segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Em nome do Rui

Caro Rui:

Não me conheces, nem eu a ti. Escrevo-te depois de ler a tua história no jornal, sobre como a vida tem pregou a partida de conheceres a fome, apesar de só teres nove anos e estarmos no século XXI e viveres num País que pertence à União Europeia, é membro da NATO, do Conselho de Segurança da ONU, da FAO, da UNICEF, entre tantas outras instituições e siglas, como convém a um país do primeiro mundo, seja lá isso o que for. Fiquei triste. Quero dizer, primeiro muito zangado. Comecei aos berros no café onde estava a ler o jornal, como se alguém que ali estava, tivesse alguma culpa. Depois revoltado. Agora triste.
Na verdade não me interessa nada se tudo aquilo que se diz no jornal é verdade. Se é mesmo assim, que a tua mãe não tem dinheiro; que deve €4,65; que não te mudaram o escalão por causa dum papel que a Segurança Social parece que só vai emitir em Janeiro; que não te deram de comer porque não tinhas 73 cêntimos... Não me interessa. O que me interessa é a partida que a vida te está a pregar, por um lado, e o ver-te exposto às complicações dos adultos, por outro. Não sei se as compreenderás e, sobretudo, se saberás lidar com elas e com o estigma que elas costumam trazer. Perdoa-me escrever de forma tão adulta. Bem sei que os teus nove anos pediam que me esforçasse por uma linguagem mais direccionada para a tua idade. Mas porque alimento, lá no fundo, uma centelhazinha de esperança de que alguém ao ler isto se indigne tanto como eu me indigno e, melhor do que eu, esteja em posição de fazer alguma coisa concreta e útil por ti, permite-me gladiar neste palavreado por ti, mesmo que o não entendas.
Não sei quantos Rui haverá. Ouvi nas notícias que serão para cima de 12 mil. Doze mil! Eu próprio Rui me confesso. A razão pela qual me indignei tanto é por ter sido eu mesmo, a dada altura, Rui. E, por causa disso, lágrimas. Verdade que há aqui um certo egoísmo meu, porque acabei por me ver espelhado numa situação que pensava já não ver, ou pelo menos, não ver mais no meu País. Na casa que é o meu País. Certa vez, ia a caminho da escola, bem mais pequeno do que tu, e era inverno. Começou a chover, e eu levava calçados uns sapatos de sola, que estavam rotos. As meias brancas – naquela altura era o que se usava, caro amigo – depressa ficaram ensopadas e os pés encharcados. Comecei a ouvir um choc-choc, que era o eco dos meus passos molhados. Passaram por mim uns colegas, que começaram a a rir. Não sabiam duas coisas: a primeira que eu usava sapatos de sola, apesar da chuva, porque não podia usar solas de borracha ou plástico, que me feriam os pés. A segunda é que, mesmo que pudesse, não havia dinheiro para comprar outros. Senti a cara molhada, e até hoje não sei se era da chuva, se de que era. É muito fácil fazer gozo na ignorância. Bem vês, entendo muito bem a tua cara escondida no colo da tua mãe. Mas deixemos isso. Não é de mim que falamos. Antes que alguém com muito jeito para análises leia isto e comece a inventar neste episódio que te contei laivos de recalcamentos e traumas, voltemos ao assunto. Falemos de ti. Do facto de conheceres a fome e, por ela, a vergonha. De saberes o que é um dedo apontado ou um risinho escarnecido. Vou dizer-te que não acredito que não quiseste ir à escola por te sentires fraco. Sentirias, por certo. Não duvido. Mas a verdadeira razão de não quereres ir, acho que era a vergonha. Não faz mal. Não é vergonha ter vergonha. Não te envergonhes da vergonha. Nem da fome. Dias virão, acredito, em que perceberás que te moldaram de alguma forma. Espero que de uma forma que te fez mais íntegro, mais digno, mais humano e menos conformado. Lamentavelmente, não há forma de fazermos voltar atrás o tempo, esse extraordinário curandeiro, de modo a que não tivesses de passar por esta experiência. Acontece que passaste. E isso, não mudará. O que ela te fará, está também um pouco nas tuas mãos. E na altura devida, compreenderás.
Outras coisas há que não estão nas tuas mãos. Infelizmente nem nas minhas, pois se estivessem, este meu palavreado todo era escusado. Arrepiávamos caminho. Mas não. Está nas mãos de muita gente, e como tudo o que está nas mãos de muita gente, dá muitas voltas, a maior parte das vezes para ficar no mesmo sítio. Talvez por isso, voltemos hoje a falar de fome, e de miséria e de carências alimentares, e de falta de dinheiro... De programas PÊRA (de quem terá sido a luminosa ideia de dar o nome duma fruta a um programa de combate à fome?...) Tantas coisas más de que não devíamos estar a falar. Soube também que mais de metade da população activa, quer dizer, daquelas pessoas que no nosso País têm idade e condição para trabalhar, ou são desempregados ou estão em situação de emprego precário. Mais de metade! E penso que não consigo perceber para onde vamos. Parece-me tudo um desnorte. Não há caminhos apontados; não há estímulos para os caminhantes; não há metas; não há timoneiros de mãos firmes no leme; não há chefes que andem á frente e agarrem nos que caem pelo caminho. Vejo a desesperança; as crianças e os adolescentes com fome; os jovens sem perspectivas e desempregados; as famílias sem dinheiro; os velhos na miséria. E falta-me saber o mais importante: para quê?
Podia continuar a atirar números. Do desemprego, do endividamento, do défice, do número de pobres... De nada serve. O que serve é a vontade de querer fazer melhor. O que serve é reconhecer o erro. E a vontade de o corrigir. O que serve é perceber que, em cada decisão que se toma, em cada medida que aceita, há rostos; há caras que se escondem em colos ou só nas mãos; há histórias de vida de pessoas reais, que existem, que passam por nós e vão baixando os braços, desistindo aos poucos, como se passassem pela vida sem ser já o seu tempo.
Meu caro Rui, não tenho solução. Tenho palavras. E a esperança de que toquem em alguém que, pegando nelas, dê o primeiro passo para mudar o que é preciso mudar. Mormente consciências. E valores. Tantos valores perdidos... Onde irá parar um País que não honra a memória; que não é brioso; que deixa de celebrar a sua Independência... Falta-me mesmo o para quê.
Faço votos de poder saber de ti, daqui a alguns anos, talvez dez ou quinze, quando já fores homem feito, e poder saber-te bem. Poder saber-te um Homem íntegro e um Cidadão competente.

                                                                                 Teu muito amigo.

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

O fim do mundo e outros mitos


O título vi-o hoje num jornal. Gostei. Não era bem assim, mas foi assim que me soou, mal lhe pus os olhos em cima. Era a propósito de um congresso qualquer acerca de diversos mitos, desde o fim do mundo a 21 de Dezembro ao local de nascimento do Viriato. Parece que não foi na Serra da Estrela. A mim pouco me importa. O Viriato, como os grandes homens, não era duma terra só. Era Luso, e isso basta. Também já aqui me debrucei sobre o 21 de Dezembro. Mas não é isso que me importa hoje. Nem sequer se o mundo acaba ou não para Dezembro. Que me importa isso?
Podia ficar aqui a discutir a importância dos mitos. Ou a sua não importância. Mas também não é isso que me interessa. É-me suficiente dizer que à sombra dos mitos o mundo avançou. Outras vezes enganou-se. Mas conhecer faz-se de enganos também.
O que me importa é este fim do mundo a que assisto, eu, aqui sentado, olhando para a caneta, velha amiga, mas preferindo as teclas do computador, onde as pontas dos meus dedos vão escrevendo sem tinta. Está a acabar-se o mundo. O hoje amanhã será passado, como em todas as eras. Com ou sem mitos. Acaba-se a cada dia. E mesmo assim, há uma ânsia por um fim. Talvez seja da natureza humana querer ver o fim, como se nele houvesse respostas. Não sei. Mas cada dia traz um fim. Não percebo porque se há-de querer outro. Bem a propósito, enquanto escrevo, pus-me a ouvir música portuguesa do século XVI, que encontrei no youtube. De repente, dei por mim a cantar a "Porque me não ues Joana", uma cantiga de amigo que eu também cantava na faculdade, no coro a capella a que pertencia. Dei um sorriso involuntário, ante aquela lembrança, mas também isso já é passado. Fim. É bom recordar. Mas não penso voltar a vivê-lo. Para fim, basta-me um só. Sobretudo, quando a cada dia vejo o fim de mais qualquer coisa nesta lusa terra, tão amada por tantos e por mim também , bem antes do Viriato. Mas cada dia, algo fenece. Vejo nas ruas olhos vazios, de gente que anda para cá e para lá, mas não sabe para onde. Vejo governos sem alternativas, sem soluções, sem brio de servir… Possivelmente nem saberão o que isso é. Mas não creio que alguém, algum dia, mo pergunte. Vejo velhos de ombros caídos. Vejo crianças ainda inocentes, desconhecedoras de que o seu tempo já acabou, mesmo antes de ter começado. Temo bem, que o fim que está para chegar seja o da esperança.
Atormenta-me a ideia da pobreza. Um pobre, o que é? Se perguntar a um banqueiro, dir-me-á que é alguém sem crédito. Se perguntar a um empresário poderá dizer que é alguém sem trabalho. Se perguntar a um governante, talvez diga que é alguém que recebe subsídios. Se perguntar a um padre, provavelmente dir-me-á que é alguém sem pão nem fé. A um trabalhador, e dirá que é o pedinte na rua, ou no metro, ou no comboio… Um pobre é muitas coisas. Porque a pobreza vem em muitas formas. E todas destroem. Todas matam. Todas ditam o fim. Um fim para o sem crédito, para o desempregado, para o subsidiado, para o néscio, para o esfomeado, para o maltrapilho. E, sobretudo, um fim para o desesperado. Nada quebra tanto o Homem como perder a esperança. Não me resigno a que haja pobres para sempre. Não posso resignar-me. Que homem serei, senão um pouco homem, ou mesmo um homem morto, se parar de lutar pela justeza da Humanidade toda inteira onde todos caibam? Pouco homem, de verdade.
Não se perca a esperança, e talvez não venha o fim do mundo.
Happy Halloween.
Feliz dia de Santos.

