Passaram os dias e a Purificação sem
aparecer na igreja. Nem rezas nem missas. Estava, por assim dizer, de
greve. Curiosamente, não pensava muito nisso. Vivia os dias imersa
nos seus trabalhos e, depois, na companhia da irmã, que era agora a
sua missa. Estava a finar-se. “Desistiu”, dizia somente a
Purificação às vizinhas que perguntavam melhoras. E quanto mais a
irmã definhava, mais zangada ela estava. Com Deus, com as pessoas,
com a bebida que lhe roubara o sobrinho, com o carro que lhe batera
mas, sobretudo, com a impotência que a consumia. Era uma coisa de
dentro, enorme, que devagar lhe comia a alma e a enchia de amargura.
Primeiro perguntara-se por que razão Deus não lhe acudia, nem
acudira ao sobrinho, ou à irmã, agora enferma na cama. Culpou-se a
ela. Talvez rezando mais... Ou melhor... Mas não sabia como se
rezava melhor. Depois culpou Deus, ele próprio, virando para ele a
sua angústia e a sua ira. Queria lá saber se aquilo era pecado.
Queria lá saber se ofendia. Ofendida estava ela, e não era pouco!
Queria era respostas e não tinha nenhuma. E a morte, que sempre vem,
não espera por respostas. Cumpre o seu papel e pronto. Faz-nos
atravessar o momento único, tão pessoal, tão íntimo, pega-nos na
mão por momentos, um instante só, e depois, cumprido o seu papel,
segue adiante e ficam, na mesma, as perguntas sem resposta. E Deus
nem lhe acudia nem lhe respondia. Sentiu-se ela própria um Job,
engolida pelo peixe enorme da vida que agora a cuspira despojada de
todas as seguranças, todas as alegrias, todos os merecimentos e
todas as consolações. E à sua volta, só vazio. E desilusão.
Depois, a ira deu lugar só à dor. Não mais se culpou a ela. Nem a
Deus. Na sua cabeça, não valia a pena esperar por repostas que não
viriam. Percebeu, por fim, que a culpa não era de Deus, mas dela.
Não a morte do sobrinho, claro está, mas as expectativas, as
crenças, as confianças cegas. Não culpou Deus. Mas não percebia
porque lhe tinha falhado. Ficou só a tristeza. E o desencanto, oco.
O prior, estranhando a ausência, a
falta de notícias e as rezas diárias, mandou uma delegação do
beatério saber da Purificação. Primeiro mataram saudades. Os “como
está”, os “como vai indo” e os “como passa a Gracinha”,
repetidos tantas vezes quantas as delegadas senhoras. Depois as
conversas do costume, feitas a chá e bolo mármore, com lamentos
pela tragédia daquela família. “Pois digam lá ao senhor prior
que eu não estou bem, não senhor. Que me falta alegria. Mas,
sobretudo, que me faltam respostas. Que a minha irmã se está para
finar, porque o filho lhe foi morto pelo desemprego, pela bebida e
por um carro que lhe bateu. Digam-lhe lá que agradeço muito ter-se
preocupado com o meu querido sobrinho morto, das duas vezes que lhe
falei do assunto. E digam-lhe também que ando muito atarefada, e que
Deus nosso Senhor nem vem fazer o meu trabalho nem me responde às
perguntas que eu lhe faço. Já rezei muito, mas agora tenho que
tratar da minha irmã Gracinha e de mim própria. Um tempo para tudo,
não é verdade?”
As outras ficaram-se sem pio,
sobretudo com o remate da Escritura, pois efectivamente lá se lê
que para tudo há um tempo. Lá se foram, depois do chá que a
Purificação lhes deu, levar o recado ao prior. Ficou boquiaberto,
mas nada disse. Não era muito bom com as palavras, o que é em si
mesmo um paradoxo, para um homem que é ministro da palavra não se
entender com elas.
Quem não se ficou foi o velho
monsenhor. Soube daquela tragédia, e da tragédia maior que era uma
ovelha perdida. Muito a custo, mas cheio ainda do zelo de pastor, lá
deixou as portas cerradas e verdes do paço, atravessou as ruas,
agora tão desconhecidas e estranhas, a passos miúdos amparados de
bengala encastoada, e foi ver da Purificação. Ele recebeu-o muito
bem, mas algo distante, o que não passou despercebido ao velho
sacerdote. Os “como está” e “como passa a Graça” foram logo substituídos por um abraço. O velho, sem grandes palavras,
estendeu-lhe os braços. Ela aceitou-os, não tanto por serem do
padre, mas por precisar dum consolo. O padre não era de conversas
fiadas. Mas era sabedor da experiência feita de muitas perdas
acompanhadas. “Ás vezes, a única coisa que faz falta é um
abraço”, disse ele. Deixou-a chorar, como já antes da primeira
vez, no vestíbulo do paço a deixara chorar e falar até ela se
desunhar, para que a mágoa tivesse escapatória, em vez de a
consumir. Ficou ali não sei quanto tempo, até o velhote lhe dizer
para se sentarem um bocadinho. Ela fungou uma vez mais e sentaram-se.
“Tenho rezado muito por ti, desde aquele dia. Soube logo que morrera
o Jorge. Mas ele agora está junto do Pai. E tu, minha querida filha,
precisas é de consolo. Diz-me, deixaste de ir à igreja?” Ela
nada. “Eu entendo”, continuou o velho. Ela levantou os olhos e
disse só: “Desencantei-me, que hei-de fazer?”. “Pois, nada,
cara amiga. Não tens de fazer nada.” Ela ficou surpresa com a
resposta. Mas ele tranquilizou-a logo, com um sorriso. Tinha um
sorriso de velho sabedor, que trazia com ele uma calma. “Não vim
cá para te convencer a voltares. Não senhora. Fica descansada. Para
que serviria eu convencer-te a ires à missa se fores só para me fazer
a vontade e não sentires, no teu coração, que precisas de lá ir?”
