sexta-feira, 26 de julho de 2013

Cavaleiros da Triste Figura

Dou por mim a pensar porque será que é tão difícil reconhecer que a razão pela qual estamos permanentemente em “crise” é apenas porque os modelos em que nos baseamos estão gastos. O modelo económico, social, financeiro e julgo mesmo que até político, pura e simplesmente chegaram ao limite do que podem oferecer. Não respondem mais.
Para mim isto é evidente. Salta à vista, com a mesma facilidade com que o sol se põe ou levanta; com que as marés se alternam ou as estações se sucedem. Por que razão então é tão difícil abandonar estes sistemas gastos e vazios de opções e respostas e procurar outros?
A resposta é simples também: não só não há outros que presentemente sejam viáveis e realmente capazes de novos rumos (pelo menos ainda não experimentados ou que em algum momento ou lugar tenham já falhado), como estes continuam, apesar de falidos, a servir determinados interesses. Quando assim é, à resistência natural à mudança, alia-se um certo desnorte, num espectáculo sôfrego de tentar, a todo o custo, suster o impossível. Penso nisto e vem-me logo à ideia aquela conhecida frase de Churchill sobre a democracia ser o pior dos regimes, exceptuando todos os outros...
Receio bem ser este o espectáculo a assistimos. Não é apenas uma crise económica ou financeira ou todas estas e mais social. É a falência da sociedade como um todo, enquanto estrutura organizada e baseada em determinados modelos. A razão pela qual penso isto não é por ser mais clarividente que as cabeças iluminadas que nos governam, dotadas de uma extraordinária incapacidade para verem além de si mesmos e dos seus próprios interesses. É tão só por ser evidente. E porque a ausência de simpatias políticas me permite pensar e, sobretudo, dizer ou escrever sem medo ou sem qualquer outra sanção que não seja aquela da minha própria consciência aquilo que realmente penso.
Poderíamos tentar fazer o exercício intelectual (intelectual apenas, uma vez que a questão não interessa realmente a quem tem neste campo responsabilidades. Terá qualquer coisa a ver com as vantagens do status quo...) de tentar perceber de onde vem esta crise, quer dizer, esta ruptura. De onde nasceu esta falência. Porque razão se esgotaram os modelos que têm guiado, orientado e moldado a sociedade?
Serão, por certo, diversas as respostas ou as opiniões sobre o assunto. A minha é a de que a razão de tudo isto é de fundo, de fundamentos mesmo, e tem a ver com os valores. Ou com a falta deles. Tudo isto que vemos, como espectadores mais ou menos interessados ou então como actores na história que se está a fazer diante de nós, radica na mudança civilizacional que levou à extinção ou ao não reconhecimento de certos valores, que atá há bem pouco tempo guiavam e norteavam a vida em sociedade.
Aceito que esta explicação não seja clara. Mas estou absolutamente convencido dela. Que não seja claro de que modo os valores se relacionam com a enfadonha medianidade no campo político; com o crescendo de problemas sociais; com a crise económica; com o facto de na política ser mais importante a reacção dos mercados financeiros do que a vida das pessoas concretas; com a indescritível incapacidade de afirmação dos líderes; com a escassez de cabeças verdadeiramente pensantes, não devedoras de vénias a interesses; enfim, com a estúpida insensatez com que somos governados e nos deixamos governar.
