Caro Rui:
Não me conheces, nem eu a ti.
Escrevo-te depois de ler a tua história no jornal, sobre como a vida
tem pregou a partida de conheceres a fome, apesar de só teres nove
anos e estarmos no século XXI e viveres num País que pertence à
União Europeia, é membro da NATO, do Conselho de Segurança da ONU,
da FAO, da UNICEF, entre tantas outras instituições e siglas, como
convém a um país do primeiro mundo, seja lá isso o que for. Fiquei
triste. Quero dizer, primeiro muito zangado. Comecei aos berros no
café onde estava a ler o jornal, como se alguém que ali estava,
tivesse alguma culpa. Depois revoltado. Agora triste.
Na verdade não me interessa nada se
tudo aquilo que se diz no jornal é verdade. Se é mesmo assim, que a
tua mãe não tem dinheiro; que deve €4,65; que não te mudaram o
escalão por causa dum papel que a Segurança Social parece que só
vai emitir em Janeiro; que não te deram de comer porque não tinhas
73 cêntimos... Não me interessa. O que me interessa é a partida
que a vida te está a pregar, por um lado, e o ver-te exposto às
complicações dos adultos, por outro. Não sei se as compreenderás
e, sobretudo, se saberás lidar com elas e com o estigma que elas
costumam trazer. Perdoa-me escrever de forma tão adulta. Bem sei que
os teus nove anos pediam que me esforçasse por uma linguagem mais
direccionada para a tua idade. Mas porque alimento, lá no fundo, uma
centelhazinha de esperança de que alguém ao ler isto se indigne
tanto como eu me indigno e, melhor do que eu, esteja em posição de
fazer alguma coisa concreta e útil por ti, permite-me gladiar neste
palavreado por ti, mesmo que o não entendas.
Não sei quantos Rui haverá. Ouvi nas
notícias que serão para cima de 12 mil. Doze mil! Eu próprio Rui
me confesso. A razão pela qual me indignei tanto é por ter sido eu
mesmo, a dada altura, Rui. E, por causa disso, lágrimas. Verdade que
há aqui um certo egoísmo meu, porque acabei por me ver espelhado
numa situação que pensava já não ver, ou pelo menos, não ver
mais no meu País. Na casa que é o meu País. Certa vez, ia a
caminho da escola, bem mais pequeno do que tu, e era inverno. Começou
a chover, e eu levava calçados uns sapatos de sola, que estavam
rotos. As meias brancas – naquela altura era o que se usava, caro
amigo – depressa ficaram ensopadas e os pés encharcados. Comecei a
ouvir um choc-choc, que era o eco dos meus passos molhados. Passaram
por mim uns colegas, que começaram a a rir. Não sabiam duas coisas:
a primeira que eu usava sapatos de sola, apesar da chuva, porque não
podia usar solas de borracha ou plástico, que me feriam os pés. A
segunda é que, mesmo que pudesse, não havia dinheiro para comprar
outros. Senti a cara molhada, e até hoje não sei se era da chuva,
se de que era. É muito fácil fazer gozo na ignorância. Bem vês,
entendo muito bem a tua cara escondida no colo da tua mãe. Mas
deixemos isso. Não é de mim que falamos. Antes que alguém com
muito jeito para análises leia isto e comece a inventar neste
episódio que te contei laivos de recalcamentos e traumas, voltemos
ao assunto. Falemos de ti. Do facto de conheceres a fome e, por ela,
a vergonha. De saberes o que é um dedo apontado ou um risinho
escarnecido. Vou dizer-te que não acredito que não quiseste ir à
escola por te sentires fraco. Sentirias, por certo. Não duvido. Mas
a verdadeira razão de não quereres ir, acho que era a vergonha. Não
faz mal. Não é vergonha ter vergonha. Não te envergonhes da
vergonha. Nem da fome. Dias virão, acredito, em que perceberás que
te moldaram de alguma forma. Espero que de uma forma que te fez mais
íntegro, mais digno, mais humano e menos conformado.
Lamentavelmente, não há forma de fazermos voltar atrás o tempo,
esse extraordinário curandeiro, de modo a que não tivesses de
passar por esta experiência. Acontece que passaste. E isso, não
mudará. O que ela te fará, está também um pouco nas tuas mãos. E
na altura devida, compreenderás.
Outras coisas há que não estão nas
tuas mãos. Infelizmente nem nas minhas, pois se estivessem, este meu
palavreado todo era escusado. Arrepiávamos caminho. Mas não. Está
nas mãos de muita gente, e como tudo o que está nas mãos de muita
gente, dá muitas voltas, a maior parte das vezes para ficar no mesmo
sítio. Talvez por isso, voltemos hoje a falar de fome, e de miséria
e de carências alimentares, e de falta de dinheiro... De programas
PÊRA (de quem terá sido a luminosa ideia de dar o nome duma fruta a
um programa de combate à fome?...) Tantas coisas más de que não
devíamos estar a falar. Soube também que mais de metade da
população activa, quer dizer, daquelas pessoas que no nosso País
têm idade e condição para trabalhar, ou são desempregados ou
estão em situação de emprego precário. Mais de metade! E penso
que não consigo perceber para onde vamos. Parece-me tudo um
desnorte. Não há caminhos apontados; não há estímulos para os
caminhantes; não há metas; não há timoneiros de mãos firmes no
leme; não há chefes que andem á frente e agarrem nos que caem pelo
caminho. Vejo a desesperança; as crianças e os adolescentes com
fome; os jovens sem perspectivas e desempregados; as famílias sem
dinheiro; os velhos na miséria. E falta-me saber o mais importante:
para quê?
Podia continuar a atirar números. Do
desemprego, do endividamento, do défice, do número de pobres... De
nada serve. O que serve é a vontade de querer fazer melhor. O que
serve é reconhecer o erro. E a vontade de o corrigir. O que serve é
perceber que, em cada decisão que se toma, em cada medida que
aceita, há rostos; há caras que se escondem em colos ou só nas
mãos; há histórias de vida de pessoas reais, que existem, que
passam por nós e vão baixando os braços, desistindo aos poucos,
como se passassem pela vida sem ser já o seu tempo.
Meu caro Rui, não tenho solução.
Tenho palavras. E a esperança de que toquem em alguém que, pegando
nelas, dê o primeiro passo para mudar o que é preciso mudar.
Mormente consciências. E valores. Tantos valores perdidos... Onde
irá parar um País que não honra a memória; que não é brioso;
que deixa de celebrar a sua Independência... Falta-me mesmo o para
quê.
Faço votos de poder saber de ti,
daqui a alguns anos, talvez dez ou quinze, quando já fores homem
feito, e poder saber-te bem. Poder saber-te um Homem íntegro e um
Cidadão competente.
Teu muito amigo.