Carregou as sobrancelhas. “Vim foi conversar contigo. Porque a
morte é velhaca. E tu agora vês-te sozinha e desconsolada. É o
caminho aberto que o Diabo quer. As pessoas quando estão frágeis e sozinhas são como galinhas presas com a raposa à solta”. E
falou-lhe da fé que move montanhas, dos tempos de Deus e dos tempos
para as outras coisas, falou-lhe da confiança da fé viva, da
entrega nas mãos Deus e de algo que até então nunca ninguém lhe
falara. Falou-lhe da necessidade de cada um fazer a sua parte no jogo
da vida. “Ou pensas tu que Deus desce dos Céus para vir fazer por
ti a tua parte?”
E assim ficaram, tarde fora, naquela
conversa. Ainda houve tempo para chá e bolo mármore, porque
entretanto eram horas de merenda. O monsenhor foi dar as melhoras às
Gracinha, e foi-se, de volta ao paço. A Purificação ficou com
aquele conforto, da companhia e do espírito, e pôs-se a pensar nas
palavras do sábio, enquanto se acercou da cama da Gracinha, para lhe
fazer um bocadinho de companhia. Pouco mais esperava da vida. Sabia,
como toda a gente a sabe, que o tempo cura. Precisava de tempo. Para
ajudar a irmã, de quem não desistira ainda, para sarar o coração
sofrido da perda do sobrinho e para pôr as ideias em ordem e fazer
as pazes com Deus. Não sei se seria bem fazer as pazes. Não estava
já propriamente zangada. Era só aquela sensação de vazio e de
abandono. De desencanto. Calculou que talvez para isso precisasse de
mais tempo do que aquele que a vida estaria ainda disposta a dar-lhe.
Mas também não podia afirmar, porque certezas são coisas que não se
podem ter nestes assuntos. E de verdade, verdadinha, Deus só tinha
falhado porque ela quis acreditar que tudo se resolveria com terços.
Deu-se feliz por saber agora que não. Infeliz à mesma porque apesar
desta nova descoberta na sua vida espiritual, nada adiantava em
relação ao que tinha acontecido ao sobrinho. Era assim a vida.
Nunca sempre feliz, nem sempre infeliz. E a dela, que em boa parte
tinha sido sossegada e, portanto, para ela coroada duma certa
felicidade, estava agora mais mais propícia à infelicidade.
“Bom dia, D. Purificação”,
acenou-lhe o Zé do Vão, como era conhecido na rua, por ser dono da
tabacaria, metida num vão de escadas dum prédio, onde se vendia não
só tabacos, mas atacadores, pentes, jornais, revistas, e uma
parafernália de outras coisas. “Bom dia”, respondeu a
Purificação, ficando-se a pensar. “Esta agora”... Comentou com
a Gracinha o cumprimento do vizinho que, pela primeira vez em tanto
tempo, desde a morte do seu Jorge, se sorriu.
A vida corria agora bem devagar, como
sempre acontece na velhice. Estavam as duas velhas, a mana
Purificação e a mana Graça. A Gracinha recuperava aos poucos, que
é como quem diz, já não passava os dias na cama. Sentava-se ali na
salinha, a ver a televisão, que entretanto a Purificação tinha ido
buscar a casa da mana. Teimou com a Gracinha que viesse viver com
ela, para poder tomar conta dela melhor. E assim foi. Veio a
televisão e as malas de roupa, a mobília gasta. Tudo na furgoneta
do Venâncio, vizinho da Gracinha, que se prontificou a tratar das
mudanças. A casa ficara lá, vazia, lembrança vã de uma vida
que deixara a Graça sozinha. Decidiu, tempos passados, entregá-la ao
senhorio. Não voltaria àquela casa. Não sem o seu Jorge, nem sem o
seu homem, já morto há tantos anos que nem se lembrava bem quantos.
Ficava-se, pois, ali, na salinha à espera da Purificação que vinha
ora das limpezas, ora de algum mandado, e entretinham-se as duas na
conversa ao serão ou no crochet. Às vezes ia lanchar com o Zé do
Vão, sempre com um sorriso cúmplice da Gracinha. Corria-lhes
devagar a vida, sem terem mais propriamente por quem fazê-la correr
senão por elas duas. Como se o relógio do paço marcasse agora ali também
o tempo, e os minutos dessem lugar às horas sem se dar por elas. Às
vezes passava pela igreja. Umas vezes entrava, outras não. Quando
entrava, rezava uma Avé-Maria e ficava-se ali um bocadinho.
Sentava-se, fechava os olhos e ficava-se no silêncio. Aprendera a
gostar tanto da quietude do silêncio. Às vezes também saía uma
lágrima. Depois levantava-se e ia à sua vida. Fizera as pazes com
Deus, mas também fizera consigo própria. Maria da Purificação
levava uma vida pia. Pia e pura, como ela, mas já não feita de
terços nem de rezas. Dedicava-se à irmã, apreciava a vida como
dádiva, sabendo que o tempo, mesmo que o relógio do paço o
marcasse devagar, haveria de esgotar-se, e isso lhe bastava para à
noite, no travesseiro, pôr a cabeça em sossego.
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