segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Conto de Natal

Há muito tempo (como nos contos), quando ainda andava a estudar, lembro-me certa vez de ir a caminho de casa.
Era perto do Natal, e eu ia apanhar o expresso. As pessoas andavam dum lado para o outro, em passo muito acelerado, atafulhadas de sacos, cheios de presentes com laços, por ente as ruas cheias de luzes e de cor. Aqui e ali uma gargalhada. Pessoas paradas a conversar, com grandes cumprimentos e votos de boas festas. Eu ia seguindo, sem prestar muita atenção, com o fito apenas de furar a multidão e não me atrasar.
Notei uns miúdos que riam, uns três ou quatro, pela rua abaixo. Lembrei-me que também gosto do Natal. Esbocei um sorriso, no meio da pressa, ao ouvi-los.
Passei por um troço de rua muito estreito, em que o passo era necessariamente mais lento, com toda a gente colada uns aos outros, ouvindo aqui e ali uns "desculpe", por causa dos sacos que teimavam em esbarrar nas pessoas. Alguns acabavam por meter-se na estrada, quando o trânsito deixava, uma vez que os carros eram muitíssimo menos que as pessoas.
Depois vi-a.
Ia ali, quase à minha frente, de passo muito vagaroso.
Pela rua fora ia uma senhora, porventura muito velha, a quem nada daquilo incomodava. Trazia um casaco comprido, porventura tão velho como ela, um lenço a tapar os cabelos brancos. Apoiava-se num guarda-chuva, também ele decrépito e nos pés levava por sapatos dois sacos de plástico, que faziam as vezes das botas de inverno. Era o barulhinho do plástico na calçada que agora só se ouvia na rua apinhada de gente, de luzes, de cor, de presentes e de laços. Uns passos trôpegos, incertos e cadenciados, que abafavam as buzinas dos carros a afastar as pessoas da estrada e que calava os risos. Os risos. Era daquilo, melhor, era dela que riam os miúdos. Mitiguei o meu sorriso. E apeteceu-me berrar com os miúdos também. Mas eles lá iam, correndo e rindo a bandeiras despregadas, como se tivessem vindo do circo. E as pessoas lá passavam, atarefadíssimas por entre os carros que buzinavam e os sacos uns dos outros. E ela lá seguia, na sua marcha vagarosa, como se mais ninguém caminhasse a par dela. Perguntei-me se haveria alguém para caminhar com ela. E se no meio dos laços, dos presentes, das luzes, da cor e dos risos, alguém lhe daria a mão.
Feliz Natal.

P.S. Ontem nas notícias voltaram a falar dos idosos abandonados nos serviços hospitalares, depois de terem alta, por não terem quem os vá buscar ou por as famílias se recusarem a recebê-los (recebendo, no entanto, as pensões). Andamos desnorteados... Fará sentido andarmos tão atarefados no Natal?

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Nada

Ontem?... Ontem jantei ar. Ontem jantei aquilo que Deus me deu. E o que Deus me deu foi nada.”
Nada. Fiquei a pensar naquilo. Um desabafo. Mas não fiquei a pensar em Deus. E no nada que ele deu. Pensei no homem, ainda novo, de quem falaram nas notícias, e a quem a vida entregou desgraças e desgraçadamente tudo perdeu. Vive sem nada, da amizade e da caridade de quem o conhece. Dorme numa gruta na Boca do Inferno. Literal e geograficamente. A história dele é igual à de muitos, sem conta. Desgraçadamente igual. Tão igual que já não incomoda (muito). Habituámo-nos.
Nada.
Quando terá sido?
Quando terá sido que nos habituámos? Que nos conformámos à sociedade que criámos. Desgraçadamente criámos. E a quem havemos de por culpas?...
Quando foi que ficámos cheios de nadas sem resposta?
Acho que deve ter sido no dia em que alguém disse “é a vida”…
Não sei se vamos por bom caminho.
Tornámo-nos indiferentes e contentamo-nos com uma sociedade onde poucos ganham e muitos perdem. Contentamo-nos com a miséria, com a pobreza, com a tristeza, com a falta de condições de vida, com a corrupção… O laissez-faire… E o mundo vai andando assim, com a sociedade dividida em lotes. Uns sem nada. A vida cheia de nadas. Sem ter sequer o que comer. Outros sem mesmo nada, apesar de pensarem ter tudo.
Andamos agora apressados em cimeiras atabalhoadas sobre o clima, como se só agora tivéssemos percebido que estamos a mudar o planeta que nos serve de casa. E tenta-se fazer com que um entendimento qualquer impeça que se derretam os oceanos e se mudem as estações e se extingam as espécies… Ouvi há dias um número absurdo de 55 mil espécies extintas por ano. Quero acreditar que ouvi mal.
Há uns dois anos, vi um daqueles programas do National Geographic sobre as alterações climáticas. O de sempre: de um lado os cépticos, do outro os que defendem a necessidade de alteração da pegada humana. Muitas opiniões, factos, gráficos, estudos. Um deles disse uma coisa que me ficou na memória: “ a Terra está cá há milhões de anos. Resistiu a terramotos, erupções, cataclismos, cometas, glaciares, e tudo o mais. Adaptou-se e evoluiu. Sobreviveu. Ainda aqui está. Mas e nós? Seremos capazes de sobreviver às alterações que a nossa própria acção está a provocar?” A mim parece-me um excelente ponto de partida para conversações.
Por cá andamos entretidos com as coisas do costume. Ouvi também hoje que há um município que quer erguer um mastro de bandeira com 100 metros para comemorar o centenário da república. Parece que o projecto é módico. Um milhão de euros.
Por entre o afã da crise, o governo vai-se vendo a braços com a oposição que usa agora a maioria a seu favor para lhe bater o pé e o contrariar. E por entre queixinhas e palhaços, tias de Cascais, processos de corrupção, leis feitas ad hoc para calar os jornais, o país vai indo. Só não percebo bem o que vai a república comemorar… Nadas?... O milhão de euro dos mastro e os outros milhões todos que se hão-de gastar em jantares e galas e beberetes e condecorações e fogos de artifício?... As grutas das bocas do inferno?...
Pergunto-me quantos nadas se poderiam encher com um milhão de euros… Quantas vidas se haveria de arrancar à pobreza… E, ainda assim, se uma só fosse, se não valeria mais à república do que um mastro…
Já toda a gente percebeu que Copenhaga é aquilo que se esperava. Nada. Uma reunião de gente que precisa de justificar (porventura até a si próprios) aos cidadãos do mundo que estão a tentar.
Espero que já se tenha percebido que a república não tem nada para comemorar (quem serão os palhaços?)
Também gostava que se percebesse que enquanto continuarmos a fazer da indiferença o modus vivendi há-de haver muitos nadas.
Hoje? Jantámos nada. Foi aquilo que nos démos.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

