quarta-feira, 21 de maio de 2014

Da visita

Caro Jean-Claude,

Perdoará esta intimidade. Bem sei que não é de bon ton tratar um desconhecido pelo nome de baptismo, tanto mais a uma pessoa insigne, quase egrégia, tal o número de ordens, comendas e prémios que, julgo saber, têm sido agraciados a V. Exª. Já vê, o seu sobrenome, notável, por certo, soa-me terrivelmente parecido a esquentadores e eu não consigo falar para esquentadores. Mais uma falha que confio ao seu perdão. Fosse eu um S. António e falaria com esquentadores como quem fala com peixes. Mas não, lamentavelmente, sou apenas um desconhecido e desempregado cidadão português. Não faça, pois, caso destas minhas incapacidades. Escrevo para lhe agradecer a amável visita. Soube, pela imprensa, que esteve por cá a mostrar apoio ao seu correligionário Passos e aos seus fidelérrimos aliados da AP (a ápê, assim carinhosamente designada pelo Prof. Marcelo, outro ilustre, que não pára de lhe fazer elogios a si). Naturalmente, enquanto apoia Passos por cá, ele apoiará o Jean-Claude por lá, porque estas coisas de apoios são mesmo assim, bem sei. E não está mal pensado. Espero que tenha gostado de ver a fábrica das massas, coisa que por cá pouco abunda, graças ao sucesso do programa de ajustamento, que o Jean-Claude tão sorridentemente aplaude. E que lhe tenham enchido as vistas os tomates em Mafra, se bem que também não foi nada de bon ton que ninguém lhe tivesse dito (estas coisas requerem uma certa preparação mental) que não haveria políticos de fato azul, mas uma miscelânea, desde os saltos altos da também sua camarada de ideias Cristas, ao panamá e camisa aos quadrados do também correligionário Portas. Foi simpático ouvi-lo dizer que se sente em Portugal como em casa, numa referência à quantidade de lusos que vão para o seu país. E que sente o cheiro de pastéis de Belém pela manhã. Pareceu uma coisa idílica. Mas deu uma nota de boa disposição e proximidade. Foi muito bom para a sua imagem juntos de nós, portugueses, Jean-Claude, embora um tudo nada piroso... Aqui pergunto-me se não terá sobreposto a sua própria campanha à dos seus amigos. Aliás o Prof. Marcelo disse logo que ia votar na ápê porque queria votar em si... Mas nada de grave. O que importa é que haja fotografias de gente sorridente e bem-disposta, se possível com champanhe. Os rapazes que veio apoiar têm o champanhe em grande conta. Lamento, contudo, Jean-Claude, e com pesar, que não lhe tenham mostrado o país real. Bem vê, veio visitar um país e apresentaram-lhe outro, cheio de nuisances e coisas de um pitoresco notável, muito ao estilo dos jogos de férias que a nossa elite se dedica a fazer na Comporta, durante o estio da silly season. Nome mais apropriado, não concorda? Tenho pena que não lhe tenham falado, sem demagogia, claro, dos cerca de 340 mil portugueses que abandonaram o país desde 2011 por não terem como encontrar um emprego, muito incentivados numa primeira fase do mandato pelo seu amigo Passos, que depois foi deixando cair a coisa, porque percebeu que as pessoas tinham levado a mal aquilo de os mandar imigrar (100 mil em 2011; 120 mil em 2012 e estima-se que outros tantos no ano passado. Números redondos, bem entendido)... Que não o tenham levado a ver as filas das pessoas que esperam à porta das instituições por uma refeição. Que não lhe tenham explicado, do ponto de vista cristão que tanto estima no campo político, as consequências nefastas que esta situação provoca nas crianças que acompanham os pais nestas filas; o estigma; a vergonha disfarçada... Imaginará, psicologicamente, o efeito nessas cabecinhas? E nas cabecinhas dos pais, que não têm forma de sustentar os seus filhos? Que não lhe tenham exposto um outro retrato do nosso Portugal, de quem se sente tão próximo e que é este: a enorme percentagem de pessoas que, trabalhando, não conseguem sustentar-se com o seu salário, por ser demasiado baixo. Que não lhe tenham explicado como vive uma família com o ordenado mínimo... Bom, aqui reconheço que seria difícil. Na verdade, seria propriamente impossível, visto que nenhum dos seus camaradas partidários faz a mais pequena ideia de como se faz para viver assim. Nem dos seus camaradas, nem de outros quadrantes políticos. Mas seria bom tentarem. Explicaria muito e resolveria outro tanto. Também lamento que não lhe tenham falado dos jovens que apesar dos seus