nos levantássemos?
Se negássemos a essas peças de mobiliário responsáveis por tanta maquinação e estratagema, a sua fonte de poder? Talvez os pés e as pernas se começassem a queixar do excesso de esforço, ou os traseiros sentissem falta dum bocadinho desse descanso ou o corpo suplicasse por uns minutinhos de refastelamento no sofá... Não sei. Quem sabe até uma rebelião corporal contra a cabeça que congeminou esta ideia de se negar às cadeiras... Nada fácil dirimir estas questões de contentar pés e pernas, fazendo a vontade ao corpo e ouvindo a cabeça. Um horror. Aliás, discorro, que deve ter sido assim que nasceu a política, desta necessidade de contentar partes desavindas, de atender a vontades diversas, de conciliar opiniões e, enfim, não chegar absolutamente a parte nenhuma. Poderia até pensar no papel que teve a cadeira neste parto...
Se nos levantássemos certamente haveria manifestações contra. Desde logo das cadeiras, privadas da sua fonte de poder... Mas quem as ouviria, se ninguém se lá sentasse?
Ou nos levantamos, mesmo que o corpo se manifeste, ou permanecemos sentados e as cadeiras continuarão a ser senhoras dos destinos que regem o mundo de loucos que construimos.
“As cadeiras, caríssimo... O problema são as cadeiras”, diz ele enfaticamente. Eu por mim penso que o problema das cadeiras talvez se possa resolver com quem se senta nelas. Quem nelas se senta e quem nelas pomos sentados.