A pobreza

Andamos já todos na lufa-lufa do Natal.
Gosto do Natal. Muito. Gosto sobretudo das memórias do Natal. Do que elas me trazem. Do enredar de lembranças dos tempos de criança. E gosto de prendas. De dar. Sobretudo porque não espero nada de ninguém. Dá-me gozo oferecer. Coisa que agora não faço, porque não ganho suficiente. É simples. Por isso, bastam-me as memórias.
E das luzes. Gosto das luzes.
E nesta azáfama, muitos fazem contas. Esticam o orçamento e esmeram-se em jogos – ainda que depois em Janeiro fiquem deprimidos e sem cheta – para que nada falte.
Outros há que já não fazem contas. Não podem.
Vi hoje uma reportagem sobre o trabalho social da AMI, no apoio aos carenciados... Meritório, sem dúvida, como o de tantas outras instituições e organizações, que nesta quadra ganham mais alguma visibilidade. Valha-nos isso. Embora não me apeteça muito publicitar seja o que for, seria desleal não enquadrar este pensamento. E o mérito deve ser dado quando existe. (Palavra feia: carenciados. Como se não fôssemos todos carentes de alguma coisa. Usamos palavras tão tontas...). Entrevistaram uma senhora, de cara muito afável, cortada entre lágrimas e uns olhos serenos, apesar das dificuldades, mas tão conscientes... Lembrei-me da frase célebre de Jesus: “tereis sempre os pobres convosco” (Jo 12, 8). O papa João Paulo II chamou a esta palavra “um abismo”... E é mesmo. É a certeza irrefutável de que a pobreza faz parte de ser homem. Poderíamos filosófica e teologicamente falar da pobreza como um despojamento... E aí até seria interessante. Mas não. A pobreza de que ali se fala é a da desgraça. Do não ter. Da que faz fome e lágrimas. Da que resulta de um conjunto de problemas que concorrem todos para um buraco sem fundo, da que não é culpa de ninguém (pode não ser) e é culpa de todos... De todos os que fecham os olhos. Que não se importam, que são indiferentes... Dos que vivem sem querer saber, como se a ignorância da pobreza e do sofrimento abonasse a existência de alguém... Ou a fizesse crescer e ser mais existência...
Pobres. Sempre os teremos. É fria esta constatação. Inexorável. Sem esperança.
Mas é um desafio.
Um não compactuar. Não ficar quieto. Não se resignar. Um querer mitigar. Um não se contentar com ver reportagens na TV... Um não ficar à espera, como se não pudéssemos fazer nada... É que podemos fazer.... Não é difícil perceber o quê!
Não vale de muito a constatação da crise; do encarecimento do custo de vida; do desemprego; da riqueza mal distribuída; das muitas pessoas que se estão completamente nas tintas para o que se passa à sua volta... Nada disso importa se, cada um, não decidir de que lado fica. O abismo está lá. Ficamos a olhar para ele ou seguimos adiante, como pudermos? Um pequeno acto de bondade de cada vez. Não custa. E assim a lufa-lufa do Natal há-de custar menos na consciência...

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Caim

Caim lançou-se sobre seu irmão Abel e matou-o.” (Gen 4, 8b)
Caim. Parece-me, cada vez mais, que estamos num país devotado à polémica. Como se tudo e todas as coisas onerassem desta dívida, e portanto, tudo aquilo que acontece tenha de lhe pagar algum tributo…
Estou muito curioso para ler Caim. Não tanto pela polémica. Lê-lo-ia apesar disso. Aprendi a apreciar Saramago. A escrita e o homem por trás dela. O génio. Levei muito tempo a reconciliar-me com ele. Sempre fui muito de ideias feitas, com tudo o que isso acarreta de prejuízo. Houve uma fase, muito militantemente católica, em que o próprio nome me enfurecia. E era estúpido. Estúpido como todos aqueles que falam sem saber. Eu nunca tinha lido nada dele. E punha-me com palpites. A vida, porém, ensinou-me a minhas custas a prudência e, sobretudo, a graça da tolerância. O respeito pelas opiniões, mesmo se diversas das minhas. Chegou-me às mãos, há uns anos, “o cão das lágrimas”. Desejei, se algum dia me vir tão desprezado que não sobre nada nem ninguém, ter ao menos um cão das lágrimas. E pensei: o cão das lágrimas não pode ter nascido de alguém tão desprezível. Não. Nasceu dum Homem. Alguém capaz de falar da natureza humana à maneira dos génios da literatura, que captam aquilo, por vezes posto aí para se ver, mas que os olhos atarefados e distraídos não vêem.
Estou muito curioso para ler o livro. Mas fiquei triste com a polémica. E, mais ainda, com a troca de galhardetes… Como se o senhor precisasse de polémicas para vender livros ou para publicidade (é fácil perder a noção dos disparates que se aventam)… Como se o senhor não tivesse direito a expressar o que pensa… A dizer no que se baseia para escrever ou lá o que for… Como se de cada vez que fala fosse uma ofensa ou estivesse no intuito de ferir alguém de morte… Não me senti ofendido enquanto católico. Todas as opiniões são válidas. Pode-se concordar ou não. Agora vir dizer que o homem é indigno de ser português; que é um vaidoso; que acha que tem o direito a dizer tudo o que lhe apetece; que procura sempre ofender a Igreja… Andar com trocas de recados entre deputados… Mas que país é este, senhores?...
A Bíblia é um catálogo de maus costumes. Sim. O Deus da Bíblia é vil. Sim sim. Muito de acordo.
Pergunta: onde é isto ofende a Igreja? Ou os católicos? Ou somos tão pouco seguros da verdade da nossa fé, que não suportamos a diversidade e a contrariedade? O problema estará no senhor Saramago, que disse o que pensa e como pensa o Deus que lê na Bíblia, ou em nós, que ouvimos? Desde quando é que a Igreja rejeita a pluralidade de opiniões? Ai, os ventos do Concílio, que se calaram… Continua só a cheirar-me a mofo e a cera de velas queimada. Ou a verdade duma coisa não é como um diamante, com muitas faces, que uns vêem duma perspectiva e outros doutra?...
Pois entendo que Saramago não ofendeu ninguém. Na verdade, até creio que disse o que disse num tom bastante desempoeirado e despretensioso. Disse o que pensa, da forma que está habituado a fazer: sem rodeios. E tem direito a achar que o Deus da Bíblia não lhe serve. Teria gostado muito de ver uma atitude esclarecedora e apaziguadora por parte da Igreja, em vez de aparecer um senhor muito ufano a fazer de porta-voz, a vir falar de jacobinismos… Até arrepia. Teria gostado que alguém dissesse: Sim. A Bíblia mostra o pior do homem. Mostra. E um Deus que se apresenta vil. Porque a Bíblia é também a história do homem e da humanidade, na sua busca de autoconhecimento e relacionamento com Deus. É a história de Deus com os Homens e a história de como se relaciona com um Povo. É um relato teológico (isto aqui diz tudo, embora não consiga expressar plenamente a força do que quero dizer) onde se relata o pior do homem no seu vício, mas também o melhor. Onde está presente a crueldade, o assassínio, o engano, a mentira, mas também o amor. E é nele que a Bíblia se sustenta. No Amor de Deus. Teria gostado tanto de ver alguém falar da forma amorosa como Deus se revela… Como Deus se dá… E a voz da Igreja a ser sinal…
Não consigo perceber por que razão se opta sempre pela polémica em vez do diálogo… Pela afronta em vez do respeito e compreensão. Não é esse o modo de Cristo? Não é assim também sequela Christi? E não é isto, senhores ofendidos, o dedo do diabo? Não está nisto a tentação última posta à Igreja? Reflexão. E oração. Muita. Antes de nos pormos para aí a fazermo-nos de ofendidos. Ainda vamos ficar todos Caim…
No relato bíblico, primeiro o homem revolta-se contra Deus. Depois uns contra os outros. É isto que teologicamente se tira do relato de Caim e Abel. Estranhamente, continuamos a matar o Abel à primeira oportunidade. E o sangue dele a clamar na terra…
Teria gostado de ver o rosto de Abel nesta história toda.
Ah… Obrigado, José Saramago.
Quanto a nós, católicos ofendidos, há tanto na Bíblia para nos surpreender, antes de atirarmos as pedras…