sábado, 20 de outubro de 2012

Coitados deles


Dentre as espécies de pessoas que não suporto, os untuosos ocupam lugar especial. Os falsos, sim, também. Essa corja, que faz da perfídia uma coisa de trazer por casa e a usa com a mesma displicência e facilidade com que se muda de camisa ou se calça outro par de meias. Mas os untuosos... Há qualquer coisa neles de simplesmente odiável. Não sei se é aquela atitude submissa, enquanto empenham a sua inteligência e astúcia em tentativas de agradar a todo aquele que, mesmo remotamente, possa ser uma mais-valia. E num país de doutores...pfff, já se vê. Não, o negócio da graxa não pode ir mal. Haverá outros que sim. Os restaurantes, as lojas, os vendedores de toda a espécie, mesmo os que vendem coisas que não servem para nada mas que habilmente as vendem, porque criaram nos consumidores a ilusão de que são necessárias... Todos eles se veêm apertados pelo recuo do consumo.
Agora penso que o recuo do consumo pode não ser totalmente mau, se ajudar a que nos livremos das ilusões do consumo excessivo. Mas claro, é sempre mau porque resulta do empobrecimento forçado e não da livre vontade. Desde que nos convencemos de que comprar é necessário para viver, lançámo-nos num caminho que dificilmente acabará bem. E aqui reside o problema. Mas os untuosos. Coitados deles. Passam pela vida esquecendo-se dela, tão ocupados estão com a vontade de agradar. E no jogo de xadrez não passam de meros peões, jogados como os outros, uma casa de cada vez, embora convencidos de poderem a bel-prazer atravessar o tabuleiro inteiro. Haverá sempre alguém, cuidam, que dará o jeitinho. E por entre sorrisos tortuosos, lançam-se. Coitados deles. Como se a graxa com que se besuntam, a si e aos outros, os fizesse escapar por entre as gotas da chuva, os grãos de poeira dos caminhos. Ou se os cabelos das suas cabeças pudessem parar de cair ou passar pela vida sempre fazendo de outros bengalas, nunca pondo, eles próprios, os pés no chão. Mas o caminho, como se faz, se não se caminhar? São como corvos que sonham ser águias. Coitados deles. Detesto-os de verdade. Um homem que espezinha outro é ignóbil. Um homem que usa outro é parasita. Parasitas todos eles, cheios de mesuras, de vénias, de sorrisos falsos, de palmadinhas amigáveis, de conversas de ocasião… Para no momento certo fazerem dos vaidosos presas.
E de que vale? Pergunto-me a mim próprio de que vale. De que vale tanto unto? Porventura não virá, a seu tempo, reclamá-los a Morte? Claro, também poderia perguntar de que vale, afinal, seja o que for, com ou sem unto, porque a Morte a todos reclama. E sim, reclama. Talvez os untuosos tenham o seu consolo no seu unto. Nos seus esquemas, nos seus sonhos de voar alto… E talvez isso lhes baste, tal como à mulher em frente da Bershka talvez lhes bastassem os sacos de compras. Ou aos cães de loiça lhes baste estarem ali, no seu posto, muito afilados de olhos cor-de-laranja, enquanto o mundo e a vida passa  por eles. E, portanto, quando chega o seu tempo, nada mais esperam. Não sei. Não posso dizer. Sei que o unto a mim me enoja. E isso a mim basta-me. Preciso de olhar para as pessoas pessoas. De ver gente e sabê-las gente. Mesmo que não saiba o que esperam nem o que as consola. Nem tão pouco ao que aspiram. Mas que não seja ao unto. Espero que não.
Numa lógica tortuosa poderia dizer coitado de mim, porque os untuosos untam e sempre vingam. Há sempre maneira. E eu…Bem, eu… Nada. Não há lugar para as palavras. Às vezes nem em mim próprio. Vejo as ruas, cheias de gente, que passa, uns muito atarefados, outros, como eu, em passo de passeio, só vendo. Penso em quantas pessoas naquele momento pensam. Coitado de mim que penso, enquanto os untuosos untam e vingam. Aqueles risos serão talvez de escárnio. Não há lugar para pensadores. Muito menos para os pensadores pelintras.

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

81 Veras Pereira

            Hoje, deambulando como costume pelas ruas, no meu passeio diário, companheiro precioso de ócio e da vida de desempregado, reparei numa mulher a berrar ao telemóvel qualquer coisa como “espero-te ao pé da Breshka”. Berrava muito alto, como que falando para longe e sendo necessário falar em tom que toda a gente ouça. Repetiu aquilo vezes sem fim. Não se deu conta, nem por um momento, que estava a dizer mal o nome da marca. Na verdade, acho que isso não a preocupava. É difícil preocuparmo-nos com o que não conhecemos. E ainda bem. Mas fiquei a pensar em como há coisas que entram tão facilmente na rotina e na forma de estar. Não foi preciso dizer “estou na rua tal, em frente a qualquer coisa”… Não. Bastou dizer “ao pé da Breshka”. Isso foi bastante para que o seu interlocutor soubesse precisamente onde deveria ir ter. Da mesma forma, há coisas que nos entram pela vida dentro e passam a fazer parte dela. De tal modo que já não precisamos de explicar. Todos sabem o que se quer dizer quando se diz determinada coisa. Uma espécie de linguagem mesmo. Sejam números, nomes, acontecimentos, pessoas… Toda a gente sabe a que se referem, sem ser preciso grandes explicações. Podemos falar, por exemplo, do Egas Moniz; de Abril; do 5 de Outubro; do Paiva Couceiro; do 1 de Dezembro; do Condestável; da Padeira; dos Jerónimos; de Camarate; do Titanic; do Holocausto; da Bershka, claro está… Enfim, uma miríade que podia referir. Umas coisas ficam na memória por boas razões. Puxam pelo brio, pelo orgulho… Outras pelas piores, lembrando-nos do que não devia ter acontecido e, sobretudo, não pode voltar acontecer. Depois procurei exemplos mais contemporâneos. Coisas a acontecer que se vão rapidamente tornar ícones desta forma de comunicação. Lembrei-me do número 81. E da Vera Pereira. Os 81, porque quando os salários diminuem no país, públicos e privados (basta ver as ofertas de emprego e verificar quais os salários oferecidos e fazer o exercício de comparação com, por exemplo, dois anos atrás), os digníssimos parlamentares conseguiram o feito de ter um aumento salarial que se traduz em 81 euros. 81 euros. Claro, no ordenado dum parlamentar, uma minudência. Quase nada. Mas a quem ganha o ordenado mínimo e corre o risco de o ver taxado no IRS, seria uma grande grande alegria. São estas as discrepâncias da nossa sociedade. E são elas que a fazem fracassar. Na verdade, estou convencido que a humanidade, enquanto projecto social, é um fracasso. Não apenas por isto. Mas também por isto.
            A Vera Pereira, porque estando desempregada conseguiu a proeza não apenas de arranjar emprego através do Centro de Emprego, coisa só por si rara, como ver-se nomeada para o dito emprego. Ficará inesquecível a frase “só a admitir a Vera Pereira”. A explicação oficial é que é perfeitamente normal ter acontecido, uma vez que a vaga em questão foi preenchida ao abrigo dum programa que permite ao futuro empregador indicar uma possível candidata. Tudo muito certo. A minha questão é só uma: qual a legitimidade de haver programas financiados pelo Estado, no âmbito de incentivos à empregabilidade, em que o empregador, privado, pretende contratar, com apoio estatal, note-se, uma determinada pessoa? Ora se os programas são públicos, financiados com dinheiro público, não deveria ser admitido o/a candidato/a mais capaz? Qualquer que fosse? A mim parece-me que sim. Pois se o distinto empregador queria contratar aquela agora famosa pessoa, porque não a contratou sem estar à espera de mais um subsídiozinho do Estado? De um jeitinho?... Naturalmente, não há apenas uma Vera Pereira. Nem tão pouco apenas 81 Veras Pereira. Haverá muitas mais. Este episódio foi, na verdade, um vislumbre de como funcionam as coisas. De como tudo se processa. Estamos no país dos jeitinhos, ora pois. Claro está, tudo devidamente justificado. Nada de malandrices. Aliás, já esta semana, uma distinta figura do aparelho judicial se apressou a descansar as pessoas de bem, garantindo que em Portugal não há políticos corruptos. O problema é sempre a mulher de César… O meu Avô costuma dizer que quem não quer ser lobo, não lhe veste a pele.
            Perguntei-me se a pessoa que contratou a Vera Pereira dorme à noite. E se a pessoa que autorizou o aumento salarial dos parlamentares tem insónias… Depois olhei para trás. A mulher ainda estava “ao pé da Breshka”. Não sei se conhece a Vera Pereira, nem se a incomodam os 81 euros. Talvez o seu mundo se centre mais em sacos de compras.