Os valores funcionam como uma espécie de grelha. Uma trama onde assenta o fio que tece o tecido social. Sempre que se deixa de considerar ou se rejeita um determinado valor é absolutamente necessário substitui-lo por outro, sob pena de se desmoronar o tecido social. Ora o que acontece, nesta nossa Era do Vazio é precisamente o esvaziamento de valores, sem que outros tomem o seu lugar. Aparentemente, nada daqui decorre que possa de algum modo fazer colapsar a sociedade em que vivemos. Mas da mesma forma que é impossível tecer algo sem a trama, também um modelo social não consegue subsistir sem valores de fundo. A questão não é que se tenham deixado de considerar válidos ou actuais determinados valores. A questão é que se deixaram de levar em conta esses valores sem que outros tomassem o seu lugar. Resulta daqui um grave deficit ético, sem que haja uma régua de valores a nortear a vida e o comportamento social. Não quero fazer juízos de valor sobre os valores que estão em falta. Para mim serão mais importantes ou fundamentais certos valores. Para outras pessoas, talvez outros. A questão de fundo é mesmo a falta deles. As consequências desta deturpação do tecido social estão à vista. Foram subreptícias, lentas e nada sonantes. Foram-se fazendo sentir aos poucos, e continua a ser necessário estar atento e preocupado para as ver. Mas é essencial, vital mesmo, que se tome novo rumo. Que se aceite a falência destes modelos agora em vigor, procurando outros, mais robustos do ponto de vista ético-moral, de modo que a vida das pessoas possa encontrar o tecido para se realizar. Convençamos-nos disto: sem pessoas, não há sociedade. O mesmo é dizer que aniquilar o indivíduo, sacrificando-o a modelos falidos de modo a espremer qualquer réstia de vida lucrativa que ainda possam conter para alimentar a máquina que bombeia esses modelos, levará inevitavelmente ao aniquilamento da sociedade. Estará, então, aberto o caminho ao desastre não apenas económico-social, mas à destruição mesmo. Se nada for feito para inverter este caminho, ouviremos doravante falar mais em guerra... Uma guerra nasce de uma de duas coisas: da procura de realização de certos interesses (pessoais, políticos, raciais, económicos...) ou então da falência dos modelos sociais sem outros tomem o seu lugar atempadamente.
Por cá, ainda não atingimos esta maturidade de pensamento. Pelo menos não aparenta haver. Mas faria falta que ela chegasse. Continuamos entretidos entre seasons. A silly season permite, enfim, depois da maçada e do aborrecimento nulo que se tornou a cena política, um descanso na praia, para quem pode evidentemente. Os restantes, como reais despojados de guerra ou então como vítimas colaterais dos jogos de quem governa, limitam-se a dar graça por estar vivos. Entretêm-se a olhar boquiabertos para estes Cavaleiros da Triste Figura, mais ou menos embrenhados nos seus gigantes de moinhos de vento, completamente ignaros do estado do País e da vida das pessoas (essas que são o tecido da sociedade e que, em teoria, representam, governando em seu nome e não em nome deles próprios); perfeitamente desconhecedores de como se faz para comer todos os dias quando falta o trabalho e não há fontes de rendimento em famílias inteiras, marcadas pelo desemprego, pela fome, pelo estigma e pela vergonha; inteiramente alheados da realidade concreta que os rodeia, ou então fazendo esforços por ignorar essas evidentes evidências, fazendo aqui e ali pequenas alterações ou publicando um outro despacho ou regulamento ou portaria, que permita evitar o aborrecimento que é a contestação. Na verdade, estes Paladinos da Triste Figura sentem-se injustiçados. Consideram que lhe falta a justa e devida bajulação do Povo, essa coisa amorfa, sem rosto, que na verdade não existe, a não ser em época de eleições. A essa enorme massa (as pessoas) resta-lhes, na verdade, entreterem-se com as nulidades vazias debitadas pela TV, cumprindo verdadeiramente o seu papel, na medida em que, em vez de iluminar mentes as estupidifíca, com o genérico aplauso tanto dos Cavaleiros como das pessoas governadas. Bem certo é que não há nada que seja mais assustador para a Cavalaria da Triste Figura do que a cultura e o papel que ela tem nas mentes das pessoas. Pudéssemos nós regalarmo-nos com idas às Selvagens a ver cagarras e anilhar espécimens indígenas, ou ao menos às Berlengas ver gaivotas. Mas nada mais resta, para uma grande franja da sociedade senão embasbacar-se frente à TV. Felizmente temos as prazenteiras notícias das viagens presidenciais, do bebé real, das férias do Cristiano e da langerie da Irina. Agora que o Big Brother se foi, que há-de ser de nós?