domingo, 11 de outubro de 2009

O Nobel

Deve ser a primeira vez que um prémio Nobel é atribuído não pela obra feita, mas pela obra ainda a fazer. Ou que se espera que alguém faça.
O Presidente Obama ganhou o Nobel da Paz. Fiquei surpreso como quase toda a gente. Mas gostei. Sim, gostei. Simpatizo com o homem. Deve ser porque ambos pomos muita força naquilo em que acreditamos. E por aquela forma de falar... Também já falei assim, noutro contexto. De forma apaixonada, a saber dizer a palavra certa no momento certo, com uma vontade imensa de acreditar e fazer acreditar. Em mim, infelizmente, passou. Já não preciso de discursar. Nem para mim mesmo. Mas olho para ele e penso: “Até que enfim”...
Gosto dele. E que lhe atribuissem um Nobel. Naturalmente, concordo que não tem obra feita. Ainda. Mas há-de ter. A nomeação foi claramente política... uma mensagem, quanto a mim muito clara... e uma esperança. Como se o mundo todo estivesse de barbas brancas, esqueleticamente apoiado em bengalas, à espera de alguém que tomasse as rédeas e as dores. Alguém inspirado. Alguém que compreendesse. Que estivesse disposto a pegar no embróglio poeirento que é o mundo diplomático e tratasse de começar a desatar. A solução de Alexandre seria prática. O problema é que nós não se deixam cortar.
Quando o vi, percebia que ia ser ele. Eu e todos os velhos de bengala. Há, no entanto, aqui, um erro de estratégia... Puseram-lhe tudo às costas. E vão vergá-lo pelo peso antes do tempo. Mas isso veremos. Agora o que há, é a esperança. Uma esperança grande que ele, animado pelo Nobel, faça o que os de barba e bengala não fizeram. Pode até ser naif. Não há salvadores ad hoc. Mas que é animador, é. Era bom que voltássemos a acreditar. Todos.

A fantasia

Irritam-me as pessoas muito cor-de-rosa. Muito cuchi-cuchi, muchi-wuchi, gugu-dadá. Pessoas que apesar de adultas vivem rodeadas de coisas de meninos e meninas pequeninos. Como se apesar da idade, continuassem agarrados à fantasia.
Ontem no expresso, no banco da frente vinha uma dessas pessoas. A falar ao telemóvel, com uma voz muito melosa e distorcida, na tentativa atabalhoada de imitar a voz de bebé...
Naturalmente que a fantasia faz parte da vida. Às vezes faz falta fantasiar. O problema da fantasia é a ilusão. O fascínio, melhor dito. Arranca-nos à realidade e não nos deixa por os pés no chão.
Pode haver quem ache graça às meninas adultas cheias de laçarotes, bonecos da Pucka, da Hello Kitty, cheias de cor-de-rosa. Mas a vida não tem laços nem bonecos, e muito menos é cor-de-rosa. Dá vontade de abaná-las com força e dizer: “Hey! Acorda! Sim, tu. Já cresceste, sabias? Olha aí o mundo à tua espera!”

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Os três mendigos

Gosto de sair de casa ao fim-de-semana. Gosto da calma. Sempre que posso, o Alentejo. Mas às vezes fico em Lisboa.
Fui ao super-mercado, numa tarde de sol. Podia ter ido à praia se tivesse companhia. Ou à esplanada. Ou passear. Podia ter ido fazer uma coisa diferente. Às vezes penso que a minha vida se acomodou numa monotonia sem sabor. Mas o super-mercado era um imperativo, ditado pelo frigorífico vazio. Segui pois o ritual de tantos solitários sem sabor, como eu, que necessitam, de vez em quando rumar a esses locais, quase peregrinamente, cheios de pessoas a empurrarem carros por entre prateleiras a olhar como se estivessem de visita a um museu e "pis" das máquinas registadoras, que nos permitem depois sobreviver durante a semana no esquema trabalho-casa-comer qualquer coisa-cama.
Não havia carros na rua. Nem muita gente. Gostei de sentir o sol. Estava quente.
Encontrei no caminho até ao super-mercado 7 pessoas e 3 carros. Um casal de chineses, atarefados à porta da sua loja, sempre aberta; um português a arrumar o porta-bagagem do seu carro, muito empertigado nas suas calças vincadas à meia canela e meia branca; um marroquino em passo apressado e três sem abrigo. Um deles carregava um enorme saco de viagem cinzento, sujo e caminhava em passo acelerado, como para chegar a qualquer lado. Outro ia devagar, num delírio murmurante, a andar para lado nenhum. Outro, mais velho, enrolado em trapos, sentado muito encolhido, olhava para a frente, sem ver nada. Os carros iam em velocidade de fim-de-semana. Não fosse os mendigos e ter-me-ia parecido uma bela tarde de sábado à tarde.
Voltei com os sacos das compras, para ouvir os diários das campanhas eleitorais. Votos, votos, votos. Uns porque o governo foi prepotente, outros porque querem mais e melhor (queremos todos), o governo porque a oposição é derrotista e pessimista. Fixei uma frase: "aquilo que realmente nos une é uma visão de futuro". Pensei nos mendigos e na visão de futuro. Pensei nos portugueses sem emprego; na "geração 500"; nos reformados. Não consigo entender a visão de futuro, a não ser que seja um tender para. Aí já me faz algum sentido... Mas não achei que o calor da campanha eleitoral fosse alimentado por considerações de natureza filosófica. Às vezes (muitas) nem política.
As eleições são uma coisa gira.
Não percebo muito de eleições. Mas tenho vindo a ganhar interesse nos últimos tempos. Talvez seja sinal de maturidade. Talvez seja sinal da inconformidade. Ou da indómita vontade de sempre querer melhor, de nunca estar satisfeito, tão própria do ser humano. E de querer mudar e de fazer, em vez de continuar a ver só falar e falar e falar... Ou talvez seja só sinal de cansaço. E de não poder continuar indiferente, como se fosse espectador num mundo paralelo enquanto o país e o mundo se corroem e se gastam. E eu impassível, a ver os chineses, o português de calça à meia canela e o marroquino. E os mendigos. O que pensarão os mendigos da visão de futuro? O que pensarão os mendigos do futuro. Em si mesmo. Lembrei-me do Almada: "até hoje fui sempre futuro". E amanhã?
São giras, as eleições. Este ano, com tantas, há muito sobre o que escrever. Embora também não haja muito a dizer.
Dei-me conta que toda a gente ganhou. Foi o grande ensinamento: numas eleições, pensava eu, uns perdem e outros ganham. Mas nesta coisa dos partidos não. Nos partidos todos ganham. Ainda assim, uns mais do que outros. O partido do Governo ganhou um segundo mandato. Os partidos da oposição ganharam, porque o partido do Governo perdeu a maioria absoluta; porque conseguiram mais deputados; porque chegaram aos dois dígitos... Todos ganhadores para melhor servir. Ver-se-á, no decorrer da legislatura o que foi que ganharam realmente. E o que ganhámos nós, realmente. O português da meia branca e os mendigos. E todos os outros que agora povoam o nosso canto. Vindos de todos os lados. E por cá se fazem e por cá ficam. Uns de meia branca. Esperemos que não mais mendigos a olhar para lado nenhum.
O que precisamos é visão de futuro. Mas não utópico. Futuro a fazer-se hoje. E esse não vai lá com visões. Só com trabalho. E seriedade.Vi que todos ganharam. Mas pode haver alguma coisa onde todos ganhem? Se os partidos ganharam todos, então, quem perdeu?

