quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Leccio Nutricionis

Passavam-se os dias e Abacílio continuava na mesma, letárgico, deprimido, apático, tendo posto a vida em latência desde que ficara desempregado. Perdia o ânimo só de pensar em ir ao centro de (des)emprego. Filas intermináveis, sem nenhuma proposta concreta ou qualquer vislumbre de solução. “Tem de procurar”... diziam-lhe as bem-postas senhoras que o atendiam. E ele lá ia, calcorreando centros comerciais, percorrendo agências de trabalho temporário, candidatando-se a call centers... Nada. Nem pó.

Estava triste o Abacílio. Pensava em ir-se embora. Em deixar a amada Pátria. Mas para onde? E com que dinheiro?...

Restava-lhe pouco mais que entregar-se ao sofá e ao zapping. “Anda lá. Não te deixes ir abaixo.” Mas ele deixava. Apoderara-se dele a noção que estava num buraco e dele não podia sair.

De vez em quando enervava-se. Punha-se aos gritos. Saía para manifestações. Queria agir. Queria reclamar. Queria ser do contra. Depois acalmava-se e via que os ideais já não tinham nada de novo, que os modelos estavam gastos e que as concentrações e manifestações e reclamações serviam interesses que não os seus.

Acordava de vez em quando dessa letargia. Enchia-se de zelo patriótico. Mas não lhe servia de nada.

Andava assim desesperado e atormentado, mal de comidas e pior de dormidas, quando soube que a senhora ministra tinha ido ao parlamento dar uma lição de nutrição. Os senhores deputados andavam preocupados porque o IVA dos boiões de comida para bebé ia subir. Por isso, a senhora ministra explicou que, do ponto de vista nutricional, os boiões de comida não eram a alimentação mais adequada. “Ah, bom”, descansaram-se os deputados. Pois evidentemente que não. Que o diga o Abacílio. Quando ele era bebé, haver banana esmagada já era um luxo. Quanto mais comida metida em frascos, meia mastigada. Modernices. Depois crescem sem apreciar o belo cozido à portuguesa, as migas de batata à alentejana, o chouriço assado, a tiborna, o ensopado, a chanfana e eu sei lá que mais petiscos e coisas boas da Pátria querida. Não têm a boca educada para o tempero. Só frascos e latas. Muita razão tem a senhora ministra. Abaixo os boiões. Fora as latas! Fora.

No calor daquela discussão, tão vital na Domus Daemocratiae, chamou-lhe a atenção certo deputado de brinco na orelha. Primeiro achou que não tinha visto bem. Depois olhou melhor, e olhou, olhou, e lá estava. Uma argolita, bem a meio da orelha do insigne deputado da Nação. “Esta agora”... cogitou o Abacílio, “então se aquele pode representar a Nação de brinco na orelha, outros há que a representam em mangas de camisa e colarinhos abertos, porque diabo não hei-de eu ir lá com a Máscara?”

Se bem pensou, melhor o fez. Foi ver da máscara, pegou nos canudos, inúteis apesar de tanto queimar de pestanas, e lá foi a caminho do Parlamento. Havia de ir lá e gritar bem alto os azedumes e os devaneios que deitam por terra a Nação. Havia de denunciar aos ventos as horas, os dias, meses e anos desperdiçados com conversas de mel-coado, quando o Povo, esse esquecido sustento da Nação jazia de fome, desemprego e, sobretudo, jazia de enganos! Ah, que ninguém o havia de calar.

Mas calaram. E bem depressa. Aliás, nem foi preciso. Não podia entrar. Até lá havia uns senhores da polícia, preparados para qualquer motim que pudesse haver. “Quero falar aos representantes do Povo” bradava ele. Mas de nada lhe serviu.

Não se dando por derrotado decidiu-se a encontrar a Nação. Mas onde encontrá-la? Pois se nem nunca a tinha visto... Até pensou que era a senhora de peitos de fora cuja estátua anda espalhada pelos edifícios públicos. Mas não era. Essa era, parece, a Liberdade.

Não sabendo bem por onde comçar, foi ter com os cães de loiça. Ali estavam, muito afilados, de grandes olhos cor-de-laranja, muito inóveis e quietos. Mas nada. Viam muito. Mas a Nação não a viram. Disseram-lhe que estavam até admirados por Ela não estar no Parlamento, ou nalgum palácio ministerial. Como ainda os não tinha visto todos, lá foi, um por um, saber da Nação. Mas não a encontrou.

Fartou-se. “Que se lixe a taça. Vou mas é pr' ó sofá. Assim como assim...” Pronto. Passou-lhe o fervor.

Mas então, inesperadamente, bateram-lhe à porta. Era a Nação. Muito cansada, apoiada numa bengala velha, toda despenteada, vestidos rotos. O Abacílio nem sabia o que dizer. Queria contar-lhe da lição de nutrição, do brinco na orelha, dos desvarios dos deputados, das coisas que têm feito, das que não têm feito, do tempo que perdem a discutir a lã caprina, a acicatar-se e a desdenharem uns dos outros, das mangas de camisa... de tudo isso e mais que se lembrasse. Mas não foi preciso. Ela bem sabia. Oh, se sabia. Pelo estado em que estava, via-se que sabia. E bem.

Quisera ele ter ao menos uns boiões de fruta para lhe dar. Mas nem para isso havia tusto.

Ah, Nação Portuguesa, que te matam! Não sei se de fome, se de logro ou se hão-de vender-te aos bocados. Mas que te matam, isso matam.