Dou por mim a pensar porque será que é
tão difícil reconhecer que a razão pela qual estamos
permanentemente em “crise” é apenas porque os modelos em que nos
baseamos estão gastos. O modelo económico, social, financeiro e
julgo mesmo que até político, pura e simplesmente chegaram ao
limite do que podem oferecer. Não respondem mais.
Para mim isto é evidente. Salta à
vista, com a mesma facilidade com que o sol se põe ou levanta; com
que as marés se alternam ou as estações se sucedem. Por que razão
então é tão difícil abandonar estes sistemas gastos e vazios de
opções e respostas e procurar outros?
A resposta é simples também: não só
não há outros que presentemente sejam viáveis e realmente capazes
de novos rumos (pelo menos ainda não experimentados ou que em algum
momento ou lugar tenham já falhado), como estes continuam, apesar de
falidos, a servir determinados interesses. Quando assim é, à
resistência natural à mudança, alia-se um certo desnorte, num
espectáculo sôfrego de tentar, a todo o custo, suster o impossível.
Penso nisto e vem-me logo à ideia aquela conhecida frase de
Churchill sobre a democracia ser o pior dos regimes, exceptuando
todos os outros...
Receio bem ser este o espectáculo a
assistimos. Não é apenas uma crise económica ou financeira ou todas
estas e mais social. É a falência da sociedade como um todo,
enquanto estrutura organizada e baseada em determinados modelos. A
razão pela qual penso isto não é por ser mais clarividente que as
cabeças iluminadas que nos governam, dotadas de uma extraordinária
incapacidade para verem além de si mesmos e dos seus próprios
interesses. É tão só por ser evidente. E porque a ausência de
simpatias políticas me permite pensar e, sobretudo, dizer ou
escrever sem medo ou sem qualquer outra sanção que não seja aquela
da minha própria consciência aquilo que realmente penso.
Poderíamos tentar fazer o exercício
intelectual (intelectual apenas, uma vez que a questão não
interessa realmente a quem tem neste campo responsabilidades. Terá
qualquer coisa a ver com as vantagens do status quo...) de
tentar perceber de onde vem esta crise, quer dizer, esta ruptura. De
onde nasceu esta falência. Porque razão se esgotaram os modelos que
têm guiado, orientado e moldado a sociedade?
Serão, por certo, diversas as
respostas ou as opiniões sobre o assunto. A minha é a de que a
razão de tudo isto é de fundo, de fundamentos mesmo, e tem a ver
com os valores. Ou com a falta deles. Tudo isto que vemos, como
espectadores mais ou menos interessados ou então como actores na
história que se está a fazer diante de nós, radica na mudança
civilizacional que levou à extinção ou ao não reconhecimento de
certos valores, que atá há bem pouco tempo guiavam e norteavam a
vida em sociedade.
Aceito que esta explicação não seja
clara. Mas estou absolutamente convencido dela. Que não seja claro
de que modo os valores se relacionam com a enfadonha medianidade no
campo político; com o crescendo de problemas sociais; com a crise
económica; com o facto de na política ser mais importante a reacção
dos mercados financeiros do que a vida das pessoas concretas; com a
indescritível incapacidade de afirmação dos líderes; com a
escassez de cabeças verdadeiramente pensantes, não devedoras de
vénias a interesses; enfim, com a estúpida insensatez com que somos
governados e nos deixamos governar.
Os valores funcionam como uma espécie
de grelha. Uma trama onde assenta o fio que tece o tecido social.
Sempre que se deixa de considerar ou se rejeita um determinado valor
é absolutamente necessário substitui-lo por outro, sob pena de se
desmoronar o tecido social. Ora o que acontece, nesta nossa Era do
Vazio é precisamente o esvaziamento de valores, sem que outros
tomem o seu lugar. Aparentemente, nada daqui decorre que possa de
algum modo fazer colapsar a sociedade em que vivemos. Mas da mesma
forma que é impossível tecer algo sem a trama, também um modelo
social não consegue subsistir sem valores de fundo. A questão não
é que se tenham deixado de considerar válidos ou actuais
determinados valores. A questão é que se deixaram de levar em conta
esses valores sem que outros tomassem o seu lugar. Resulta daqui um
grave deficit ético, sem que haja uma régua de valores a nortear a
vida e o comportamento social. Não quero fazer juízos de valor
sobre os valores que estão em falta. Para mim serão mais
importantes ou fundamentais certos valores. Para outras pessoas,
talvez outros. A questão de fundo é mesmo a falta deles. As
consequências desta deturpação do tecido social estão à vista.