terça-feira, 21 de agosto de 2012

A queda dum Anjo no País dos jeitinhos

Calisto Elói, morgado da Agra de Freimas, ficará para sempre como o modelar exemplo de como o poder corrompe. E de como os eleitos para a causa pública se deixam enredar tantas vezes no ridículo. Às vezes até de si mesmos. O protagonista do romance célebre, que devia ser de leitura obrigatória para todo aquele que aspira ao serviço parlamentar, com tanta ou mais importância que as lições de colar cartazes e animar comícios, deixa de ser o homem íntegro, amante das letras e zeloso dos costumes do antigamente, para rapidamente perceber que o poder requer outros modos, que a vida dum representante da Nação não se compagina com polainas nem costas dobradas por horas a fio de nariz enfiado nos clássicos, que antes quer chapéu alto e fatiota de bom corte. Ele que vai para se impôr contra a corrupção dos costumes, vê-se rapidamente nos braços duma bela senhora que não a sua própria esposa, enquanto esta, sozinha e ouvindo novas do que se passa por Lisboa também não se fica atrás...
Ainda me atormenta esta ideia da era do ridículo. Não que duvide que vivemos nela. Ou que me angustie fazer parte desta idade. Para mim, é apenas lógico que ao vazio se siga o ridículo. O que atormenta é a forma escancarada como se se vive esta época. Como se entranha e parece tomar tudo, às claras, sem reservas... Ao escrever não posso deixar de pensar nos tristes episódios que quase diariamente as notícias nos dão conta. Dentre eles, nenhum outro me tenha talvez feito rir tanto como a moda das equivalências. Rir, sim. A era do ridículo é para isto que serve. Não apenas, mas também para rir. Assim que ouvi as notícias sobre o estranho caso das equivalências (não digo da licenciatura, porque casos desses já temos vários), pensei imediatamente no Calisto Elói. Não sei bem porquê. Mas veio-me imediatamente à imaginação o homem que, na casa de Alfama, a ler o livro do Mendes de Vasconcelos sobre as águas das fontes de Lisboa e, tomando-o à letra, se viu a braços com uma valente caganeira. Pensei nessa imagem por causa da quase seráfica ingenuidade com que Calisto Elói se crê nos livros, mesmo quando eles falam duma época que nada já tem a ver com a realidade das coisas. E a realidade das coisas é esta: embevece ver a ingenuidade com que se fazem trafulhices e depois se aparece com a cara mais inócua possível, como se tudo não fosse senão uma confabulação contra os bons costumes. Os Calistos Elóis de hoje já não são provincianos de polainas, conhecedores dos clássicos, de voz levantada contra a corrupção dos bons costumes. São, não obstante, para espanto meu, ainda ingénuos, crentes numa certa forma de estar na vida a que, por melhor designação, se costuma chamar “o jeitinho”. E assim, sem a erudição de Calisto Elói, mas usando das mesmas premissas e do mesmo vigor, lá vão seguindo, muito ao estilo do “rei vai nú”. E enquanto passam, nesse cortejo decrépito, reflexo duma época que já não existe, crentes ainda num respeito e num estatuto de que já não gozam (o ridículo atropela tudo, até os estatutos), vão atropelando também a valia das instituições, e a reputação e o trabalho de quem, porventura sério, se esforça por conseguir um grau, um trabalho, um negócio, um modo de vida, seja o que for, sem “o jeitinho”. Muito difícil, confesso. Talvez por isso Calisto Elói se tenha entregue aos prazeres da carne, depois de ter descoberto os de andar de costas direitas...
O estio avança, na pasmaceira habitual. Não sei ainda o que o verão reserva no domínio do ridículo. Não sei se virão ainda mais notícias de negócios escondidos, de documentos que desaparecem ou de lideranças bicéfalas... Não sei. Sei que na China, as senhoras optam por ir à praia com uma máscara de nylon, para evitar os raios ultravioletas e os malefícios do sol. Esperemos que a essa moda não juntem a máscara anti-fumos e anti-cheiros e anti-micróbios e anti-tudo tão querida aos seus vizinhos nipónicos. Ainda assim, esse exagero protector, sempre seria melhor do que certas caras-de-pau. Faria bem que se encomendassem uma quantas para quando se retomarem os trabalhos parlamentares.
Soube também que, a par do Bosão, a ciência avançou também nas previsões do futuro. Para além dos mistérios da Vida, desvendam-se agora também, ainda que o futuro que é possível prever seja ainda a curto prazo, os mistérios do Inenarrável. Já vejo romagens a este novo Oráculo. Mas para isto não preciso de saber prever com exactidão o futuro. Contento-me com a imagem do Calisto Elói, eloquentemente vociferando na assembleia contra a corrupção dos costumes e Teodora, sua desprezada esposa, a caminho de Lisboa, como um furação. Prevejo que nem a máscara de nylon lhe vai valer. Nem essa nem outra qualquer equivalente.

quarta-feira, 18 de julho de 2012

Purificação IV


Passaram os dias e a Purificação sem aparecer na igreja. Nem rezas nem missas. Estava, por assim dizer, de greve. Curiosamente, não pensava muito nisso. Vivia os dias imersa nos seus trabalhos e, depois, na companhia da irmã, que era agora a sua missa. Estava a finar-se. “Desistiu”, dizia somente a Purificação às vizinhas que perguntavam melhoras. E quanto mais a irmã definhava, mais zangada ela estava. Com Deus, com as pessoas, com a bebida que lhe roubara o sobrinho, com o carro que lhe batera mas, sobretudo, com a impotência que a consumia. Era uma coisa de dentro, enorme, que devagar lhe comia a alma e a enchia de amargura. Primeiro perguntara-se por que razão Deus não lhe acudia, nem acudira ao sobrinho, ou à irmã, agora enferma na cama. Culpou-se a ela. Talvez rezando mais... Ou melhor... Mas não sabia como se rezava melhor. Depois culpou Deus, ele próprio, virando para ele a sua angústia e a sua ira. Queria lá saber se aquilo era pecado. Queria lá saber se ofendia. Ofendida estava ela, e não era pouco! Queria era respostas e não tinha nenhuma. E a morte, que sempre vem, não espera por respostas. Cumpre o seu papel e pronto. Faz-nos atravessar o momento único, tão pessoal, tão íntimo, pega-nos na mão por momentos, um instante só, e depois, cumprido o seu papel, segue adiante e ficam, na mesma, as perguntas sem resposta. E Deus nem lhe acudia nem lhe respondia. Sentiu-se ela própria um Job, engolida pelo peixe enorme da vida que agora a cuspira despojada de todas as seguranças, todas as alegrias, todos os merecimentos e todas as consolações. E à sua volta, só vazio. E desilusão. Depois, a ira deu lugar só à dor. Não mais se culpou a ela. Nem a Deus. Na sua cabeça, não valia a pena esperar por repostas que não viriam. Percebeu, por fim, que a culpa não era de Deus, mas dela. Não a morte do sobrinho, claro está, mas as expectativas, as crenças, as confianças cegas. Não culpou Deus. Mas não percebia porque lhe tinha falhado. Ficou só a tristeza. E o desencanto, oco.
O prior, estranhando a ausência, a falta de notícias e as rezas diárias, mandou uma delegação do beatério saber da Purificação. Primeiro mataram saudades. Os “como está”, os “como vai indo” e os “como passa a Gracinha”, repetidos tantas vezes quantas as delegadas senhoras. Depois as conversas do costume, feitas a chá e bolo mármore, com lamentos pela tragédia daquela família. “Pois digam lá ao senhor prior que eu não estou bem, não senhor. Que me falta alegria. Mas, sobretudo, que me faltam respostas. Que a minha irmã se está para finar, porque o filho lhe foi morto pelo desemprego, pela bebida e por um carro que lhe bateu. Digam-lhe lá que agradeço muito ter-se preocupado com o meu querido sobrinho morto, das duas vezes que lhe falei do assunto. E digam-lhe também que ando muito atarefada, e que Deus nosso Senhor nem vem fazer o meu trabalho nem me responde às perguntas que eu lhe faço. Já rezei muito, mas agora tenho que tratar da minha irmã Gracinha e de mim própria. Um tempo para tudo, não é verdade?”
As outras ficaram-se sem pio, sobretudo com o remate da Escritura, pois efectivamente lá se lê que para tudo há um tempo. Lá se foram, depois do chá que a Purificação lhes deu, levar o recado ao prior. Ficou boquiaberto, mas nada disse. Não era muito bom com as palavras, o que é em si mesmo um paradoxo, para um homem que é ministro da palavra não se entender com elas.
Quem não se ficou foi o velho monsenhor. Soube daquela tragédia, e da tragédia maior que era uma ovelha perdida. Muito a custo, mas cheio ainda do zelo de pastor, lá deixou as portas cerradas e verdes do paço, atravessou as ruas, agora tão desconhecidas e estranhas, a passos miúdos amparados de bengala encastoada, e foi ver da Purificação. Ele recebeu-o muito bem, mas algo distante, o que não passou despercebido ao velho sacerdote. Os “como está” e “como passa a Graça” foram logo substituídos por um abraço. O velho, sem grandes palavras, estendeu-lhe os braços. Ela aceitou-os, não tanto por serem do padre, mas por precisar dum consolo. O padre não era de conversas fiadas. Mas era sabedor da experiência feita de muitas perdas acompanhadas. “Ás vezes, a única coisa que faz falta é um abraço”, disse ele. Deixou-a chorar, como já antes da primeira vez, no vestíbulo do paço a deixara chorar e falar até ela se desunhar, para que a mágoa tivesse escapatória, em vez de a consumir. Ficou ali não sei quanto tempo, até o velhote lhe dizer para se sentarem um bocadinho. Ela fungou uma vez mais e sentaram-se. “Tenho rezado muito por ti, desde aquele dia. Soube logo que morrera o Jorge. Mas ele agora está junto do Pai. E tu, minha querida filha, precisas é de consolo. Diz-me, deixaste de ir à igreja?” Ela nada. “Eu entendo”, continuou o velho. Ela levantou os olhos e disse só: “Desencantei-me, que hei-de fazer?”. “Pois, nada, cara amiga. Não tens de fazer nada.” Ela ficou surpresa com a resposta. Mas ele tranquilizou-a logo, com um sorriso. Tinha um sorriso de velho sabedor, que trazia com ele uma calma. “Não vim cá para te convencer a voltares. Não senhora. Fica descansada. Para que serviria eu convencer-te a ires à missa se fores só para me fazer a vontade e não sentires, no teu coração, que precisas de lá ir?” Carregou as sobrancelhas. “Vim foi conversar contigo. Porque a morte é velhaca. E tu agora vês-te sozinha e desconsolada. É o caminho aberto que o Diabo quer. As pessoas quando estão frágeis e sozinhas são como galinhas presas com a raposa à solta”. E falou-lhe da fé que move montanhas, dos tempos de Deus e dos tempos para as outras coisas, falou-lhe da confiança da fé viva, da entrega nas mãos Deus e de algo que até então nunca ninguém lhe falara. Falou-lhe da necessidade de cada um fazer a sua parte no jogo da vida. “Ou pensas tu que Deus desce dos Céus para vir fazer por ti a tua parte?”
E assim ficaram, tarde fora, naquela conversa. Ainda houve tempo para chá e bolo mármore, porque entretanto eram horas de merenda. O monsenhor foi dar as melhoras às Gracinha, e foi-se, de volta ao paço. A Purificação ficou com aquele conforto, da companhia e do espírito, e pôs-se a pensar nas palavras do sábio, enquanto se acercou da cama da Gracinha, para lhe fazer um bocadinho de companhia. Pouco mais esperava da vida. Sabia, como toda a gente a sabe, que o tempo cura. Precisava de tempo. Para ajudar a irmã, de quem não desistira ainda, para sarar o coração sofrido da perda do sobrinho e para pôr as ideias em ordem e fazer as pazes com Deus. Não sei se seria bem fazer as pazes. Não estava já propriamente zangada. Era só aquela sensação de vazio e de abandono. De desencanto. Calculou que talvez para isso precisasse de mais tempo do que aquele que a vida estaria ainda disposta a dar-lhe. Mas também não podia afirmar, porque certezas são coisas que não se podem ter nestes assuntos. E de verdade, verdadinha, Deus só tinha falhado porque ela quis acreditar que tudo se resolveria com terços. Deu-se feliz por saber agora que não. Infeliz à mesma porque apesar desta nova descoberta na sua vida espiritual, nada adiantava em relação ao que tinha acontecido ao sobrinho. Era assim a vida. Nunca sempre feliz, nem sempre infeliz. E a dela, que em boa parte tinha sido sossegada e, portanto, para ela coroada duma certa felicidade, estava agora mais mais propícia à infelicidade.
“Bom dia, D. Purificação”, acenou-lhe o Zé do Vão, como era conhecido na rua, por ser dono da tabacaria, metida num vão de escadas dum prédio, onde se vendia não só tabacos, mas atacadores, pentes, jornais, revistas, e uma parafernália de outras coisas. “Bom dia”, respondeu a Purificação, ficando-se a pensar. “Esta agora”... Comentou com a Gracinha o cumprimento do vizinho que, pela primeira vez em tanto tempo, desde a morte do seu Jorge, se sorriu.
A vida corria agora bem devagar, como sempre acontece na velhice. Estavam as duas velhas, a mana Purificação e a mana Graça. A Gracinha recuperava aos poucos, que é como quem diz, já não passava os dias na cama. Sentava-se ali na salinha, a ver a televisão, que entretanto a Purificação tinha ido buscar a casa da mana. Teimou com a Gracinha que viesse viver com ela, para poder tomar conta dela melhor. E assim foi. Veio a televisão e as malas de roupa, a mobília gasta. Tudo na furgoneta do Venâncio, vizinho da Gracinha, que se prontificou a tratar das mudanças. A casa ficara lá, vazia, lembrança vã de uma vida que deixara a Graça sozinha. Decidiu, tempos passados, entregá-la ao senhorio. Não voltaria àquela casa. Não sem o seu Jorge, nem sem o seu homem, já morto há tantos anos que nem se lembrava bem quantos. Ficava-se, pois, ali, na salinha à espera da Purificação que vinha ora das limpezas, ora de algum mandado, e entretinham-se as duas na conversa ao serão ou no crochet. Às vezes ia lanchar com o Zé do Vão, sempre com um sorriso cúmplice da Gracinha. Corria-lhes devagar a vida, sem terem mais propriamente por quem fazê-la correr senão por elas duas. Como se o relógio do paço marcasse agora ali também o tempo, e os minutos dessem lugar às horas sem se dar por elas. Às vezes passava pela igreja. Umas vezes entrava, outras não. Quando entrava, rezava uma Avé-Maria e ficava-se ali um bocadinho. Sentava-se, fechava os olhos e ficava-se no silêncio. Aprendera a gostar tanto da quietude do silêncio. Às vezes também saía uma lágrima. Depois levantava-se e ia à sua vida. Fizera as pazes com Deus, mas também fizera consigo própria. Maria da Purificação levava uma vida pia. Pia e pura, como ela, mas já não feita de terços nem de rezas. Dedicava-se à irmã, apreciava a vida como dádiva, sabendo que o tempo, mesmo que o relógio do paço o marcasse devagar, haveria de esgotar-se, e isso lhe bastava para à noite, no travesseiro, pôr a cabeça em sossego.

