quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

No tempo dos cães de loiça

Lembro-me de um cão de loiça em casa da minha madrinha, quando era pequeno.
Era um cão branco, enorme (ou pelo menos parecia-me), pintado de dálmata, muito direito, afilado, numa pose quase felina, assim de guarda num canto do corredor, de olhos muito cor-de-laranja, sem nunca emitir um rosnado, de sentinela.
Parecia-me grande, enorme. E sempre alerta, como se os olhos cor-de-laranja me seguissem sempre, fitando-me, e instigando-me ao silêncio, de guarda àquele santuário que era o lar.
Hoje já não deve haver cães de loiça. Em casa da minha madrinha julgo já não haver.
O tempo é uma coisa tão efémera. Não é novidade isto... Já S. Agostinho, nas Confessiones (sim, é latim, mas existe em português para os interessados), Livro XI, lá fala do tempo...
Pensando bem, tudo é relativo, no tempo. Até os cães de loiça.
Gostava de ter a possibilidade de observar fora do tempo, numa dimensão atemporal, e ver a vida a passar, olhando para ela de fora, como mero espectador. Pergunto-me a mim mesmo se conseguiria ser apenas espectador. E ficar indiferente à vida. E aos que a vivem. Aos dramas, aos sofrimentos, aos problemas, ás coisas boas, ficando eu de tudo e todos imune.
Não sendo completamente espectador (vivo os meus dramas e do mundo que me envolve e falta-me estar fora do tempo), ainda assim consigo imaginar. Eu ali a um canto, afilado, e o mundo a passar. E eu a vê-lo.
E vejo as ondas de solidariedade na tragédia, com o mundo a desdobrar-se em campanhas de apoio para as vítimas do Haiti, tentando acudir a miséria de quem sem nada ter, com mais nada ficou. Fico à espera de ver o que se fará pelo mundo fora quando, acudidas as vítimas, se lhes entregue de novo o país moribundo (que já antes era) para as mãos.
E vejo a guerra tomar conta, cada vez mais, dos países alimentados pelos fanatismos cegos (são sempre cegos) e interesseiros, que jogam com a falta de esclarecimento e com o orgulho de povos e nações inteiras. E amealham interesses e engordam a carteira com o sangue de quem julga defender algo maior que si próprio. Fico à espera de ver quem lhes estenderá a mão, quando finalmente perceberem que foram usados. Quem os consolará? E de quem será a mão forte para castigar quem se aproveitou da sua boa vontade?
Vejo a fome aterrorizar mães e filhos. Vejo o desemprego. Vejo a injustiça social.
Vejo o país, meu país, doente. Vejo como a corrupção dilacera a partir de dentro, a república que pomposamente já se celebra no centenário, silenciosa e impiedosa. Vejo os políticos entretidos com questões, todas elas estruturantes e fundamentais para a democracia, numa miríade de discussões tautológicas, tornadas fúteis e completamente inúteis, de tão distantes da realidade de quem vive no limiar da pobreza e sente na pele o drama de não ter pão na mesa. E aguardo para ver a resposta a esta crise, que não é só nacional, dizem, mas afecta toda a gente. Como se no país, no meu país, a crise não estivesse quase intrincada com o ar que se respira e não fosse parte do quotidiano. Parece que sempre que se apregoa que vai passar, outra logo surge.
Quem nos consolará?
E vejo o país atolado no desânimo, na falta de crença, inundado pelo excesso de imigração não absorvida, que faz disparar a criminalidade para números e formas que nunca tínhamos visto nem sabemos lidar; pelo excesso de licenciados sem emprego ou empregados em caixas de supermercados e call-centres; pela legião de gente que vive com quinhentos euros de ordenado e se vê confrontado com a incapacidade para se sustentar e pagar sequer as contas do mês; com o crescente número de trintões que ainda depende e irá depender dos pais, por não conseguir sequer alugar uma casa... E vejo como não há respostas. Todos calados. Aprumados e direitos, muito em poses.
Vejo muita gente muito afilada, encostada aos cantos dos corredores, a fitar a vida enquanto ela passa. Mesmo (sobretudo) os que têm a responsabilidade e o dever de iniciar a mudança e trabalhar para ela. Muito quietos, a engordar a carteira, só de olhos cor-de-laranja a mirar, na expectativa de mais uma oportunidade que satisfaça um novo interesse.
Mesmo só de faz-de-conta, muita gente ficou fora do tempo, sem fazer parte dele.
Tudo é tão relativo, no tempo.
Talvez haja, afinal, muitos cães de loiça. Que guardarão eles agora?...
E a nós, quem nos consolará? De quem será a mão e quem será que no-la vai estender?