vinte e tantos não trabalham nem estudam, porque não conseguem: estudar não podem; trabalho não têm. E que também não tenham perdido uns minutos a falar-lhe dos reformados, espoliados em nome de algo a que chamaram repartição equatitária de sacrifícios. Se há coisa em que os seus amigos são bons é a dar nomes complicados às coisas. Complicados mas, por vezes, muito claros quando à ideologia que os preside. Veja o Jean-Claude um pequeno exemplo, apenas, para não me alongar: Rendimento Social de Inserção. Já se chamou várias coisas. Julgo que começou por ser Rendimento Mínimo Garantido. Peço desculpa se o engano, mas julgo que foi este o primeiro nome. Os seus correligionários, uma vez governantes, decidiram que haveria de ser um rendimento de inserção, o que está muito certo, porque todo aquele que, não sendo capaz de arranjar trabalho para se sustentar e não podendo pedir subsídio de desemprego, e não tenha outro remédio senão recorrer a uma pequena ajuda do Estado, mendigando-a quase, precisa de uma reinserção. Está desfasado da sociedade, evidentemente. Há aqui um tanto de cinismo, não acha?... Do cinismo dos cínicos, da filosofia: quer-se mesmo um desapego, muito além do essencial. Um despojamento. Mas isso são outras conversas... Estou a divagar. Perdão, egrégio visitante. Teria sido interessante uma volta pelos supermercados, assim de surpresa, sem portos de honra nem nada, apenas para ver o que aquelas pessoas mais atingidas pelo ajustamento colocam nos seus cestos de compras. Que olhasse bem para a cara das pessoas nas ruas... Enfim. Teria sido outra visita. O Jean-Claude já deve ter percebido que estou descontente. Bem vê, o meu problema é fazer parte duma geração enrascada, que a sua geração pôs à rasca. Compreende, portanto, a minha má vontade para com o homo politicus. Aproveito também para lhe dizer que, muito embora tenha apreciado a sua visita, não lhe encontro beneficio. Compreenda: políticos a passear temos a rodos. Mais uma vez sou levado a pensar que terá também vindo a proveito próprio... Já que veio, uma penada sobre o seu prestígio e a sua campanha para a Comissão Europeia. Pois claro. Fez bem, que o tempo não está para inutilidades. Mas veja, algo me preocupa. Não gostei de o ver a embarcar nas coisas comezinhas da campanha que cá se faz. Estamos no fim e não conheço uma única ideia dos seus correligionários (ou doutros, diga-se de verdade) acerca do projecto que levam para a Europa. Naturalmente, levam-se a si próprios, até porque o ordenado não é mesmo nada mau. Mas ideias... Isso é que não sabemos. O que se ouve é, da direita, dizer mal da esquerda. Da esquerda, dizer mal da direita. De outros quadrantes (não sei bem como por isto, porque há listas e candidaturas que não são de quadrante nenhum) dizer mal de tudo ou simplesmente fazer festa e bater palmas. Fiquei triste, portanto, de o ver também neste registo, a dar uns recados aos bons portugueses, que são gente que acata tão bem as ridículas enormidades que as cabeças na Europa vão destilando a nosso respeito. Veja bem: vir cá dizer que os sacrifícios não acabaram; que não se pode voltar ao mesmo; que não queremos outra vez passar pelo mesmo, é ensinar o pai-nosso ao vigário. Fica-lhe mal. Já viu se eu fosse ao Luxemburgo dizer aos luxemburgueses que é um bocado aborrecido eles ganharem tanto... Ou, pior ainda, que é chato que se achem no direito de vir cá por e dispôr, como se fossem alemães... Certamente não gostaria. Até porque os seus conterrâneos também já se fartaram um pouco de si, apesar do ror de anos que esteve como primeiro ministro do ducado... Mas houve depois aquele problemazito com o espião e o relógio que não caiu bem... Mas não se preocupe. Fale no caso ao Passos. Por cá tivemos uma coisa semelhante e nada aconteceu. Nem um belisco. Ele há-de aconselhá-lo, até porque o caro Jean-Claude está mesmo convencido que ganha. Vai precisar de toda a ajuda, com ou sem relógios. Mas aceite o meu conselho: deixe de lado os discursos mais paternalistas. Não lhe convêm. Um último conselho, se me permite: se realmente quer ser Presidente da Comissão Europeia, não torne a comparar as pessoas aos bens e ao capital. Dizer que “as pessoas para mim são tão importantes como bens ou capital” é um perfeito disparate. Parece até estranho, vindo duma pessoa tão bem formada. Francamente, Jean-Claude!
Até à próxima.