sábado, 11 de junho de 2011

O poço de Samarra

Há entre os árabes uma história acerca dum homem que, estando numa taberna de Damasco a beber vinho, viu a Morte. “Não, não pode ser! Ainda não chegou o meu tempo!” exclamou esbaforido. Saiu da taberna e cavalgou pelo deserto. Perto de Samarra, dirigiu-se para um poço, para beber e matar a sede ao seu cavalo. Ao chegar lá, viu novamente a Morte. “Mas como é possível? Eu fugi de ti em Damasco!” A Morte respondeu-lhe: Também eu fiquei surpreendida ao ver-te em Damasco, porque o nosso encontro esteve sempre marcado aqui em Samarra”.
A moral da história não é muito difícil de inferir: não se pode fugir do destino. Não importa se acreditamos nele ou não. A mim pouco me interessa. Podemos sempre dizer que a vida é de cada um, e cada um faz o seu destino, de acordo com as escolhas que faz. Eu concordarei. Deixar que a minha vida corra a bel-prazer dos caprichos do destino não é ideia que agrade a ninguém. Gostamos de controlar. Tanto mais quando é a nossa vida. Temos, naturalmente, uma palavra a dizer.
Não sei se acredito na história ou não, porque não sei se acredito no destino ou não. É uma lenda, uma história-de-fogueira, daquelas contadas pelos avós aos netos, pelos anciãos aos novos. Não sei. Espero um dia perguntar ao homem de Damasco.
É fácil distrairmo-nos do que nos rodeia. Ficarmos imersos na nossa vida e nem repararmos no que acontece ao redor. Aconteceu-me ainda há dias. Por causa disso, só soube por acaso do que aconteceu na Síria. Estava à procura duma notícia e dei de caras com o relato do assassinato do pequeno Hamza, a criança de 13 anos assassinada pelo regime daquele país. Não costumo chocar-me muito. Há muito que a crueldade de que o homem é capaz deixou de me assustar. Às vezes, até de me incomodar. Mas é impossível ficar indiferente. Torturado, queimado com cigarros, cortado, baleado, esmurrado, desfigurado. A pergunta: Que crime pode ter cometido, para ser tratado daquela maneira? Diria inumana, se não fossem inumanas tantas atrocidades. Outra pergunta: com que direito (de autoridade, até) um regime político profana os seus cidadãos daquela maneira?
O regime fez o favor de devolver à família o corpo, em troca do silêncio. Felizmente, tiveram a coragem de não calar esta história de horror. Não sei que terá acontecido aquela família. O desafio de ter denunciado a situação e mostrado o corpo mutilado, deve certamente ter represálias. Não quero pensar nelas. Penso antes na bravura indignada duma família que não se pôde conter (gostava de saber como é que os partidários da nova forma de escrever assinalam graficamente a diferença entre pôde e pode. Eu, para minha desgraça, não sei. Vejo-me agora quase analfabeto) mesmo sabendo que esse acto trará consequências. A coragem sempre cativa mais que o medo. Aliás, é a coragem que fez desse menino estandarte dum protesto que se vai espalhando, enquanto o resto do Mundo espera para ver. Há muito em jogo. A capacidade nuclear, o petróleo, o gás, o fanatismo enraizado de gerações... Esperar para ver é uma boa estratégia, se estivermos dispostos a lidar com os danos colaterais. Uma coisa fria de se dizer. Mas não será mais frio, ou calculista até, do que dizer coisas que se sabe que não são verdade e prometer o que se sabe não ser possível cumprir. Não mais do que fingir que não existem certos problemas ou deliberadamente ignorá-los, num jogo perigoso, que conta sobretudo com a ignorância e a incapacidade para questionar correctamente os problemas e as situações, na esperança de alcançar alguma coisa que, de outro modo, seria impossível. É assim que por cá andamos. Vieram as eleições e soaram apoteóticas aclamações aos vencedores. Muito certo. Mesmo que os vencedores sejam notoriamente ineptos, não só pelo programa que propõem como, sobretudo, pela escolha de pessoas. Mas, em boa verdade, haja o primeiro que conscientemente e sem clientelismos de qualquer espécie me diga qual, dentre a horda de gente a concurso, era realmente o que faz falta. Veremos, naturalmente, se me engano. O tempo dirá. Veremos também se daqui a dois ou três meses, as aclamações não passam a apupos e, mais uma vez, como sempre, acordamos tarde para o que aí vem. Veremos.
Coisa curiosa o tempo. Voltei a pensar no homem de Damasco. Como podia ele saber que não era ainda o seu tempo? E a Morte, encontrou-se com ele fora de tempo? Fugiu sim. Mas porque tinha por onde fugir. E como fugir. Acreditava, sobretudo, em si próprio… nas suas convicções. Mas ainda assim a Morte esperou por ele. O pequeno de Daraa não precisou de ir a Samarra. A Morte foi buscá-lo, quase sem ele perceber. Só percebeu que a Morte vinha quando a dor lhe fustigou o corpo. E o espírito. Penso nos porquês que lhe devem ter surgido. De incompreensão. De medo. De incredulidade. Às vezes a Morte também se engana. Sobretudo quando se deixa usar como arma.
Será talvez este o nosso destino: fugir sem ter para onde, sabendo que, não importa a quem nos rendamos, será sempre para nos castigar. O fado chama-lhe sina. Terá, certamente outros nomes, menos pomposos. Fiquemo-nos pela sina ou pelo destino. È tão mais português. Não temos Samarra. Mas poços não nos faltam. A Morte há-de estar num deles. Ou, quem sabe, numa manifestação qualquer. Quem será o juiz? Hei-de perguntar ao homem de Damasco.