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

A blusa cor-de-rosa

À minha frente no metro sentou-se uma senhora, toda ela muito cor-de-rosa, agarrada a uma mala enorme, da qual foram saindo bolsas e bolsinhas, todas elas também muito cor-de-rosa, enquanto a senhora ia passando em revista a diversa parafernália que a acompanhava. Os telemóveis, o mp3 e outro aparelho que nem percebi o que era, todos eles muito embrulhados em bolsinhas, cor-de-rosa com bonecos.
Depois passou outra senhora, para o lugar da janela, muito sóbria, que puxou de um livro e se pôs a ler, de pernas muito juntas e costas bem direitas, como convém às senhoras muito sóbrias. Tive pena de não conseguir perceber o que lia. Gosto de ver o que os outros lêem.
A senhora cor-se-rosa foi passando os apetrechos em revista, a senhora sóbria as páginas, e eu os pensamentos. A viagem chegou ao fim para mim e não cheguei a saber se os aparelhos estavam ou não em condições ou se o livro era interessante. Saí do metro ainda com os pensamentos. Vinha assolado com as notícias da tragédia nacional que foi a suspensão do jornal de sexta-feira da TVI. Quando me disseram até pensei que tivesse havido uma catástrofe, que tivessem assassinado alguém importante ou que tivesse sido um terramoto… Ouvi os telemóveis todos a tocar e as pessoas todas a dizer “ a sério?”; “tens a certeza?”, “que grande bronca”… etc. E eu pensei: “uma calamidade!”
Era mesmo a sério, com toda a certeza e foi uma bronca. Suspenderam, assim, sem mais, o jornal de sexta-feira. Como será possível a este país sobreviver sem aquele verdadeiro espaço informativo tão sabiamente conduzido pelo ícone, agora martirizado, do jornalismo português? Como poderemos olhar para a TVI e ver na sexta-feira um noticiário que não é o Jornal de Sexta? É como se se atingisse a alma lusa naquilo que ela tem de mais seu! Como se se abanassem todos os pilares da democracia! Como se estivessem periclitantes, quase a ruir, os próprios fundamentos do País!
Depois disse de mim para comigo: Espera. Mas qual catástrofe? É só um formato televisivo?... Ou não?
Pois claro que não. Tive logo a resposta na catadupa de entrevistas e comentários e notícias na TV: era a liberdade de imprensa! Era ela que tinha sido ultrajada. “Ah”, disse eu. A liberdade de imprensa. Será?!...
Mas de quem é a culpa afinal? Do governo, pois claro. E foi ouvir um ror de gente a dizer que o Sócrates é que tinha a culpa… Como se não fosse de esperar que assim que o marido da protagonista saísse da TVI, arranjassem uma maneira de arrumar também a senhora… Como se a administração espanhola não tivesse já antes – muito antes do agora célebre arrufo entre o Senhor Primeiro Ministro e a Senhora Moura Guedes – afastado a aclamada pivot dos ecráns… Como se não fosse um verdadeiro espectáculo triste aquele formato de noticiário… Como se não tivesse bastado o Senhor Bastonário ter perdido as estribeiras e destratado a senhora em directo e ao vivo e a cores… Pois se ela tira a paciência a um santo, quanto mais ao engenheiro, somente homem, que era, claramente, alvo primário e primeiro? Goste-se ou não do homem, aquilo era demais… Goste-se ou não do homem, a par da liberdade de imprensa acautelou-se o respeito institucional pelo cargo do homem?...Qual rigor informativo… Qual mostrar as coisas como são na realidade… Deixemo-nos de aforismos. Num dos últimos programas que vi, antes das férias – que eu honestamente, já adivinhava serem permanentes – o jornal da sexta elegeu o Primeiro-Ministro para tema todas as notícias – todas – durante aproximadamente 40 minutos… está tudo dito. Depois era ver o rigor informativo a induzir o espectador nesta ou naquela interpretação, utilizando deliberadamente esta ou aquela expressão que ligava inequivocamente o que se estava a dizer ao senhor engenheiro. Isto também tem um nome. E não é rigor… Gostava de ver noticiários em que os jornalistas se inibissem de opinar. Mostrar a notícia, ela mesma. E não embrulhá-la em bolsas cor-de-rosa ou de outras cores, conforme o que se goste. É difícil, sim. Mas por isso é que é um trabalho para o qual nem todos estão talhados. Assim escusava de ter visto o repórter de campo da TVI tão empenhado em implicar o Primeiro-ministro na decisão da empresa que deixou escapar duas frases absolutamente inadmissíveis, do meu ponto de vista: “José Socratés a tentar justificar que não teve nada a ver”… “ a virar a questão exactamente ao contrário”… Pergunta: é ao repórter que cabe interpretar o sentido? Ou ao espectador? O repórter reporta ou comenta?...
Enfim. Depois os políticos… Nada como um pseudo-escândalo para animar uma campanha eleitoral… Voltei a pensar na senhora cor-de-rosa. E pensei na parafernália das bolsas. Somos um país pequeno. Ou “piqueno”, como agora soi dizer-se, por mercê doutra senhora, também ela muito sóbria. E de gente pequena também. E estreita de pensamento. Então o país está mergulhado no caos quase completo; sem perspectivas de futuro para grande parte das pessoas da minha idade (eu incluído); sem emprego; com salários que nos fazem depender dos pais e dos avós e dos antepassados até à quinta geração; com problemas de segurança, de imigração, de justiça e de mentalidades – sobretudo de mentalidades – e os políticos entretém-se, até à exaustão, até ao cúmulo do humanamente aceitável, com um programa de televisão? Mas que é isto?
Senhores!... Que é isto?
Qual liberdade de imprensa qual carapuça… Mas quando é que se vai prestar atenção ao fundamental em vez de mascarar as coisas com o acessório?
Ponham-se lá todos direitos, muito sentadinhos como convém, em vez de andarem aí na beijoquice nas feiras, a embrulhar as pessoas em bolsas, e comecem a ver se os vossos aparelhos funcionam. E decidam lá de cor vai ser a blusa. E parem de mandar recados uns aos outros… Não vos enoja isso?...
Quem me dera saber o que ia a ler a senhora sóbria. E parar de ouvir disparates.