domingo, 15 de julho de 2012

Purificação III


O velho homem recebeu-a com amabilidade. Sabia, naturalmente, ao que vinha. Pessoas da idade e da posição dele não se iludem. Mas ainda assim, era agradável receber visitas, e vê-la era lembrança de outros tempos. Ficaram ali no vestíbulo, sentados num banco-arca de madeira escurecida, bem polido mas com ar de muito velho, bem mais velho que o monsenhor. Primeiro umas palavrinhas de circunstância, depois as conversas do antigamente, do dantes... Ah, dantes... Olhava o monsenhor para a parede em frente, com as mãos sobrepostas na bengala encastoada, como se nela estivesse a ser projectado um filme mudo ou a preto-e-branco dos tempos em que ele nem precisava de bengala nem era ainda vetusto e sábio. A Purificação acompanhou-o, olhando também para a parede, mas o velho já se tinha deixado levar pelo filme das memórias que via, enquanto ela continuava ainda a desdobrar-se em episódios e coisas de outras tempos. Ali, tudo era diferente do mundo. Uma porta, enorme, grossa, de verde como convém aos paços, uma porta apenas, os separava do mundo lá fora. E, no entanto, ali, tudo era tão diferente. Sereno, respeitoso... Até o relógio de parede, ao fundo do vestíbulo, não deixava que o pêndulo fizesse sequer um tique-taque. Andava para cá e para lá, tão silencioso que os minutos davam lugar às horas sem que se desse por elas. Havia uma certa solenidade no ar que deixava as pessoas pouco à vontade. Quase por impulso, toda a gente falava muito baixo. E andava devagar. Tudo muito pausado. Chegou junto deles uma freira, por certo lá empregada, tão devagar que a Purificação nem se deu conta dela chegar. Queria saber se o monsenhor não quereria uma chá ou a senhora... O monsenhor acordou do seu torpor e disse que não, para ele não. A Purificação também não quis o chá, embora a garganta se lhe secasse, sem saber bem como começar. Foi o monsenhor que lhe deu o mote. “Então, minha amiga, diga-me cá. O que posso fazer por si”. E ela lá disse, a medo e sem grande jeito para as palavras, meio gaguejante. Ele pegou-lhe na mão, e ela olhou para ele e não se conteve nas lágrimas. Chorou e desabafou e abriu o coração ao velho homem, que ouviu, ouviu sempre de olhos postos nela. Ela foi falando do sobrinho, da situação dele, do desemprego, da bebida, da preocupação com a irmão Gracinha – como vai ela?, quis saber o monsenhor – e depois falou-lhe até das suas dúvidas de fé. Não entendia porque razão Deus não lhe acudia. Queixou-se de que já falara duas vezes com o senhor prior...
Deixou-a falar quanto quis. Bem sabia que deixar falar quem precisa é meio remédio para a cura. E, às vezes, remédio inteiro. Depois disse-lhe que ia ver o que podia fazer. Sem promessas, bem se vê. Mas ia dar uma palavrinha... Disse-lhe ainda que atentasse nas palavras da Escritura, para mitigar e procurar ânimo nas dúvidas: “Os meus caminhos não são os vossos caminhos”. Terminou ele. Ela agradeceu, de coração mais leve e abriu a porta grossa e verde, despedindo-se e voltando ao mundo.
Foi a pensar nas palavras do velho, tanto quanto a sua mente lhe permitia. Mas misturava-se naquele adágio, que parecia poder resolver tudo, o barulho da rua, agora tão contrastante com o silêncio reverente do paço, a situação do sobrinho e a preocupação com a irmã Gracinha. Tinha a cabeça num novelo. Pôs-se a olhar para o movimento dos carros na estrada, velozes, numa marcha inexorável, como o tempo, que sem se importar com os infortúnios das gentes, passa sempre. Perdeu-se nestes pensamentos o resto do dia, enquanto bradiu panos de pó e vassouras nas suas limpezas, como que banindo com o pó as preocupações da vida. Estava cansada nessa noite. Ia a caminho da missa vespertina quando lhe veio ao encontro a Gracinha, esbaforida, aos gritos por ela. “É o Jorge. É o meu Jorge...” disse-lhe em prato, enquanto ela segurava a irmã abraçando-a, por entre “pronto, pronto” e “acalma-te lá”. Ficaram as duas ali, muito tempo, abraçadas.