Foram subreptícias, lentas e nada sonantes. Foram-se fazendo sentir
aos poucos, e continua a ser necessário estar atento e preocupado
para as ver. Mas é essencial, vital mesmo, que se tome novo rumo.
Que se aceite a falência destes modelos agora em vigor, procurando
outros, mais robustos do ponto de vista ético-moral, de modo que a
vida das pessoas possa encontrar o tecido para se realizar.
Convençamos-nos disto: sem pessoas, não há sociedade. O mesmo é
dizer que aniquilar o indivíduo, sacrificando-o a modelos falidos de
modo a espremer qualquer réstia de vida lucrativa que ainda possam
conter para alimentar a máquina que bombeia esses modelos, levará
inevitavelmente ao aniquilamento da sociedade. Estará, então,
aberto o caminho ao desastre não apenas económico-social, mas à
destruição mesmo. Se nada for feito para inverter este caminho,
ouviremos doravante falar mais em guerra... Uma guerra nasce de uma
de duas coisas: da procura de realização de certos interesses
(pessoais, políticos, raciais, económicos...) ou então da falência
dos modelos sociais sem outros tomem o seu lugar atempadamente.
Por cá, ainda não atingimos esta
maturidade de pensamento. Pelo menos não aparenta haver. Mas faria
falta que ela chegasse. Continuamos entretidos entre seasons.
A silly season permite, enfim, depois da maçada e do
aborrecimento nulo que se tornou a cena política, um descanso na
praia, para quem pode evidentemente. Os restantes, como reais
despojados de guerra ou então como vítimas colaterais dos jogos de
quem governa, limitam-se a dar graça por estar vivos. Entretêm-se a
olhar boquiabertos para estes Cavaleiros da Triste Figura, mais ou
menos embrenhados nos seus gigantes de moinhos de vento,
completamente ignaros do estado do País e da vida das pessoas (essas
que são o tecido da sociedade e que, em teoria, representam,
governando em seu nome e não em nome deles próprios);
perfeitamente desconhecedores de como se faz para comer todos os dias
quando falta o trabalho e não há fontes de rendimento em famílias
inteiras, marcadas pelo desemprego, pela fome, pelo estigma e pela
vergonha; inteiramente alheados da realidade concreta que os rodeia,
ou então fazendo esforços por ignorar essas evidentes evidências,
fazendo aqui e ali pequenas alterações ou publicando um outro
despacho ou regulamento ou portaria, que permita evitar o
aborrecimento que é a contestação. Na verdade, estes Paladinos da
Triste Figura sentem-se injustiçados. Consideram que lhe falta a
justa e devida bajulação do Povo, essa coisa amorfa, sem rosto, que
na verdade não existe, a não ser em época de eleições. A essa
enorme massa (as pessoas) resta-lhes, na verdade, entreterem-se com
as nulidades vazias debitadas pela TV, cumprindo verdadeiramente o
seu papel, na medida em que, em vez de iluminar mentes as
estupidifíca, com o genérico aplauso tanto dos Cavaleiros como das
pessoas governadas. Bem certo é que não há nada que seja mais
assustador para a Cavalaria da Triste Figura do que a cultura e o
papel que ela tem nas mentes das pessoas. Pudéssemos nós
regalarmo-nos com idas às Selvagens a ver cagarras e anilhar
espécimens indígenas, ou ao menos às Berlengas ver gaivotas. Mas
nada mais resta, para uma grande franja da sociedade senão
embasbacar-se frente à TV. Felizmente temos as prazenteiras notícias
das viagens presidenciais, do bebé real, das férias do Cristiano e
da langerie da Irina. Agora que o Big Brother se foi, que
há-de ser de nós?
Sem comentários:
Enviar um comentário