O velho homem recebeu-a com
amabilidade. Sabia, naturalmente, ao que vinha. Pessoas da idade e da
posição dele não se iludem. Mas ainda assim, era agradável
receber visitas, e vê-la era lembrança de outros tempos. Ficaram
ali no vestíbulo, sentados num banco-arca de madeira escurecida, bem
polido mas com ar de muito velho, bem mais velho que o monsenhor.
Primeiro umas palavrinhas de circunstância, depois as conversas do
antigamente, do dantes... Ah, dantes... Olhava o monsenhor para a
parede em frente, com as mãos sobrepostas na bengala encastoada,
como se nela estivesse a ser projectado um filme mudo ou a
preto-e-branco dos tempos em que ele nem precisava de bengala nem era
ainda vetusto e sábio. A Purificação acompanhou-o, olhando também
para a parede, mas o velho já se tinha deixado levar pelo filme das
memórias que via, enquanto ela continuava ainda a desdobrar-se em
episódios e coisas de outras tempos. Ali, tudo era diferente do
mundo. Uma porta, enorme, grossa, de verde como convém aos paços,
uma porta apenas, os separava do mundo lá fora. E, no entanto, ali,
tudo era tão diferente. Sereno, respeitoso... Até o relógio de
parede, ao fundo do vestíbulo, não deixava que o pêndulo fizesse
sequer um tique-taque. Andava para cá e para lá, tão silencioso
que os minutos davam lugar às horas sem que se desse por elas. Havia
uma certa solenidade no ar que deixava as pessoas pouco à vontade.
Quase por impulso, toda a gente falava muito baixo. E andava devagar.
Tudo muito pausado. Chegou junto deles uma freira, por certo lá
empregada, tão devagar que a Purificação nem se deu conta dela
chegar. Queria saber se o monsenhor não quereria uma chá ou a
senhora... O monsenhor acordou do seu torpor e disse que não, para
ele não. A Purificação também não quis o chá, embora a garganta
se lhe secasse, sem saber bem como começar. Foi o monsenhor que lhe
deu o mote. “Então, minha amiga, diga-me cá. O que posso fazer
por si”. E ela lá disse, a medo e sem grande jeito para as
palavras, meio gaguejante. Ele pegou-lhe na mão, e ela olhou para
ele e não se conteve nas lágrimas. Chorou e desabafou e abriu o
coração ao velho homem, que ouviu, ouviu sempre de olhos postos
nela. Ela foi falando do sobrinho, da situação dele, do desemprego,
da bebida, da preocupação com a irmão Gracinha – como vai ela?,
quis saber o monsenhor – e depois falou-lhe até das suas dúvidas
de fé. Não entendia porque razão Deus não lhe acudia. Queixou-se
de que já falara duas vezes com o senhor prior...
Deixou-a falar quanto quis. Bem sabia
que deixar falar quem precisa é meio remédio para a cura. E, às
vezes, remédio inteiro. Depois disse-lhe que ia ver o que podia
fazer. Sem promessas, bem se vê. Mas ia dar uma palavrinha...
Disse-lhe ainda que atentasse nas palavras da Escritura, para mitigar
e procurar ânimo nas dúvidas: “Os meus caminhos não são os
vossos caminhos”. Terminou ele. Ela agradeceu, de coração mais
leve e abriu a porta grossa e verde, despedindo-se e voltando ao
mundo.
Foi a pensar nas palavras do velho,
tanto quanto a sua mente lhe permitia. Mas misturava-se naquele
adágio, que parecia poder resolver tudo, o barulho da rua, agora tão
contrastante com o silêncio reverente do paço, a situação do
sobrinho e a preocupação com a irmã Gracinha. Tinha a cabeça num
novelo. Pôs-se a olhar para o movimento dos carros na estrada,
velozes, numa marcha inexorável, como o tempo, que sem se importar
com os infortúnios das gentes, passa sempre. Perdeu-se nestes
pensamentos o resto do dia, enquanto bradiu panos de pó e vassouras
nas suas limpezas, como que banindo com o pó as preocupações da
vida. Estava cansada nessa noite. Ia a caminho da missa vespertina
quando lhe veio ao encontro a Gracinha, esbaforida, aos gritos por
ela. “É o Jorge. É o meu Jorge...” disse-lhe em prato, enquanto
ela segurava a irmã abraçando-a, por entre “pronto, pronto” e
“acalma-te lá”. Ficaram as duas ali, muito tempo, abraçadas.
O Jorge, enlevo da tia e razão de ser
da mãe, estava morto. Um carro, na noite, juntamente com a bebida,
tinham-no levado da vida.
Durante dias, a Purificação matou-se
em trabalho.Trabalho e mais trabalho, horas infindas que a ela não
importavam, conquanto que a cabeça estivesse obrigada às
obrigações. “Ajuda”, dizia ela, umas vezes para si mesma,
outras para quem se acerca dela com lamúrias. A lamúria não fazia
o género dela.
A Gracinha, por seu lado, mergulhou
numa letargia própria do luto, mas agravada por ter perdido a razão
de viver. A Purificação não sabia mais que fazer. Desdobrava-se em
cuidados, em chávenas de chá, em canjas de galinha, em abraços e tentativas de fazer conversa. Mas nada parecia tirar a Gracinha
daquele lugar longínquo para onde se remetera.
Certa tarde, antes da missa
vespertina, pôs-se a olhar para o santo e reparou que estava
enegrecido. Já tinha olhado para ele muitas vezes. Mas agora olhava
e só via a escuridão que envolvia o santo, mercê do fumo de velas,
do pó e dos anos. Olhou para as mãos que seguravam as contas do
rosário, sem perceber muito bem porque razão continuava a balbuciar
mecanicamente aquelas orações. Estava zangada. Desencantada. Poucas
coisas são maiores que o desencanto. Como se tivesse acordado dum
sonho, no caso o dela própria, de uma vida inteira, e se se visse
agora sem saber que fazer nem para onde se virar. “Então, D.
Purificação, não fica para a missa?”. “Hoje não posso”,
respondeu ela ao prior. “Deus anda ocupado e eu tenho muito que
fazer”. E foi-se embora. Assim, sem mais nem menos. O prior ficou
meio embasbacado, mas nada disse. Também não lhe ocorreu nada para
dizer.
continua
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