segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Conto de Natal

Há muito tempo (como nos contos), quando ainda andava a estudar, lembro-me certa vez de ir a caminho de casa.
Era perto do Natal, e eu ia apanhar o expresso. As pessoas andavam dum lado para o outro, em passo muito acelerado, atafulhadas de sacos, cheios de presentes com laços, por ente as ruas cheias de luzes e de cor. Aqui e ali uma gargalhada. Pessoas paradas a conversar, com grandes cumprimentos e votos de boas festas. Eu ia seguindo, sem prestar muita atenção, com o fito apenas de furar a multidão e não me atrasar.
Notei uns miúdos que riam, uns três ou quatro, pela rua abaixo. Lembrei-me que também gosto do Natal. Esbocei um sorriso, no meio da pressa, ao ouvi-los.
Passei por um troço de rua muito estreito, em que o passo era necessariamente mais lento, com toda a gente colada uns aos outros, ouvindo aqui e ali uns "desculpe", por causa dos sacos que teimavam em esbarrar nas pessoas. Alguns acabavam por meter-se na estrada, quando o trânsito deixava, uma vez que os carros eram muitíssimo menos que as pessoas.
Depois vi-a.
Ia ali, quase à minha frente, de passo muito vagaroso.
Pela rua fora ia uma senhora, porventura muito velha, a quem nada daquilo incomodava. Trazia um casaco comprido, porventura tão velho como ela, um lenço a tapar os cabelos brancos. Apoiava-se num guarda-chuva, também ele decrépito e nos pés levava por sapatos dois sacos de plástico, que faziam as vezes das botas de inverno. Era o barulhinho do plástico na calçada que agora só se ouvia na rua apinhada de gente, de luzes, de cor, de presentes e de laços. Uns passos trôpegos, incertos e cadenciados, que abafavam as buzinas dos carros a afastar as pessoas da estrada e que calava os risos. Os risos. Era daquilo, melhor, era dela que riam os miúdos. Mitiguei o meu sorriso. E apeteceu-me berrar com os miúdos também. Mas eles lá iam, correndo e rindo a bandeiras despregadas, como se tivessem vindo do circo. E as pessoas lá passavam, atarefadíssimas por entre os carros que buzinavam e os sacos uns dos outros. E ela lá seguia, na sua marcha vagarosa, como se mais ninguém caminhasse a par dela. Perguntei-me se haveria alguém para caminhar com ela. E se no meio dos laços, dos presentes, das luzes, da cor e dos risos, alguém lhe daria a mão.
Feliz Natal.

P.S. Ontem nas notícias voltaram a falar dos idosos abandonados nos serviços hospitalares, depois de terem alta, por não terem quem os vá buscar ou por as famílias se recusarem a recebê-los (recebendo, no entanto, as pensões). Andamos desnorteados... Fará sentido andarmos tão atarefados no Natal?

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