O Jorge, enlevo da tia e razão de ser da mãe, estava morto. Um carro, na noite, juntamente com a bebida, tinham-no levado da vida.
Durante dias, a Purificação matou-se em trabalho.Trabalho e mais trabalho, horas infindas que a ela não importavam, conquanto que a cabeça estivesse obrigada às obrigações. “Ajuda”, dizia ela, umas vezes para si mesma, outras para quem se acerca dela com lamúrias. A lamúria não fazia o género dela.
A Gracinha, por seu lado, mergulhou numa letargia própria do luto, mas agravada por ter perdido a razão de viver. A Purificação não sabia mais que fazer. Desdobrava-se em cuidados, em chávenas de chá, em canjas de galinha, em abraços e tentativas de fazer conversa. Mas nada parecia tirar a Gracinha daquele lugar longínquo para onde se remetera.
Certa tarde, antes da missa vespertina, pôs-se a olhar para o santo e reparou que estava enegrecido. Já tinha olhado para ele muitas vezes. Mas agora olhava e só via a escuridão que envolvia o santo, mercê do fumo de velas, do pó e dos anos. Olhou para as mãos que seguravam as contas do rosário, sem perceber muito bem porque razão continuava a balbuciar mecanicamente aquelas orações. Estava zangada. Desencantada. Poucas coisas são maiores que o desencanto. Como se tivesse acordado dum sonho, no caso o dela própria, de uma vida inteira, e se se visse agora sem saber que fazer nem para onde se virar. “Então, D. Purificação, não fica para a missa?”. “Hoje não posso”, respondeu ela ao prior. “Deus anda ocupado e eu tenho muito que fazer”. E foi-se embora. Assim, sem mais nem menos. O prior ficou meio embasbacado, mas nada disse. Também não lhe ocorreu nada para dizer.

continua

sexta-feira, 13 de julho de 2012

Purificação (parte II)


Comadre Marília muito se admirou de ver a Purificação por ali àquela hora. “Então hoje não foi a vésperas?”
“As vésperas hoje são outras”, bradiu-lhe a Purificação. “Ando arreliada com esta coisa do meu sobrinho não arranjar trabalho. Até anda mais magrinho, o pobre. Ando a ver se percebo bem isto da situação. Queria até saber se a Comadre não se importa que lá vá hoje, para ver as notícias na televisão.”
“Ora essa, pois disponha, Comadre. Coitado do seu Jorge...”
Mas as notícias também não lhe trouxeram grande novidade. Já percebera bem que a situação era a mesma de sempre. Seja de há dez ou vinte ou cem anos. A diferença é que agora era tudo mais moderno. Mas ninguém parecia saber muito bem como resolver isto. Governar um país não é para loucos. Nem para parvos. Bem fez a Purificação que se dedicou às rezas. Essas não têm que saber.
Os dias passavam-se e agora era já a Purificação que sofria com o sobrinho. Rezava e rezava. Andava desorientada porque nunca até então as rezas lhe haviam falhado. Voltou a ir falar com o senhor prior. Voltou a pedir, não conselho, mas que olhava para o sobrinho. “Se o senhor prior pudesse...”, pediu de mãos postas, como se fosse defronte do santo enegrecido. E ele disse que sim. Que ia ver. Que ia tentar. Que se havia de arranjar qualquer coisa. Foi mais sossegada, mas não pregou olho em toda a noite. Havia dias que já não dormia bem. Acordava sobressaltada, e soltavam-se-lhe as lágrimas, sobretudo depois da Gracinha ter vindo desabafar. Naturalmente, também ela andava com o coração nas mãos. É difícil a uma mãe ver que nada pode pelo filho. Nada não. Pode carinho, pode sacrifício, pode amor. Não pode, contudo, trabalho. E era isso que faltava ao Jorge. Foi apanhá-lo a beber. Ela pediu-lhe que parasse, mas ele afastou-a e foi-se pela rua abaixo, passos trôpegos, comiserando-se consigo mesmo. E assim as manas iam-se consolando uma à outra. Uma rezando, a outra gemendo. A Graça dizia-lhe que gostava de ter a fé dela. A Purificação abraçava-a e deixava sair uma lágrima, não pela mana, mas secretamente por si própria, porque fundo, lá bem fundo, era já sabedora do que não tinha coragem para dizer à mana: a fé não basta contra o mercado de trabalho. Parece que essa montanha não se move só pela força da fé. E a lágrima que agora saía era de desconsolo e até de uma certa desilusão.
Passavam-se os dias e rezavam-se os terços, sem grande novas. A Purificação redobrava-se em fervorosa oração e penitência e Graça em secreta vigilância do filho, que vagueava, quando não bêbado, à procura de ficar. Purificação dizia que tudo aquilo era uma provação. Pediu à Gracinha que fosse com ela rezar. E ela lá foi, com a mesma esperança de quem se sabe impotente e se volta para donde for que venha a luz. Perguntava à irmã onde ia ela buscar forças para ver naquela desgraça a vontade de Deus. A Purificação respondia-lhe que confiava em Deus, e isso bastava-lhe. Uma agarrava-se à fé. A outra à secreta esperança dum milagre, sem acreditar nele. Como pode haver milagres se não se crê neles?
Não vendo melhoras, decidiu-se a ir ao Paço, não para ver o bispo, mas à procura do velho Monsenhor, tão velho que conhecera as manas ainda meninas, a fim de lhe dar uma palavrinha. Era homem de sabedoria, daquela que os muitos anos trazem, e com a sabedoria veio também o conhecimento. Acabaram por vir também os conhecimentos, e ela deles que ela agora precisava. Não era mulher de pedir favores, apesar de já ter ido falar com o senhor prior por duas vezes. Fora como uma filha vai a desabafos com o pai e, portanto, não o entendera bem com favores, embora o fossem e ela sabia-o. Mas agora ia mesmo à procura de um jeitinho que o velho monsenhor pudesse dar. Apesar de continuar pouco interessada nos jornais e nas coisas do televisor, tinha muito boa ideia de como funciona o mundo. Houve tempos que julgou mudá-lo, à força de rezas. Percebeu que o mundo precisa de muito mais anos dos que contêm uma vida para que qualquer reza, seja qual for, produza qualquer efeito. Não por Deus, que sempre escuta quem lhe pede, mas pelo mundo. Dizia consigo que não é toa que o mundo é inimigo do homem... Talvez seja mesmo. Lamentavelmente, o homem é responsável pelo mundo. Mas isso era já filosofia demais para a Purificação. E a filosofia, na sua pertinaz opinião, era coisa de quem não tem muito com que se entreter. Concentrou-se no caminho, embora nervosa, por bem saber que o que lhe ia custar pedir um favor, assim com toda a pompa de pedir favores. Nunca o tinha feito. A sua mãe sempre lhe ensinara que pedir favores não convém a ninguém porque, mais tarde ou mais cedo, todos são cobrados. E o preço que nos pedem de volta, podemos não o conseguir pagar. Quando era pequena não percebia isso. Mas os cabelos também já branqueados traziam-lhe uma qualquer sapiência, pelo que entendia bem que quem se governa com favores, entrega a alma ao diabo, sendo o diabo quem se quiser tomar por ele. Certo é que sossego nunca mais haverá, porque quem favorece espera sempre ser favorecido um dia, em maior ou menor grau. E ela presava, e muito, o sono descansado na sua travesseira, ainda que ultimamente lhe fugisse, por andar tão apoquentada.

(continua)