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

As birras

Tenho um placard de cortiça no meu quarto. Nele vou afixando aquilo de que não me quero esquecer, as coisas engraçadas, as importantes… Nele afixei, há já que tempos, um pacote vazio de açúcar, onde se lê: “Um dia ponho a mochila às costas e vou conhecer o mundo”.
De vez em quando vejo-me peregrino, mesmo sem mochila.
Ou então um mochileiro de sandálias, caminho fora, em demanda.
No fundo, somos todos um bocadinho assim. Na vida, sempre se busca qualquer coisa. Há sempre um caminho qualquer que ainda não percorremos.
Gostava de um dia, sem olhar para trás, ir mundo fora.
Dei-me conta que o passar dos anos dá-nos mais do que idade. Traz amarras. Algumas doem, seja porque nos peam, seja porque se mantém inexoráveis, e não nos deixam ver mais além. Nem de nós próprios, nem para além delas.
Ir mundo fora sem olhar para trás deve doer. Deve não. Dói. Já me fui embora de muitos mundos.
Mas estou animado. Soube que uns cientistas britânicos fizeram um estudo sobre a dor. Descobriram que dizer palavrões alivia a dor e ajuda a resistir-lhe. Segundo o estudo, as pessoas que se voluntariaram para esta experiência resistiram em média mais quarenta segundos à dor de ter a mão dentro de água gelada a dizer asneiras do que aquelas que teceram considerações acerca de uma mesa… A mim, parece-me óbvio. Mas não sou cientista, nem percebo nada daquelas intricadas medições e infindáveis conjecturas que permitem no fim estas conclusões. Portanto, esta descoberta trouxe-me novo ânimo, para me por à aventura. Ir mundo fora, a dizer um chorrilho de disparates, na esperança que desfaça a dor de partir. Se bem que a partida não tenha de ser sempre dolorosa. Também já parti para me libertar. E é assim que eu quero ir conhecer o mundo. Com o sol a dar-me na cara, e o vento a dizer-me que tenho tudo à espera. Sem arrependimentos.
Por cá também está tudo à espera. Estamos na silly season, e agora nada acontece. Férias. Nem que desabe o mundo. Se doer, sempre se pode dizer umas asneiras, e esperar pela reentré, que já por aí anda.
Nos últimos dias tenho confirmado que percebo mesmo muito pouco de política. Tenho lido nos jornais várias notícias que dão conta de muita gente maldisposta, por causa dos lugares que lhes calharam nas listas eleitorais. Parece que é importante esta coisa dos lugares… E faz sentido, uma vez que, como é fácil perceber, há mais candidatos que lugares. E importa, naturalmente, que calhe um lugar elegível… Já agora…
O que já não me é tão fácil perceber é a razão desta corrida e destas birras eleitorais. Vejo que, afinal, á muita gente disposta a servir a causa pública. A ponto de fazer birra. E de achar que não está a ter a atenção que merece por parte do partido. Há qualquer coisa aqui que está mal.
Servir é, em grande medida, pôr-se a si próprio à disposição. Ora, isto implica humildade, que é uma qualidade pouco apreciada, porque muitas vezes confundida com deixar-se espezinhar… E comporta também um certo zelo, um brio… E uma disponibilidade, claro está. Vejo nos nossos candidatos quase todas estas coisas. Vejo o zelo e o brio. Só não vejo a humildade. Vejo egos feridos. Não vejo que a vontade de servir seja assim tão altruísta. E tenho pena em dizê-lo. Que causa será, na verdade verdadinha, que as pessoas querem servir?... Desde quando é que podemos levar a sério pessoas que fazem birras porque o lugar que o partido lhe deu nas listas não era o que esperavam?... E o partido, com que fito joga com os lugares, de modo a agradar mais ou a conseguir mais votos?... O objectivo do partido, é governar para servir ou conseguir votos? E ganhar com as pessoas certas ou com as pessoas que agradam?... Há qualquer coisa aqui que está mal. Muito mal e muitas coisas… Cheira tudo tão a mofo, tão a panelinha… tão a dejá vu
Claro, não se governa sem votos. E, portanto, visto que eleições não faltam este ano, está quase a abrir a época de caça aos votos. Vamos ouvir as mesmas coisas, ditas pelas mesmas pessoas, ditas já tantas vezes, mas cada um à sua maneira, como se fosse uma completa e nunca pensada novidade. No placard do meu quarto vou pendurar manifestos e programas eleitorais. Não há grande vantagem em tentar compará-los ou tentar perceber o que sugerem de verdadeiramente importante e benéfico. Ficarei, muito provavelmente, exactamente na mesma, como estou agora. Desencantado.
Seria bom que alguém, lá nos meandros do poder, levantasse o dedo, um dia, como que acordando e dissesse: “Isto não está a funcionar assim. Não presta!”
Não presta porque não serve. Servir, senhores. Servir mais que o umbigo.
Não vai acontecer. Há muitos umbigos expectantes. E muita gente de birra.
Continuo a querer ir mundo fora, sem amarras. Mas penso que não irei sózinho. Agora já sabemos que podemos gritar asneiras ao vento e isso torna-nos mais capazes de resistir à dor. Para uns, a de partir, para outros a de cotovelo. Para outros ainda a dor do ego ferido. É provável que veja muitos, caminho fora, aos berros. Já vejo, aliás. Verei mais, na campanha eleitoral, por entre mercados e festas, a berrar a plenos pulmões coisas sem nexo e sem conteúdo. Pura vox. Percebo mesmo muito pouco de política. Ao menos que aliviem as dores. E que eu consiga ir para longe deles. E conseguir ainda encantar-me pelo mundo.
Abençoado estudo.

