sexta-feira, 13 de julho de 2012

Purificação (parte II)


Comadre Marília muito se admirou de ver a Purificação por ali àquela hora. “Então hoje não foi a vésperas?”
“As vésperas hoje são outras”, bradiu-lhe a Purificação. “Ando arreliada com esta coisa do meu sobrinho não arranjar trabalho. Até anda mais magrinho, o pobre. Ando a ver se percebo bem isto da situação. Queria até saber se a Comadre não se importa que lá vá hoje, para ver as notícias na televisão.”
“Ora essa, pois disponha, Comadre. Coitado do seu Jorge...”
Mas as notícias também não lhe trouxeram grande novidade. Já percebera bem que a situação era a mesma de sempre. Seja de há dez ou vinte ou cem anos. A diferença é que agora era tudo mais moderno. Mas ninguém parecia saber muito bem como resolver isto. Governar um país não é para loucos. Nem para parvos. Bem fez a Purificação que se dedicou às rezas. Essas não têm que saber.
Os dias passavam-se e agora era já a Purificação que sofria com o sobrinho. Rezava e rezava. Andava desorientada porque nunca até então as rezas lhe haviam falhado. Voltou a ir falar com o senhor prior. Voltou a pedir, não conselho, mas que olhava para o sobrinho. “Se o senhor prior pudesse...”, pediu de mãos postas, como se fosse defronte do santo enegrecido. E ele disse que sim. Que ia ver. Que ia tentar. Que se havia de arranjar qualquer coisa. Foi mais sossegada, mas não pregou olho em toda a noite. Havia dias que já não dormia bem. Acordava sobressaltada, e soltavam-se-lhe as lágrimas, sobretudo depois da Gracinha ter vindo desabafar. Naturalmente, também ela andava com o coração nas mãos. É difícil a uma mãe ver que nada pode pelo filho. Nada não. Pode carinho, pode sacrifício, pode amor. Não pode, contudo, trabalho. E era isso que faltava ao Jorge. Foi apanhá-lo a beber. Ela pediu-lhe que parasse, mas ele afastou-a e foi-se pela rua abaixo, passos trôpegos, comiserando-se consigo mesmo. E assim as manas iam-se consolando uma à outra. Uma rezando, a outra gemendo. A Graça dizia-lhe que gostava de ter a fé dela. A Purificação abraçava-a e deixava sair uma lágrima, não pela mana, mas secretamente por si própria, porque fundo, lá bem fundo, era já sabedora do que não tinha coragem para dizer à mana: a fé não basta contra o mercado de trabalho. Parece que essa montanha não se move só pela força da fé. E a lágrima que agora saía era de desconsolo e até de uma certa desilusão.
Passavam-se os dias e rezavam-se os terços, sem grande novas. A Purificação redobrava-se em fervorosa oração e penitência e Graça em secreta vigilância do filho, que vagueava, quando não bêbado, à procura de ficar. Purificação dizia que tudo aquilo era uma provação. Pediu à Gracinha que fosse com ela rezar. E ela lá foi, com a mesma esperança de quem se sabe impotente e se volta para donde for que venha a luz. Perguntava à irmã onde ia ela buscar forças para ver naquela desgraça a vontade de Deus. A Purificação respondia-lhe que confiava em Deus, e isso bastava-lhe. Uma agarrava-se à fé. A outra à secreta esperança dum milagre, sem acreditar nele. Como pode haver milagres se não se crê neles?
Não vendo melhoras, decidiu-se a ir ao Paço, não para ver o bispo, mas à procura do velho Monsenhor, tão velho que conhecera as manas ainda meninas, a fim de lhe dar uma palavrinha. Era homem de sabedoria, daquela que os muitos anos trazem, e com a sabedoria veio também o conhecimento. Acabaram por vir também os conhecimentos, e ela deles que ela agora precisava. Não era mulher de pedir favores, apesar de já ter ido falar com o senhor prior por duas vezes. Fora como uma filha vai a desabafos com o pai e, portanto, não o entendera bem com favores, embora o fossem e ela sabia-o. Mas agora ia mesmo à procura de um jeitinho que o velho monsenhor pudesse dar. Apesar de continuar pouco interessada nos jornais e nas coisas do televisor, tinha muito boa ideia de como funciona o mundo. Houve tempos que julgou mudá-lo, à força de rezas. Percebeu que o mundo precisa de muito mais anos dos que contêm uma vida para que qualquer reza, seja qual for, produza qualquer efeito. Não por Deus, que sempre escuta quem lhe pede, mas pelo mundo. Dizia consigo que não é toa que o mundo é inimigo do homem... Talvez seja mesmo. Lamentavelmente, o homem é responsável pelo mundo. Mas isso era já filosofia demais para a Purificação. E a filosofia, na sua pertinaz opinião, era coisa de quem não tem muito com que se entreter. Concentrou-se no caminho, embora nervosa, por bem saber que o que lhe ia custar pedir um favor, assim com toda a pompa de pedir favores. Nunca o tinha feito. A sua mãe sempre lhe ensinara que pedir favores não convém a ninguém porque, mais tarde ou mais cedo, todos são cobrados. E o preço que nos pedem de volta, podemos não o conseguir pagar. Quando era pequena não percebia isso. Mas os cabelos também já branqueados traziam-lhe uma qualquer sapiência, pelo que entendia bem que quem se governa com favores, entrega a alma ao diabo, sendo o diabo quem se quiser tomar por ele. Certo é que sossego nunca mais haverá, porque quem favorece espera sempre ser favorecido um dia, em maior ou menor grau. E ela presava, e muito, o sono descansado na sua travesseira, ainda que ultimamente lhe fugisse, por andar tão apoquentada.

(continua)

Sem comentários:

Enviar um comentário