quarta-feira, 11 de julho de 2012

Purificação


Maria da Purificação vivia uma vida pia. Pia e pura como o nome, vivida de terços desfiados, rezados devotamente, por entre joelhos moídos e velas acesas, a santos enegrecidos pelo tempo e pela fumaça. Rezava pelos pecadores, não se contando entre eles, nem se dando conta que este seu presumir-se pura era já tanto pecado. Rezava pelas Chagas, como se precisassem, elas, ainda de alguma remissão, esquecendo-se ela própria remida pelo sangue. Rezava pelo senhor Santo Padre e pelas suas intenções, fossem elas que fossem, que a ela chegava-lhe o descarrego de consciência do dever devoto cumprido. Quando à noite punha a cabeça no travesseiro, duas coisas lhe garantiam o sono: o trabalho árduo e o saber-se contribuinte para diminuir o Mal no mundo, fazendo dos seus terços, das missas ouvidas, e das vassouras e panos com que trabalhava as suas armas. Nisto se consolava. Os seus dias eram simples, como simples era a vida que sempre vivera, não sei se por escolha se por acaso, como decerto ela também o não sabia. Acredito que nem tão pouco tenha sido questão que algum dia se lhe tenha levantado. Era um espírito simples e nisso, tinha a certeza, ganhara o Céu. O Bom Jesus o prometera. Quando não estava na igreja, fossem matinas, vésperas ou hora de missa, trabalhava. Limpava a dias, melhor a horas. Primeiramente, as horas eram para Deus. Depois para tratar do ganho e dar sustento ao corpo. Vaidades nada. A sua única vaidade tinha sido um vestido fino, estreado numa ida ao teatro, no salão da paróquia, aqui há uns anos, para ver cenas da vida do Cristo. Conheci-as ela de cor, e nelas se compadecia e consolava quando os actores lhe mostravam ora a glória ora a paixão. O único homem que tinha por próximo era o senhor prior. Para além dele, apenas o caro sobrinho, enlevo da sua alma, para quem amealhava todas as coroas que lhe sobravam. Era filho da sua única irmã, Maria da Graça. Chamavam-lhe sempre só Graça, ou Gracinha às vezes, ainda que graça fosse coisa que já não tinha. Os anos tinham-se encarregado de a carcomir a ponto de sobejarem só rugas. Tinha a saúde frágil, coitadinha, dizia a Purificação. Por qualquer razão, as Marias são sempre chamadas pelo segundo nome. “Sempre foi muito fraquinha”, dizia a Purificação. Só uma vez vira um homem de ceroulas e, por desgraça, o pai, quando certa vez o apanhou à saída do barracão onde tomara banho, noutra vida, sendo as Marias ainda garotas e vivendo não na cidade mas na ruralidade a que agora se aspira por moda. Por moda e também por desespero. Bem diz a Purificação que havemos de ter de voltar todos à enxada. Mas desse fortuito e traumático encontro logo se seguiu uma ida ao confesso, que aquilo não eram coisas que uma filha devesse ver. Mesmo tendo sido uma casualidade. Fora o Diabo. Expurgá-lo fez acender um ror de velas na capela e orações em laus perene. Pia e pura, assim viveu e cresceu.
Durante anos, a sua distracção fora a televisão, mais pela companhia do que pelos programas. Interessava-se pouco pelos programas, porque facilmente via a malícia e os apelos à luxúria. Mas gostava de ver as missas solenes. Sonhava um dia poder ver ao vivo aquela devoção de milhares que só pelo aparelho acompanhava. Mas um dia, certa freira de clausura com quem falava, por ocasião dumas jornadas de oração, disse-lhe que a capela era a sua televisão. Elevou-se-lhe a alma de tal modo, inflamada por tamanho exemplo, que atirou fora o televisor. Apesar de ser velho, o sobrinho reclamou, porque sempre lhe poderia dar proveito.
Certa vez um senhor padre que ali estava por ocasião duma pregação, disse-lhe que ela rezava demais e descurava de menos as obras pias. Falou-lhe da misericórdia em vez do sacrifício. A ela, toda pura e pia, que já perdera a conta aos terços oferecidos pelos pecadores. Indignou-se. Chorou bastante nesse dia, pelo choque e pela desfeita. Mas não se abateu. No dia a seguir reuniu o beatério e houve romagem ao paço. Do pregador nunca mais se ouviu nada naqueles lados. O senhor prior também foi chamado a capítulo. Estava lá no paço um velho monsenhor, tão velho que conhecera as Marias novas e disse, com a sapiência dos anos, que a um espírito simples não convém grande teologia. Desde então o senhor prior pouco mais faz que pregar à Purificação e às outras Marias as virtudes da oração.
Amargurava-se agora a Purificação, quando os cabelos brancos já eram muito mais que os pretos e as rugas eram quase já tantas como as da Graça, porque o caro sobrinho andava desempregado, para mais de um ano. Falou do caso ao senhor prior, crente nos empregos que o cura haveria de ter em bolsa para os pios. Pediu-lhe primeiro conselho, depois ajuda. Fez promessas. Havia noites que os joelhos já se recusavam a mais, mas ela não lhes dava tréguas. Empregos para o sobrinho é que nada. Aquele quase desapego pelo mundo não a deixava compreender porque razão o estimado rapaz não conseguia empregar-se. O senhor prior tentava explicar. Mas à falta de melhor explicação para dar àquele espírito puro, dizia-lhe para ter paciência. E ela tinha. Mas nessa noite, em vez de se ir pôr diante da imagem enegrecida, decidiu por-se ao corrente da “situação”. O sobrinho estava sempre a falar-lhe da situação. Ela não entendia, mas também não se preocupava muito. Era coisa de gente moderna. A ela bastava-lhe ter na cabeça, bem arrumado, o calendário das suas limpezas. O sobrinho, às vezes, soltava um desesperado “oh tia”... E ela abraçava-o, beijava-o na testa e tirava uma nota da carteira. E pronto. Ele também não adiantava conversa. Agradecia a nota, soltava uma lágrima, ela outra, e ia cada um à sua vida.
Pela primeira vez em muitos anos, quis ler o jornal. De início assim sem grande entusiasmo. Depois começou a atentar no que se dizia. Depois das parangonas, assustou-se com as mortes e os assaltos. A guerra lá ao longe. “Não mudou assim muito”, comentou de si para si, aludindo à última vez que lera o jornal. Se havia coisa que no mundo a não surpreendia eram as mortes, os assaltos, a violência, nem mesmo a guerra. Tudo isso era o mundo. E essa mesmo fora uma das razões pelas quais não lhe custara assim tanto ficar sem o televisor, nem devotar-me mais às rezas e menos às conversas. O que ela procurava mesmo eram as páginas da economia. Queria por-se a par da situação. Folheou com cuidado, como quem sabe o que anda a procura e leu com desvelo, como quem medita um catecismo. A coisa que mais a surpreendeu foi saber que havia países falidos. Parecia até que a falência era a palavra de ordem e que o país, nunca tendo sido desafogado, estava agora mais que afogado. Atentou cuidadosamente nos dizeres de todos aqueles senhores bem postos, engravatados, de ar grave e falas mansas. Leu e tornou a ler, porque o palavreado era por demais floreado e se cuidado não tivesse naquela atenta leitura, ficava-se exactamente na mesma. “Podem por-lhe gráficos e coisas bonitas, mas 'tá visto o que é a situação: não há tusto. Venderam isto a retalho, os mariolas. Arre que gente!”. E fechou o jornal. (...)
continua

NOTA: Purificação é um conto. Como tal, extenso demais para publicar duma só vez, pelo que optei por dividi-los em vários posts. Assim, sempre é possível aguardar pelos próximos capítulos... ;)

sábado, 30 de junho de 2012

O ridículo e o desencanto


Voltei a passar em frente ao baldio onde dantes era um hotel, agora em ruínas, e onde estavam os tufos de papoilas encosta acima. Já não há papoilas, seja porque passou o tempo da floração, pelo menos daquelas, seja porque o estio veio com força e trouxe temperaturas de 40 graus, levantando de imediato um côro de protestos e de alertas de radiações altas. Queixamo-nos porque está calor, quando está calor; queixamo-nos porque está frio, quando está frio. Somos uma espécie difícil de contentar. Queixarmo-nos do calor em Julho ou do frio em Janeiro é a mesma coisa que queixarmo-nos da areia da praia ou do mar ser salgado. Mas somos assim. Um desfiar de queixumes. Há sempre qualquer coisa que não está bem. Nem que seja uma dorzinha pequenina, uma moínha, às vezes. Ou uma corrente de ar que deu uma dor de garganta. Ou uma espinha das sardinhas. Ou o vinho que tem pé. Ou a bica que vem fria. Ou quente de mais. Ou do Ronaldo, que não marca golos. Penso mesmo que nos está no sangue o queixume, da mesma forma que o fado não seria fado se não fosse português. A prova disto mesmo é o Ronaldo. Ontem era o homem que não se entregava à camisola, que não marca golos como marca no Real, que é vaidoso, que não joga nada. Hoje é o nosso capitão. O herói da bola, espelho dum país rendido às chuteiras, ao génio dos jogadores e consolado nas vitórias brilhantes da nossa Selecção. A forma como o nosso capitão passou de besta a bestial fez-me pensar em Pascal, naquela ideia do homem não ser nem besta nem anjo... Mas acontece muito. Como pode o homem jogar na Selecção da mesma forma que joga no seu clube, se os jogadores são outros, o tempo de treino é diferente e o treinador também não é o mesmo? A racionalidade e o futebol são duas coisas que não combinam.
Não gosto de futebol. Acho uma coisa estéril, enfadonha, demasiado conturbada por negociatas e trocas de galhardetes. Parece-me estranho que se lhe chame desporto. Talvez não o entenda. Dou esse benefício. Verdade é que não faço grande esforço para entender. Apesar disso gosto da Selecção. Da mesma maneira que gosto de tudo o que eleva a alma dum país tão corroída como a nossa. Por alma devem entender-se as pessoas. A alma dum país são as pessoas. E nós, as pessoas deste pequeno País, habituado a sermos tão pequenos, andamos acabrunhados. Então sim. Que se vibre com a Selecção, que se acarinhem os jogadores, que se dêem vivas ao Ronaldo, que se festeje nas ruas. Sim, que se celebre este orgulho de ser Português. Mas que não se pense, por um minuto, ludibriar a alma dum povo. Fazer das pessoas parvas é que não. Se a festa servir para puxar pelas gentes, então sim. Se servir para lhes atirarem areia para os olhos, então não. A ilusão é, porventura, a pior inimiga da alma dum País. É ilusão pensar que o País se endireita com os golos do Ronaldo. Mas é legítimo festejá-los. É ilusão elevar acima da mortalidade o génio da bola. Irrita-me mesmo que se eleve mais o génio futebolístico do que o génio literário, ou outro génio artístico; do que o génio científico, o génio matemático ou mesmo o génio político, embora deste não possamos apontar nenhum caso conhecido. Eu, pelo menos, não conheço. Mas, também, que conheço eu da política, a não ser a medianidade de uma pequena parte e a mediocridade do grosso, feita por gente que ocupa cargos para os quais não está qualificada, cuja única experiência foi conseguida à sombra de comícios ou palmadinhas nas costas ou até porque é amigo do amigo do amigo de alguém?... Gostava que houvesse um, um só, que apresentasse a mesma convicção, a mesma garra, a mesma vontade de ganhar, o mesmo sentido de entrega do nosso capitão. Que realmente percebesse o que se quer dizer quando se diz serviço público... O que isso implica de entrega, de compromisso, de dedicação, de sacrifício, de aniquilação de si próprio... Então talvez a festa fosse mais legítima e, certamente, mais autêntica, sem ser inflamada pela alegria contagiante dos golos marcados e das vitórias da Selecção, mas assente em progressos verdadeiros no sentido de dar aos portugueses a alegria perene da cabeça erguida de quem se sabe senhor de si mesmo. Lamentavelmente a genialidade não se faz por tirar a gravata ou andar pelo Parlamento de brinco na orelha. Se assim fosse, teríamos já alguns génios de mérito. Em vez disso, vamos caindo no ridículo. E as pessoas que têm a missão de defender o Povo (não gosto desta palavra, está politizada e tem sempre segundos sentidos. Mas aqui não. Povo e povo só, por definição o soberano dum estado democrata) vão fazendo tristes figuras de si próprias, como o senhor Presidente que por alguma iluminação momentânea de marketing político de algum de algum membro da sua entourage ou assessores ou estrategas deste negócio da política, vi há dias a inaugurar qualquer coisa de fato e camisa, mas sem gravata. O pior é que a camisa, de tão habituada à gravata, estava teimosamente agarrada ao pescoço. E lá iam as figuras proeminentes daquele evento também de fato e camisa sem gravata. A gravata não faz o político, da mesma forma que o hábito não faz o monge. Mas que seria do monge sem o hábito, tomando aqui por hábito todas as coisas que fazem parte do seu ofício. Pode haver políticos sem gravata. O que não pode haver é políticos que caem no ridículo, tanto mais quando representam o País.
Estou convencido que já passámos a era do vazio, lamentavelmente apenas sentida por quem se dá ao privilégio de pensar. Haverá quem se interrogue por que razão as coisas estão a acontecer deste modo, sem perceber que a razão última é o esvaziamento a que nos sujeitaram e nos sujeitámos. Quisemos libertar-nos das peias e esquecemos que quando se tira algo tão fundamental como os valores, que são como que o tear onde se teceu a espécie humana, seria necessário colocar qualquer outra coisa no seu lugar. Em vez disso ficou o vazio. Goste-se ou não, a crise que vivemos é de valores. Não particularizo nenhum, porque estou convencido que todos, em maior ou menor grau, foram relativizados, postos em causa ou mesmo aniquilados em alguns casos. Nalgumas coisas coisas foi bom, noutras não. É sempre bom inquirir, questinar, aprofundar. Não é bom lançar a dúvida quando não se tem solução alternativa. Cria instabilidade. E ilusão. E a ilusão é a pior inimiga dum Povo. Pode criar também crise. Mas crise não é também o que temos. A palavra grega krisis significa separação, ruptura. E, portanto, nesta linha, uma crise é sempre ruptura com algo para se prosseguir para outra coisa diametralmente diferente. Ora a situação que vivemos é unicamente a prova da falência do modelo financeiro e económico estabelecido, sem que esteja a ser feita, em parte nenhuma, qualquer esforço por encontrar outro modelo que sirva os interesses e as necessidades das pessoas. Pelo contrário, arranjam-se arremedos de soluções, na expectativa de fazer ainda durar este modelo moribundo mais uns tempos. As consequências serão, creio, nefastas e imprevisíveis. Mas não boas. Passámos a era do vazio. Agora é a era do ridículo. Mas também poderia ser do desencanto, e eu seria o primeiro dos desencantados.
O estio chegou forte. Poderíamos queixar-nos da falta de dinheiro, de empregos, de soluções estratégicas verdadeiramente importantes, mas não. O calor é que nos mata. Mesmo que andemos louquinhos por esticar o pernil no areal da praia. Somos difíceis de contentar. Eu por mim já me contentava com uma seara de trigo, onde houvesse, aqui e ali, umas papolias.