domingo, 23 de agosto de 2009

O grilo

Havia um grilo na Gare do Oriente. Hoje não o ouvi. Mas durante uma semana, lá esteve, sempre a cantar. Nunca o vi. Seria giro ver a cara das pessoas se me vissem andar à procura dum grilo por ali… Mas não. Só o ouvi cantar, todos os dias, ao subir do metro ou sair do autocarro.
Regressei há pouco de férias, e o grilo encheu-me os ouvidos do mesmo som que todas as fins de tarde e noites me fizeram companhia. Melancolia. Senti falta dos grilos, dos cheiros. Da brisa balsâmica da tarde, depois do dia cálido.
Fiquei a pensar no grilo solitário. No som ininterrupto de chamamento por companhia. Nele, um imperativo da natureza. Por isso não o poderia calar. Na verdade, nós também não… Passamos a vida a tentar mitigar a solidão. Pode estar-se rodeado de gente e ainda assim na mais completa solidão… Sem uma mão amiga ou uma palavra de consolo ou sem alguém que entenda, mesmo sem nunca o dizer.
Voltei às lembranças de infância, como no gafanhoto. Juntei-lhe umas novas. Há dias, alguém me perguntou: “isto são grilos a cantar?”. “Não”, respondi, “são cigarras”. Eram cigarras. Deu-me vontade de rir, mais pela inocência da pergunta do que outra coisa. Confundir cigarras e grilos é possível, sobretudo quando se nasceu na cidade. E pus-me a pensar que tenho muitas vezes confundido cigarras com grilos. Que penso que ouço grilos, e são cigarras. A vida, mesmo quando a achamos injusta ou não gostamos da forma como ela nos trata ou nos corre, não pára de nos surpreender. E de nos ensinar. A mim ensinou-me que apesar de adulto, o caminho não está feito. Faz-se a caminhar, e ás vezes esqueço-me disso. E que as pessoas podem ser sempre um desencanto. E isto gostava que não me tivesse lembrado. O desencanto por alguém é mais triste que o canto solitário do grilo. E também não se cala.

domingo, 19 de julho de 2009

O feno

Ia no expresso para o Alentejo e reparei nos campos, depois do Porto Alto.
Foi já Alentejo.
Vinha a pensar na vida enquanto olhava para o feno já enfardado. Pensei também nos armazéns, todos chineses por ali…Um sinal dos tempos e da globalização, essa onda que varre tudo à frente.
O feno encheu-me de lembranças, apenas ouvidas, de ceifas e de ranchos de homens e mulheres, por entre os quais vejo os meus avós e tias, agora velhinhas, todos com tantas estórias… Ao longe ouço os gritos do feitor, bradando instruções, à medida que se acumulam os feixes de feno, enquanto se vai ceifando a passo, num ritmo cadenceado, parando-se apenas para enxotar uma serpente ou ver um raposo, para limpar o suor que escorre testa abaixo, sob um sol que não se descreve, e se saúda com alegria e alívio a caneca do aguadeiro.
Imagino-me a par com eles, não neto nem sobrinho, mas de foice em punho, sem nunca a ter aprendido a usar, ceifando também a passo, sentido os calos nas mãos, trabalhando e gastando-me para expiar uma culpa recôndita.
Ninguém que não tenha nascido no Alentejo compreende a melancolia que se sente quando se olha para os montes. E se vê os amarelos e os castanhos… O conforto triste da música que o vento faz, e que não se ouve senão na alma. E apetece-me ficar assim, eternamente, com o vento dos fenos e os sobreiros, robustos e atarracados, como se a mão divina os amachucasse de cima, senhores da terra que sombreiam, testemunhas de trabalhos e suor, de conversas e riso e choros, que se gravaram na cortiça dos seus troncos. Além umas azinheiras, redondas, quase femininas, imóveis como os senhores sobreiros de copas enormes. Depois um campo de oliveiras, redondinhas, pequeninas, moldadas à mão e à paciência de artífices de cara queimada do sol.
Quis ir a correr para a sombra e ficar lá, quieto, só a escutar. Gosto muito dos sobreiros. Quem sabe se ficar ali muito tempo, tempo suficiente, e fechar os olhos, a vida dê a volta e se torne mansa, como o borreguinho que além vejo correr para a mãe, enquanto as vacas, cá mais longe, ruminam espantadas com os balidos.
Assim que pus um pé na minha terra a minha alergia deu sinais de si… E enquanto os cheiros me enchem os pulmões e a alma, a febre dos fenos aperta-mos. Mas vale a pena.
Já não me lembrava de ter visto as estrelas.
Vale a pena.

domingo, 5 de julho de 2009

O gafanhoto

Gosto muito de Lisboa vazia. Ao fim de semana, sem ninguém. Em que se podem ver as ruas e olhar para elas, sem nos preocuparmos se vamos tropeçar em alguém, sem que alguém esbarre em nós sem sequer olhar para trás e sem miríades de buzinas e carros.
Não gosto de cidades. Sou e serei sempre um homem da “província”, como cá gostam de dizer (como se não tivessem sido os provincianos a tecer a malha dos que hoje são lisboetas, mas adiante). Quem me tira o Alentejo, tira-me tudo. O cheiro da terra, o céu, o sol, os sons do vento nos sobreiros… O silêncio dos montes, o sossego das fontes.
Mas gosto de Lisboa. Quando está assim, vazia de sábado à tarde. Talvez seja da luz, ou das cores, ou de uma certa acalmia, não sei dizer. Gosto.
Fui passear. Tomar café, ler o jornal e pôr-me a pé pelas ruas.
Vi um gafanhoto.
Primeiro não percebi bem o que era. Só via qualquer coisa a saltitar à frente dos meus sapatos. Depois olhei melhor e vi que era um gafanhoto. Um daqueles pequeninos, amarelados, com que eu brincava quando era criança. “Um gafanhoto… Aqui!”… Deixei-me rir para mim mesmo, atulhado de lembranças, já a correr pela tapada em frente de casa, com uma caixa de fósforos vazia, a atirar-me para cima das ervas secas, de punho bem fechado, até o sentir saltitar dentro da mão. E logo gargalhadas e contagem de gafanhotos, a ver quem tinha apanhado mais. Era assim que eu brincava quando era pequeno, no meu querido Alentejo. Nessa altura tudo era simples, e a vida parecia cheia de promessas, ali, ainda à espera que eu pudesse pega-lhe.
Ri-me do gafanhoto. E de mim, de estar a rir-me no meio da rua.
Depois, perdi-o de vista. Fui à minha vida e ele à dele.
Esta semana o país parou para ver o senhor Ministro da Economia e um deputado tomarem-se de razões. Correu mundo (eu, atónito!) o gesto malandro do senhor Ministro. E desde então, não se falou de outra coisa. Um ror de análises e comentários e pareceres, de gente especializada e dos mais variados sectores fez-se logo ouvir e escrever. O senhor Ministro fez um gesto de chifres a um deputado.
Gostaria de perguntar de porta em porta, por esse Portugal fora e por esse mundo além (parece que, para meu espanto, o gesto tornou-se um acontecimento mundial, só comparável à chegada de Bo à Casa Branca – não, não me canso de gozar com isto) se alguém sabe, ou porventura se lembra, de qual era o contexto em que o episódio aconteceu. Por outras palavras, gostaria de saber se alguém faz ideia do que é que se estava a passar no Plenário. Qual era o assunto que ocupava os digníssimos representantes da Nação.
Estou em crer que as respostas seriam bem poucas. As certas, naturalmente. Porque, como em tudo, são as pequenas coisas e os episódios caricatos que marcam e que ficam na memória. O nome do senhor Ministro ficará para sempre ligado àquele gesto, enquanto o debate sobre o Estado da Nação permanecerá esquecido. Digo permanecerá porque dele ninguém se lembrou. Só se noticiou o gesto. Naturalmente que não é preciso um grande debate para se apurar qual é o Estado da Nação. Mas isso é outra história.
O gesto não foi bonito. Concordo. Perder a calma nunca é bonito. Mas também aceito que seja necessária uma paciência de Job para aturar as tricas, os esquemas, as insinuações, as meias palavras, o jogo político-partidário tão grandemente difundido e posto em prática por cá. E as coisas têm, como é sabido, a importância que se lhes dá…
Talvez se devesse pensar se o erro foi apenas do Ministro. Talvez se devesse pensar se não será necessária uma reforma na forma como se faz a política. Como ela se constrói, se pratica e, sobretudo, como ela deveria servir o País em vez de o envergonhar. Talvez se devesse perder menos tempo nas discussões infindas, inúteis, demagógicas, tautológicas e insípidas com que se ocupam os deputados. Talvez se devesse deixar entrar ar fresco. Cheira a bafio de lá. Talvez faça falta mais ponderação, mais seriedade, menos interesse pessoal e partidário… Mais luz, mais cor, mais genica. Mais simplicidade.
Quem sabe um dia ainda vou ver um gafanhoto no Plenário. E quem sabe se algum deputado não brincou também com gafanhotos em criança, quando tudo era mais puro e cheio de sonhos e promessas. Quem sabe não se lembra. Não reencontra os ideais e os desejos. E não se ri de si mesmo. De se rir com coisa nenhuma e brincar com gafanhotos. E abrir a caixa de fósforos, para soltar a vontade de ser mais e melhor.
Vêm aí as eleições, estas sim para o Governo. Quem sabe não se reencontram a si próprios a tempo? E se enchem das recordações dos porquês que os levaram à política?
Quem dera ver mais gafanhotos por Lisboa.

