domingo, 15 de julho de 2012

Purificação III


O velho homem recebeu-a com amabilidade. Sabia, naturalmente, ao que vinha. Pessoas da idade e da posição dele não se iludem. Mas ainda assim, era agradável receber visitas, e vê-la era lembrança de outros tempos. Ficaram ali no vestíbulo, sentados num banco-arca de madeira escurecida, bem polido mas com ar de muito velho, bem mais velho que o monsenhor. Primeiro umas palavrinhas de circunstância, depois as conversas do antigamente, do dantes... Ah, dantes... Olhava o monsenhor para a parede em frente, com as mãos sobrepostas na bengala encastoada, como se nela estivesse a ser projectado um filme mudo ou a preto-e-branco dos tempos em que ele nem precisava de bengala nem era ainda vetusto e sábio. A Purificação acompanhou-o, olhando também para a parede, mas o velho já se tinha deixado levar pelo filme das memórias que via, enquanto ela continuava ainda a desdobrar-se em episódios e coisas de outras tempos. Ali, tudo era diferente do mundo. Uma porta, enorme, grossa, de verde como convém aos paços, uma porta apenas, os separava do mundo lá fora. E, no entanto, ali, tudo era tão diferente. Sereno, respeitoso... Até o relógio de parede, ao fundo do vestíbulo, não deixava que o pêndulo fizesse sequer um tique-taque. Andava para cá e para lá, tão silencioso que os minutos davam lugar às horas sem que se desse por elas. Havia uma certa solenidade no ar que deixava as pessoas pouco à vontade. Quase por impulso, toda a gente falava muito baixo. E andava devagar. Tudo muito pausado. Chegou junto deles uma freira, por certo lá empregada, tão devagar que a Purificação nem se deu conta dela chegar. Queria saber se o monsenhor não quereria uma chá ou a senhora... O monsenhor acordou do seu torpor e disse que não, para ele não. A Purificação também não quis o chá, embora a garganta se lhe secasse, sem saber bem como começar. Foi o monsenhor que lhe deu o mote. “Então, minha amiga, diga-me cá. O que posso fazer por si”. E ela lá disse, a medo e sem grande jeito para as palavras, meio gaguejante. Ele pegou-lhe na mão, e ela olhou para ele e não se conteve nas lágrimas. Chorou e desabafou e abriu o coração ao velho homem, que ouviu, ouviu sempre de olhos postos nela. Ela foi falando do sobrinho, da situação dele, do desemprego, da bebida, da preocupação com a irmão Gracinha – como vai ela?, quis saber o monsenhor – e depois falou-lhe até das suas dúvidas de fé. Não entendia porque razão Deus não lhe acudia. Queixou-se de que já falara duas vezes com o senhor prior...
Deixou-a falar quanto quis. Bem sabia que deixar falar quem precisa é meio remédio para a cura. E, às vezes, remédio inteiro. Depois disse-lhe que ia ver o que podia fazer. Sem promessas, bem se vê. Mas ia dar uma palavrinha... Disse-lhe ainda que atentasse nas palavras da Escritura, para mitigar e procurar ânimo nas dúvidas: “Os meus caminhos não são os vossos caminhos”. Terminou ele. Ela agradeceu, de coração mais leve e abriu a porta grossa e verde, despedindo-se e voltando ao mundo.
Foi a pensar nas palavras do velho, tanto quanto a sua mente lhe permitia. Mas misturava-se naquele adágio, que parecia poder resolver tudo, o barulho da rua, agora tão contrastante com o silêncio reverente do paço, a situação do sobrinho e a preocupação com a irmã Gracinha. Tinha a cabeça num novelo. Pôs-se a olhar para o movimento dos carros na estrada, velozes, numa marcha inexorável, como o tempo, que sem se importar com os infortúnios das gentes, passa sempre. Perdeu-se nestes pensamentos o resto do dia, enquanto bradiu panos de pó e vassouras nas suas limpezas, como que banindo com o pó as preocupações da vida. Estava cansada nessa noite. Ia a caminho da missa vespertina quando lhe veio ao encontro a Gracinha, esbaforida, aos gritos por ela. “É o Jorge. É o meu Jorge...” disse-lhe em prato, enquanto ela segurava a irmã abraçando-a, por entre “pronto, pronto” e “acalma-te lá”. Ficaram as duas ali, muito tempo, abraçadas.

O Jorge, enlevo da tia e razão de ser da mãe, estava morto. Um carro, na noite, juntamente com a bebida, tinham-no levado da vida.
Durante dias, a Purificação matou-se em trabalho.Trabalho e mais trabalho, horas infindas que a ela não importavam, conquanto que a cabeça estivesse obrigada às obrigações. “Ajuda”, dizia ela, umas vezes para si mesma, outras para quem se acerca dela com lamúrias. A lamúria não fazia o género dela.
A Gracinha, por seu lado, mergulhou numa letargia própria do luto, mas agravada por ter perdido a razão de viver. A Purificação não sabia mais que fazer. Desdobrava-se em cuidados, em chávenas de chá, em canjas de galinha, em abraços e tentativas de fazer conversa. Mas nada parecia tirar a Gracinha daquele lugar longínquo para onde se remetera.
Certa tarde, antes da missa vespertina, pôs-se a olhar para o santo e reparou que estava enegrecido. Já tinha olhado para ele muitas vezes. Mas agora olhava e só via a escuridão que envolvia o santo, mercê do fumo de velas, do pó e dos anos. Olhou para as mãos que seguravam as contas do rosário, sem perceber muito bem porque razão continuava a balbuciar mecanicamente aquelas orações. Estava zangada. Desencantada. Poucas coisas são maiores que o desencanto. Como se tivesse acordado dum sonho, no caso o dela própria, de uma vida inteira, e se se visse agora sem saber que fazer nem para onde se virar. “Então, D. Purificação, não fica para a missa?”. “Hoje não posso”, respondeu ela ao prior. “Deus anda ocupado e eu tenho muito que fazer”. E foi-se embora. Assim, sem mais nem menos. O prior ficou meio embasbacado, mas nada disse. Também não lhe ocorreu nada para dizer.

continua

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