Já me esquecia: se dúvidas houvesse, esta pessoa não escreve de acordo com a chamada nova ortografia .

quarta-feira, 30 de maio de 2012

Post prandium


Fui, na minha volta diária post prandium, cidade fora. Gosto de passear, curiosamente prazer raro. Não sou comunicativo. Sou observador. Dentre os meus muitos defeitos, conta-se o perder-me em pensamentos no meio da rua, por qualquer coisa que vejo ou por alguém que passa e me leva a pensar. É assim quase todos os dias. Se pensar me desse sustento, estaria rico. Lamentavelmente não dá. Atravessei o jardim, numa tentativa muito frugal de mitigar saudades da natureza, sendo embora ela tão espinhosa para mim, por causa das alergias primaveris. Pouco depois, reparei numa mulher que se me ultrapassou, porque o meu passo de passeante certamente não se coadunava com o que quer que fosse que a levava a andar na rua. Reparei nela não por ser especialmente bonita, mas por ser uma senhora fina, considerei, pela maneira como andava e os saltos, não muito finos, assentavam no chão sem aquele ruído exagerado de muitas outras senhoras que têm necessidade de se fazer notar. Tinha o cabelo armado numa cabeleira digna da “mulher do senhor ministro” e as calças,largas como convém a senhoras duma certa idade, eram pretas, mas de um tecido que não sei dizer qual. Infelizmente, não sou versado em tecidos. Mas aquele achei-lhe graça porque parecia luzir. Poderia, talvez, perguntar a alguma amiga que me instruísse naquele tecido. Mas não creio que nenhuma das minhas amigas seja também conhecedora dos tecidos. Claro, poderia perguntar à senhora com quem, por um capricho vil da vida, sou obrigado a conviver diariamente em casa do meu Pai, e que diz de si própria ser costureira. Mas a não ser que o canal dos brasileiros da TV cabo tenha algum programa sobre tecidos que luzem, ela provavelmente dir-me-ia qualquer coisa extemporânea, mesmo que não fizesse a mínima ideia do que está a falar. E eu ficaria na mesma por esclarecer a curiosidade sobre o tecido preto que luz. Certa vez, ainda não há muitos dias, estando no café, na rubrica de culinária de um dos programas da manhã que ocupam as televisões e as mentes, o chef mostrava um tapa qualquer feito de camarão e outras iguarias, embrulhados em pão sem fermento, à maneira dum wrap. O meu Pai admirou-se com aquilo, mas ela elucidou de imediato que aquilo era o que os ingleses comiam. O cozinheiro do canal brasileiro estava farto de mostrar aquilo. Aparentemente, o cozinheiro desse canal sabe de tudo, até mesmo comida alentejana. Pergunto-me para que quererá uma mulher nascida no Alentejo aprender cozinha alentejana com um cozinheiro brasileiro. Eu ri-me para dentro, tanto quanto a minha delicadeza mo permitiu, pensando de mim para mim que estou contente por a senhora não ir a Inglaterra. Se for, terá uma grande desilusão ao descobrir que os ingleses não comem rolos de pão ázimo com camarões e alface. Não é culpa de ninguém a ignorância. Mas irrita-me, a ponto de subir paredes, a presunção de saber, mesmo quando se não sabe. É quase blasfemo, penso.
A senhora das calças pretas que luzem e cabelo bem armado em laca ia a caminho do banco. Mas, por desgraça, o edifício tem várias janelas e a senhora fez menção de entrar por uma delas, pensando ser a porta, quase quase esbarrando com a cabeça dentro da cabeleira armada no vidro enorme. Deu-se logo conta do engano, até porque um cartaz com uma menina de sorriso pepsodent a fazer reclame a um produto qualquer do banco, não deixa margem para enganos. Ali não era a porta. A porta era ao lado, aliás muito idêntica à vidraça do lado, mas sem o cartaz da menina e com uma outra diferença, para além do óbvio puxador: tinha um botãozinho com um cartão vermelho bem visível, a dizer “carregue aqui para abrir”, mas que ela só viu depois de dois valentes puxões no puxador e de a porta não ceder. Ele lá pressionou o botão, algo atrapalhada, a olhar pelo canto do olho, não fosse alguém ter visto aquelas figuras. Eu vi, outros possivelmente também, mas não sei se alguém ficou a pensar naquele complot contra a finesse. Mas eu fiquei. Tenho este defeito, de me deixar ficar a pensar nas coisas mais absurdas. E até esbocei um sorriso.
Não tive tempo de pensar muito, sobre esta correlação da finesse e da atenção com que se anda na rua porque, nem dois passos adiante, reparei num rapaz que atarefadamente se esforçava por mudar um pneu de um carro. Não sei dizer que carro era, porque nem me pareceu um carro nem um jipe, mas antes uma mistura bizarra dos dois. Também não sou versado em carros, o que acrescenta mais um aos meus defeitos. Poderia, certamente, pedir ajuda aos amigos versados no assunto, mas o tempo que me levaria a explicar como o carro era e a infinidade de pormenores que me seriam requisitados para ajudar à identificação do veículo – dos quais nada sei, porque embora observador, centro-me no que me desperta a atenção, como por certo acontece a todos os observadores – levá-los-ia a exasperar, e a mim na mesma à ignorância do veículo. Sei que era feio, para o meu gosto, embora fosse visível que o rapaz gostava do carro, pese embora o seu ar de desânimo pelo pneu furado. A acompanhá-lo estavam três mulheres, uma mais velha e duas mais novas. Muito direitas, de braços cruzados. Talvez a mais velha fosse mãe. Ou mãe de uma das raparigas se alguma delas fosse namorada, e a outra irmã ou amiga. Ou talvez não fosse nada disso. Pouco importa. Voltei a sorrir, porque não pude evitar um pensamento sobre a igualdade dos géneros. Digo géneros, porque dizer igualdade dos sexos é estúpido. Não se pode querer que seja igual uma coisa que é intrinsecamente diferente. E no caso, até anatómica e morfologicamente diferente. Igualdade de sexos é estúpido. E a mim a estupidez irrita-me. Tanto ou mais que presunção. Claro que agora os géneros, que têm acompanhado a história da humanidade numa dualidade complementar, também podem agora ser polémicos, porque parece estar a surgir a ideia de ser necessário um terceiro género, o “T”, para designar pessoas que mudam de sexo. Parece que a burocracia que tais situações exigem demora o seu tempo, e isto serviria para evitar certas confusões que podem, até legitimamente, instalar-se. Pena ser também uma ideia estúpida. Ninguém pode ficar num estado provisório. Ou é M ou é F. Sem mais. Mesmo que mude de sexo. Antes era de um sexo, com o seu correspondente género, agora de outro. Gostar de complicar, numa tentativa de agradar a gregos e troianos, não chegará a lado nenhum, senão à confusão. Uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo. É simples. E o simples deveria ser sempre a escolha. Mas se em vez de se pôr a tónica na igualdade de sexos, se pugnar para que as pessoas, independentemente do seu sexo ou género, sejam vistas como iguais em direitos e deveres, então talvez sim, talvez se chegue a qualquer lado. Embora sejamos humanos há tanto tempo que já não deveríamos ter de perder tempo e pensamentos com estas coisas... Não é óbvio que somos iguais?... Que ridículos que somos às vezes. Não em sexo. Não em género. Isso não pode ser. Se alguém quer que seja, então que ninguém se queixe porque falta cavalheirismo e não há quem abra uma porta, puxe uma cadeira ou mude um pneu. Mas se a questão são direitos (e deveres naturalmente. Mais uma dualidade inseparável), então pode-se à mesma assistir a rapazes atarefados com pneus furados e mulheres de braços cruzados como se nada fosse, sem que haja atentados à igualdade.
Ia entretido com estes pensamentos quando reparei em enormes tufos de papoilas, nas ruínas do que foi um hotel. Só resta a fachada, estacada. Por detrás, no que foi dantes o hotel, há agora tufos de papoilas colina acima. Pensei que se fossem cravos vermelhos poderia ser a primavera dum novo 25 de abril... Mas já não quis afundar-me nesses pensamentos. A política consegue irritar-me quase tanto com a estupidez ou a presunção. Deixei-me antes ficar só de cara voltada ao sol de fins de maio, que traz já promessas de estio.