domingo, 28 de junho de 2009

A Mosca

O Presidente Obama matou uma mosca. Uma mosca! Numa entrevista.
A mosca andava ali de roda, enquanto ele ia satisfazendo a curiosidade do jornalista acerca das questões americanas e mundiais que o ocupam. E o Presidente não esteve com meias medidas. Matou-a. E o mundo pasmou, porque o senhor Presidente dos Estados Unidos matou uma mosca em público. “O Presidente Obama quebrou hoje mais uma barreira”, introduziu o jornalista que teve o gosto de apresentar à Nação Lusa este episódio.
Estou convencido que aquilo é a inspiração advinda do convívio com Bo, ilustríssimo cão-de-água presidencial. Não que Obama precise de se inspirar no seu companheiro de quatro patas. Mas o convívio com aquele exemplar, não português, mas de ascendência portuguesa, que há-de ainda colher alguma da garra e do desembaraço com que nós por cá lidamos com moscas, certamente não foi inócuo. Claro que a garra é nossa. E o desembaraço. Não dos cães. Não quero que alguém pense que desmereço o sangue luso que me vai nas veias. Mas que diabo, se o cão era nosso, quer dizer, neto de um nosso, então há-de ter aprendido alguma coisa… E a um presidente com a estatura e a coragem de Obama só pode convir um cão à altura.
O mundo pasma-se com a desenvoltura de Obama. Faz acreditar de novo que nem tudo está perdido. Mas parece-me que começamos a cair no ridículo com a parafernália de notícias à roda do Presidente…
Que me importa a mim, ou ao mundo, que o Presidente mate moscas?... Talvez ainda se arrisque a uma manifestação aos portões da Casa Branca… Nós por cá gostamos tanto de manifestações e barafustar por tudo e por nada… Pergunto-me se por lá também será assim. Se perdem tempo e energia (todo o tempo) a discutir e a manifestar-se e a reclamar e a trocar galhardetes sobre culpas (políticos e não políticos. Parece ser uma espécie de característica nacional)… Se por lá também discutem, discutem, discutem e depois ficam todos contentes e inchados a dar grandes entrevistas sobre como deram bordoada no governo. E depois, toca a ir para casa, no carrito topo de gama, a fazer contas ao ordenadinho chorudo que o país lhes paga para não fazer nada e só discutir, discutir, discutir.
Há tanta mosca por cá… Custa-me é a ver a garra. E o desembaraço. A não ser que haja um qualquer envolvimento pessoal, que toque na carteira ou no interesse… Aí, somos como leões lançados a cordeiros.
As eleições europeias já foram à quase um mês. Confesso que não dei atenção à campanha eleitoral, a não ser àqueles episódios caricatos que toda a gente viu. Nem eu, nem ninguém. Senão a abstenção não teria sido tão alta…
Mas não entendo. Não gosto de política. Tudo aquilo cheira a azedo, a terrivelmente desadequado, a panelinha, a jogo de comadres… Tudo aquilo me tira a paciência. Mas, ainda assim, é o que temos. Não entendo a atitude de querer ficar quieto. De fora. Como se não fosse nada connosco. E quanto mais se ignora, mais se alimenta o status quo… E assim vamos alimentando as moscas.
É engraçado ver a azáfama dos partidos a colocar cartazes e a distribuir panfletos. É giro vê-los a dizer sempre as mesmas coisas, embrulhadas em “ideias” novas. “Queremos mais! Mais votos, mais lugares, mais deputados, mais filiados, mais povo português do nosso lado”. Mais votos quer dizer mais subsídios para o partido… Quando pensamos na lógica da coisa, não é difícil perceber onde está o verdadeiro interesse. E “onde está o teu tesouro, aí está o teu coração”… Tantas moscas…
Apesar de já ter passado quase um mês, as ruas, pelo país fora, continuam cheias de cartazes de propaganda. Gostava de ver a azáfama dos partidos a retirar os cartazes, com o mesmo empenho e brio com k andaram ai a espalhá-los… “Ah, não, isso já não é da nossa responsabilidade”… E será que ainda se lembram do programa eleitoral? Das ideias pelas quais se vão bater em Bruxelas?...
“Bem, o governo…” Mas qual governo? Eu perguntei das europeias, não do governo… “Ah… as europeias”…
Pois, ninguém sabe. Eu fui votar. Mas também não sei. Foi um descargo de consciência cívica. Esperemos que os ilustres deputados saibam, já que nós por cá, ficamos completamente às escuras. Ou teremos que chamar o Presidente para matar as moscas?
Garra, senhores. Garra. E desembaraço.

sábado, 30 de maio de 2009

Patés "ao vapor"

