Os sofás. As cadeiras. Essas peças de
mobiliário a que nos habituámos e que sobre nós exercem um certo
tipo de atracção que quase nos faz depender delas e nos faz ansiar
pelo momento de nos refastelarmos nelas.
Um dos meus maiores amigos tem o dom de
dizer as coisas mais banais com um ar grave, de tal forma que quem o
não conhece acha que aquele assunto é de suprema importância, mesmo
que seja a coisa mais corriqueira do mundo. Não raro, são momentos
que nos proporcionam boas gargalhadas. “As cadeiras. São as
cadeiras, caríssimo... O problema são as cadeiras”... Quase que
consigo ouvi-lo.
Despertei para esta problemática das
cadeiras e dos sofás e da atracção que exercem em nós – um
verdadeiro poder – por intermédio dum anúncio publicitário que
passa vezes sem conta na televisão, juntamente com todos os outros
de cremes de veneno de cobra, baba de caracol, sumos de frutos de que
nunca ninguém ouviu falar, mas verdadeiramente milagrosos, remédios
para unhas, colchões especialíssimos e robots de cozinha
verdadeiramente inteligentes.
Vi o réclame, como dantes se
dizia, mas que agora é um francesismo desusado, quase deselegante,
apesar das raízes francesas, e logo pensei que, realmente, as
cadeiras têm o poder. São elas, e todas as outras peças que servem
para sentar, que realmente nos aturam. E nos puxam. Muito mais que
uma compulsão ao ócio, é uma verdadeira estratégia de poder, de
forma a enredar nelas, nos seus braços, nos seus assentos, todos os
traseiros que possam, ainda que remotamente, ter qualquer espécie de
poder, decisório ou executório. E nelas se concentra assim todo o
poder que rege este mundo.Extraordinária coisa. Quase maquiavélica,
fossem elas capazes de ler "O Príncipe" ou capazes de qualquer
conjectura.
Mas, e se nos levantássemos?
Se negássemos a essas peças de
mobiliário responsáveis por tanta maquinação e estratagema, a sua
fonte de poder? Talvez os pés e as pernas se começassem a queixar
do excesso de esforço, ou os traseiros sentissem falta dum bocadinho
desse descanso ou o corpo suplicasse por uns minutinhos de
refastelamento no sofá... Não sei. Quem sabe até uma rebelião
corporal contra a cabeça que congeminou esta ideia de se negar às
cadeiras... Nada fácil dirimir estas questões de contentar pés e
pernas, fazendo a vontade ao corpo e ouvindo a cabeça. Um horror.
Aliás, discorro, que deve ter sido assim que nasceu a política,
desta necessidade de contentar partes desavindas, de atender a
vontades diversas, de conciliar opiniões e, enfim, não chegar
absolutamente a parte nenhuma. Poderia até pensar no papel que teve
a cadeira neste parto...
Se nos levantássemos certamente
haveria manifestações contra. Desde logo das cadeiras, privadas da
sua fonte de poder... Mas quem as ouviria, se ninguém se lá
sentasse?
Ou nos levantamos, mesmo que o corpo se
manifeste, ou permanecemos sentados e as cadeiras continuarão a ser
senhoras dos destinos que regem o mundo de loucos que construimos.
“As cadeiras, caríssimo... O
problema são as cadeiras”, diz ele enfaticamente. Eu por mim penso
que o problema das cadeiras talvez se possa resolver com quem se
senta nelas. Quem nelas se senta e quem nelas pomos sentados.
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