quarta-feira, 4 de abril de 2012

O cão, o gato e a bomba-de-leite

Passei os olhos pelo jornal, como quase diariamente, num certo ritual das manhãs. Entrei, cumprimentei, sentei-me e peguei no jornal. A menina trouxe-me um café e eu olhei de soslaio a primeira página, enquanto trocava duas palavras. Gosto de café. Pena é que não possa beber tanto quanto me apetece. A primeira página do jornal é como as pessoas. Conta muito a primeira impressão. Pelo menos, para mim. É curioso como raramente se consegue apagar aquela primeira impressão. Dos jornais é a mesma coisa. Olhamos para a primeira página e lá está. Não mente no que é. Ainda que os títulos das parangonas por vezes sejam menos eloquentes e mais voltados ao marketing. Mas ainda assim, são títulos. E primeiras impressões.
Falámos do tempo. Eu disse que a primavera me desgosta, por causa das alergias. Mas não é verdade. Gosto da primavera. Só não gosto que me faça espirrar. Mas não me adiantei em explicações. Ela voltou-se para o trabalho dela, tirando cafézinhos a outros clientes e eu deambulei pelas páginas, ainda a pensar nas primeiras impressões e nos espirros da primavera. As “gordas” do dia não eram muito diferentes das de ontem. Ou mesmo da semana passada. O tema é quase sempre o mesmo, e que é mais ou menos aquilo que poderíamos chamar, grosso modo, de “situação”. Toda a gente sabe o que é, não há muito para explicar nem sequer para ocupar a cabeça com questões mais fundas que as próprias manchetes.
Por desgraça, o jornal que leio, a vapores de café, tem uma secção cor-se-rosa, até na cor das páginas. Detesto o cor-de-rosa, não pelas rosas, por entre cujos espinhos nascem as flores, mas pela cor e por aquilo a que ela se associa, que a mim me repugna pelo fútil, pelo banal, pelo inútil. Mais pelo que não tem do que pelo que tem. E pelo espelho do país que somos. Nessas páginas, tão sobejamente necessárias à sobrevivência do bacoco e do popularucho, tomei conhecimento da novela que se tornou o facto de uma determinada criatura ter dado à luz uma menina. Ali se lêem entrevistas, comentários, aspectos verdadeiramente pungentes da vida da recém-nascida, famosa em tudo, desde o nome, que por um rasgo qualquer, inexplicável para mim, não quer dizer nada senão a junção de letras e iniciais. A maior surpresa para mim, porém, foi saber, em notícia destacada, que a mãe tinha comprado uma bomba de leite. Vieram-me à ideia as primeiras impressões outra vez, e colocaram-se-me, quase imediatamente, duas perguntas: o que (a quem) interessa isto para vir noticiado num jornal e, mais importante, porque raio estou eu a ler isto? Não pára de me surpreender a capacidade que temos para o ridículo.
Fiquei a pensar nisto.
Não tive de pensar muito, porque no mesmo dia, vi na TV a notícia de que o cão que foi a estrela do filme “O Artista” foi jantar à Casa Branca. Esperemos que o distinto cão fique com uma boa primeira impressão daquela gente. E que possa até trocar umas impressões com o Bo, o ilustre cão-de-água presidencial que, recorde-se é bisneto de cães lusos, o que muito nos aprimora. Certamente que os senhores que se ocupam das genealogias caninas hão-de também encontrar nesta nova estrela canina um qualquer antepassado nosso. Não é de espantar que as secções cor-se-rosa tenham tanto para escrever...
Mas que havemos nós de dizer, se as notícias que nos preocupam são os cães de cinema e as bombas de leite? Dir-me-ão: mas grande parte do(s) jornal(ais) não são notícias cor-de-rosa! Verdade. Não são. São discussões tautológicas, às vezes anacrónicas (ou muitas vezes?), encerradas em repetições inúteis, de assuntos discutidos vezes sem conta, sobre os quais se chega de cada vez a uma conclusão, sobre a qual se nomeia ou estabelece mais um grupo de trabalho (já não é de moda dizer-se comissão. Agora são grupos de trabalho), para depois se chegar a outra determinada conclusão, porventura ela própria já velha e testada, mas posta, de novo, à discussão, para se voltar ao mesmo.
Seria quase enfadonho repetir aquilo que o Eça escreveu sobre a política. Toda a gente o repete, sempre que se quer dizer mal da classe política, como se ela precisasse que outrem dissesse mal dela. Não precisa. Não deve existir classe que mais se difame a si própria, se dilacere, se esgane, se afronte, do que a classe política. Cai no ridículo sem precisar da ajuda de ninguém. Mas o que diz o Eça poderíamos ir buscá-lo aos diários do rei D. Pedro; aos escritos do rei D. Luíz (não é erro. Escrevi à moda da época, numa espécie de vénia. Aqui não há acordos ortográficos ad hoc); às cartas da raínha D. Amélia, só para pegar em coisas recentes. Porque, tristemente, o que se disse deste povo e, sobretudo, de quem o governa não tem diferido muito pelos séculos além. Basta dizer que Galba dizia dos lusitanos (ou alguém disse por ele) que é um povo que “nem se governa nem se deixa governar”.
Está tudo dito. Na assembleia, os insígnes deputados entretêm-se a atirar culpas uns aos outros; a fazer queixinhas aos senhores jornalistas, porque A disse qualquer coisa que não fez, porque B mentiu ou porque C não esclareceu o assunto X ou Y. Deputados muito engravatados, outros sem gravata nenhuma porque são modernos, outros ainda de brinco na orelha, porque são mais modernos ainda. Horas e dias passados a tentar descobrir a careca duns e doutros, mais preocupados em expôrem-se mutuamente do que em fazer o que realmente lhes compete, enquanto nas ruas já se vê a fome, a miséria, a tristeza e o desencanto da vida. Vai-se vendo também umas bastonadas às vezes. Doeram, certamente, não apenas aos jornalistas, que por mercê da profissão se têm por imunes a esses flagelos corporais, mas também a todos os que as apanharam. Mas as desses não se discutiram tanto. Espero, contudo, não chegar a ver o desencanto de ser Português.
Que pena que o cão d' “O Artista” não faça um périplo pela Europa... Sempre haveria umas manchetes novas. Não sei é que impressão de cá levaria.
Não creio que a bomba de leite encha páginas por muito mais tempo. O que vale é termos senhores representantes que são, in se, a paródia diária. E, claro, temos pastéis de nata, manifestações sem consequência, velhos que gritam que o país não é para velhos; jovens que gritam que o país também é para jovens; subsídios que hão-de ser devolvidos às mijinhas, se alguma vez o forem, e até o gato Gaspar, que hoje foi chamado à discussão parlamentar. Somos ou não somos um país cor-de-rosa?
Boa Páscoa.

domingo, 18 de março de 2012

As abelhas

O Abacílio andava magro. Sem tostão. Arreliado com a vida, com o país, com a troika, com as dívidas. Acabara-se-lhe a esperança. Era o rosto de uma geração perdida. No fulgor da vida, bem preparada, bem estudada e nula. Completamente dependente da caridade dos pais. Já nem o zapping o entretinha. Precisava de desopilar, mas não sabia que fazer. Para onde se virasse, era a tristeza, a desilusão, o desencanto pela própria vida. Faltando o trabalho, tudo lhe faltou. Andava aziado por causa daquela história da luz agora ter de se ir pagar à loja dos chineses. E, pelo andar da carruagem, não há-de ser só a luz. Continuava aborrecido por não ter podido ir falar aos deputados. Enchia-se de tédio só de pensar naquelas discussões intermináveis, numa política feita de manchetes de jornais e notícias de última hora. Quem seria mais nulo? Ele, improdutivo numa sociedade que o preparou e depois não lhe dá trabalho, ou os deputados, ocupados na lã caprina, toda ela muito bem disfarçada de assuntos prementes? E as nomeações?... Que dor de cabeça para o Abacílio pensar em tanto tacho...
Resolveu entregar-se aos clássicos. A leitura havia de consolá-lo e tirá-lo desta cisma depressiva que o dilacerava por dentro. Andava ele assim entretido, entre tomos aristotélicos, escritos platónicos e peças sofoclianas, quando lhe veio às mãos uma revista, que era do vizinho, mas que o carteiro erradamente pusera na sua caixa de correio. Lá foi, solícito, entregá-la ao dono, quando reparou num dos títulos da capa: “Abelhas em risco de desaparecer”. Já tinha ouvido falar daquilo. Parece que as abelhas andam a morrer. Aguçou-se-lhe a curiosidade. O bom vizinho anuiu a que lesse, pelo que voltou para trás, entregue à leitura do artigo das abelhas. Lá se explicava que as abelhas estão a morrer aos poucos, mas de modo constante, de tal forma que já se teme que desapareçam de todo. Aquilo deu-lhe que pensar, a ele, que não dispensava a sua colher de mel em jejum, todos os dias, receita da sua Avó. “Oh diabo”...disse, a cofiar o queixo como convém aos entendidos. “E se agora se acaba o mel?” Naturalmente, pensou e bem, se se acaba o mel vai-se tudo. Não pelo mel, ele próprio, claro está, mas por causa da falta que aqueles insectozinhos fazem.
Sem polinização, já se vê. É o fim.
Andou a pensar naquilo uns dias. Depois veio-lhe à cabeça que por cá, já se acabou o mel. Andam agora as abelhinhas sem alimento. Poisam, poisam, mas como não chove, também não há néctar com que encher as patitas, e assim definha a colmeia. Quem seria o glutão que comeu todo o mel? Quem foi, que deixou as abelhinhas tontas de fome? De fome e desorientação, por faltar agora com que encher o papinho? Ah, se ele soubesse...
O que lhe vale, é atentar como os senhores bem-postos andam agora todos preocupados com as abelhas. Enquanto assim for, Portugal está safo. E ele pode alimentar esperanças de ver o sol brilhar. Pena que não seja para todos.
Pelo sim pelo não, foi à dispensa. Lá estava, na prateleira de cima, um frasco de mel. Ao menos isso.