Descuramos muito a contribuição da imprensa cor-de-rosa para a felicidade no mundo. O seu papel na forma como nos pomos ao corrente das mexeriquices do dia-a-dia e da vida alheia e tomamos consciência dos passos dados e nãos dados de famosos, pseudo-famosos, quase famosos e afins. Foi nas leituras diárias do espaço cor-de-rosa dos jornais gratuitos, dos quais sou firme adepto (tanto mais que não tenho dinheiro para comprar um jornal todos os dias), que eu fiquei ao corrente de coisas tão importantes como o facto da protaganista do filme “Marley e eu” se dar ao luxo de mandar vir de propósito o seu cabeleireiro para o local das filmagens para tratar do seu cabelo, gastando mais num mês destas viagens do que eu provavelmente ganharei em toda a vida a trabalhar num call-center; que a cantora Beyoncé faz exercício físico a olhar para um poster dum óscar e que uma marca de comida para gatos decidiu lançar uma linha exclusiva de patés “ao vapor”...
Poderia desfiar um ror de notícias absolutamente fundamentais para nos fazerem sentir melhor. Claro, muita gente dirá que o objectivo destas notícias é precisamente tornar a vida menos feia, menos dura, com mais glamour e tal... E eu digo: a vida não é menos feia e dura por bisbilhotarmos a vida dos outros. Aliás, creio que a bisbilhotice é um rápido caminho para o boato e, portanto, para se meter o nariz onde se não é chamado. Já para não falar na questão da futilidade. Não entendo como sonhar com uma vida em que o cabelereiro anda de trás para frente para fazer as vontades pode ser um exemplo. Naturalmente, as pessoas são mais do que isso, e este é apenas um exemplo (triste), de um aspecto particular, da vida da pessoa. Há outros aspectos, mais importantes, que fazem desta actriz ou de outra qualquer pessoa visada nestas notícias sociais, pessoas únicas e irrepetíveis. Exactamente os mesmos que fazem de nós, cada um de nós, seres únicos e irrepetíveis. Mas então porque não nos concentramos nisso? No que é fundamental?... Porque preferimos o acessório ao fundamental? Andamos todos a precisar de patés ao vapor. Quem sabe assim começamos a depurar mais o paladar, como os gatos. E ficamos mais alerta para aprendermos a escapar a essa terrível tentação de meter o nariz na vida dos outros. Era bom não era? Patés ao vapor para todos.

domingo, 19 de abril de 2009

Bo e as cuecas japonesas

O cão do Presidente Obama está de novo na berra. Não há telejornal ou revista que se preze que não mostre as alegres fotos do “Bo” ao lado do seu dono. Parece até que um organismo de imprensa norte-americano vai fazer uma reportagem sobre os portuguesíssimos avós do cão de água. É que o exemplar, apesar de raça nacional, nasceu em solo americano. Portanto, é de toda a conveniência e interesse uma reportagem sobre os familiares do cão. Estou na verdade até um pouco admirado de não ter sido um orgão de imprensa português a lembrar-se disto, e de como seria bom para o orgulho nacional...
Há, no entanto, qualquer coisa de errado no íntimo nacional... As pessoas andam preocupadas. Aflitas mesmo. Voltou a falar-se de fome em Portugal... Não há dinheiro para pagar as dívidas, as prestações... Para ir ao supermercado. Corta-se em tudo. Aumenta o crime.
Há dias, li a notícia num jornal de uma criança de 9 anos que coagia os colegas de escola e os molestava sexualmente... Encurralava os mais novos, levava-os para a casa de banho e ameaçava-os de morte, para não contarem a ninguém. Isto passou-se cá, no nosso Portugal. Com nove anos. Como é isto possível?... Curiosamente, no mesmo dia, vi um episódio da série CSI. Gosto daquilo. Claro, que a ficção é muito distante da realidade, mas não é isso que me leva a ver a série. É a preponderância dos bons. Devia ser um episódio repetido, certamente. Mas como quase nunca vejo TV, não faz mal. Era sobre um crime ocorrido num reformatório, ou num centro de detenção juvenil. Um nome mais sonante para dizer a mesma coisa. O que me choca é a parte do juvenil...
Como é que chegámos ao ponto civilizacional em que trancamos os juvenis em prisões por actos de dliquência e crimes? Será que ninguém pergunta o que foi que fizémos errado? De quem é a culpa?
O que se passa connosco? Com os pais, que deixaram de saber educar os filhos, e recorrem a miríades de livros de especialistas para saber como fazer?... Ninguém repara no descalabro disto? Não sabem como se educa os filhos... O que se passa com a sociedade, que se demite? Ou melhor, que responde reactivamente (fazem-se prisões e mudam-se as leis para criminalizar actos cada vez em mais tenra idade), em vez de procurar ver ao longe e procurar as causas! Entende-las e combatê-las. Travá-las antes das consequências. Mas não. Perde-se demasiado tempo em debates. Junta-se comissões, planeiam, planeiam, pensam, pensam, reunem, reunem, e fazem um relatório final. O erário público gastou mais uns cobres e há-de haver um ministro qualquer que depois vem pomposamente anunciar as conclusões. E pronto. Tudo como dantes.
É assim no nosso querido país. Valham-nos as boas notícias do Bo. Parece que inclusivamente vai editar um livro (?)... Ora aí está uma coisa que eu quero ver. Ah, e a notícia de que os japoneses inventaram umas cuecas que eliminam os maus cheiros. Digam lá se isto não é uma daquelas coisas capazes de mudar o mundo?

sábado, 11 de abril de 2009

As férias da Páscoa

Andamos todos atarefados. A corrida da Páscoa, para fugir à cidade e regressar às origens, onde se vai celebrar tradições que já não nos dizem nada, e de que não entendemos o significado, mas das quais somos todos piamente devotos. Pelo menos durante uns dias.
E podemos dar-nos ao luxo de esquecer que a vida vai mal e que o mundo vai mal.
Não vale de muito pormo-nos em lamentações. A vida vai continuar mal e o mundo também. A diferença pode estar na atitude.
Li há dias, num dos jornais gratuitos que puseram os portugueses a ler nos transportes, a notícia de dois jovens, de onze anos (onze!) que espancaram dois colegas, de nove e onze anos. O móbil desta briga parece ter sido o facto de se terem recusado a entregar os ténis, o dinheiro que levavam e os telemóveis. O mais novo foi encontrado a deambular numa rua, todo ensanguentado. O outro, semi-incisciente numa ravina. O mais novo teve de ser operado, o mais velho transportado de helicóptero com um traumatismo craniano. Os rapazes usaram tijolos, facas e murros.
Aconteceu esta semana, numa localidade do Reino Unido, Parece longe, mas não é.
Há várias perguntas que me saltam de repente... Mas duas deixo aqui: como é que se chegou a este tipo de atitude? De quem é a culpa?
A culpa é nossa, claro está. Da sociedade. Partindo do princípio que a sociedade somos nós, que a construímos e regulamos, alguma coisa devemos estar a fazer muito mal... E esta atitude, esta violência gratuita, não está sozinha nem isolada. Olha para o lado. Repara no que vês todos os dias. E pensa no que isso significa.
A mudança começa agora. É este o tempo. Não o amanhã. Amanhã pode ser demasiado tarde. E começa em cada um. Em ti.
Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.
Boas festas da Páscoa.