quinta-feira, 6 de setembro de 2012

81 Veras Pereira

            Hoje, deambulando como costume pelas ruas, no meu passeio diário, companheiro precioso de ócio e da vida de desempregado, reparei numa mulher a berrar ao telemóvel qualquer coisa como “espero-te ao pé da Breshka”. Berrava muito alto, como que falando para longe e sendo necessário falar em tom que toda a gente ouça. Repetiu aquilo vezes sem fim. Não se deu conta, nem por um momento, que estava a dizer mal o nome da marca. Na verdade, acho que isso não a preocupava. É difícil preocuparmo-nos com o que não conhecemos. E ainda bem. Mas fiquei a pensar em como há coisas que entram tão facilmente na rotina e na forma de estar. Não foi preciso dizer “estou na rua tal, em frente a qualquer coisa”… Não. Bastou dizer “ao pé da Breshka”. Isso foi bastante para que o seu interlocutor soubesse precisamente onde deveria ir ter. Da mesma forma, há coisas que nos entram pela vida dentro e passam a fazer parte dela. De tal modo que já não precisamos de explicar. Todos sabem o que se quer dizer quando se diz determinada coisa. Uma espécie de linguagem mesmo. Sejam números, nomes, acontecimentos, pessoas… Toda a gente sabe a que se referem, sem ser preciso grandes explicações. Podemos falar, por exemplo, do Egas Moniz; de Abril; do 5 de Outubro; do Paiva Couceiro; do 1 de Dezembro; do Condestável; da Padeira; dos Jerónimos; de Camarate; do Titanic; do Holocausto; da Bershka, claro está… Enfim, uma miríade que podia referir. Umas coisas ficam na memória por boas razões. Puxam pelo brio, pelo orgulho… Outras pelas piores, lembrando-nos do que não devia ter acontecido e, sobretudo, não pode voltar acontecer. Depois procurei exemplos mais contemporâneos. Coisas a acontecer que se vão rapidamente tornar ícones desta forma de comunicação. Lembrei-me do número 81. E da Vera Pereira. Os 81, porque quando os salários diminuem no país, públicos e privados (basta ver as ofertas de emprego e verificar quais os salários oferecidos e fazer o exercício de comparação com, por exemplo, dois anos atrás), os digníssimos parlamentares conseguiram o feito de ter um aumento salarial que se traduz em 81 euros. 81 euros. Claro, no ordenado dum parlamentar, uma minudência. Quase nada. Mas a quem ganha o ordenado mínimo e corre o risco de o ver taxado no IRS, seria uma grande grande alegria. São estas as discrepâncias da nossa sociedade. E são elas que a fazem fracassar. Na verdade, estou convencido que a humanidade, enquanto projecto social, é um fracasso. Não apenas por isto. Mas também por isto.
            A Vera Pereira, porque estando desempregada conseguiu a proeza não apenas de arranjar emprego através do Centro de Emprego, coisa só por si rara, como ver-se nomeada para o dito emprego. Ficará inesquecível a frase “só a admitir a Vera Pereira”. A explicação oficial é que é perfeitamente normal ter acontecido, uma vez que a vaga em questão foi preenchida ao abrigo dum programa que permite ao futuro empregador indicar uma possível candidata. Tudo muito certo. A minha questão é só uma: qual a legitimidade de haver programas financiados pelo Estado, no âmbito de incentivos à empregabilidade, em que o empregador, privado, pretende contratar, com apoio estatal, note-se, uma determinada pessoa? Ora se os programas são públicos, financiados com dinheiro público, não deveria ser admitido o/a candidato/a mais capaz? Qualquer que fosse? A mim parece-me que sim. Pois se o distinto empregador queria contratar aquela agora famosa pessoa, porque não a contratou sem estar à espera de mais um subsídiozinho do Estado? De um jeitinho?... Naturalmente, não há apenas uma Vera Pereira. Nem tão pouco apenas 81 Veras Pereira. Haverá muitas mais. Este episódio foi, na verdade, um vislumbre de como funcionam as coisas. De como tudo se processa. Estamos no país dos jeitinhos, ora pois. Claro está, tudo devidamente justificado. Nada de malandrices. Aliás, já esta semana, uma distinta figura do aparelho judicial se apressou a descansar as pessoas de bem, garantindo que em Portugal não há políticos corruptos. O problema é sempre a mulher de César… O meu Avô costuma dizer que quem não quer ser lobo, não lhe veste a pele.
            Perguntei-me se a pessoa que contratou a Vera Pereira dorme à noite. E se a pessoa que autorizou o aumento salarial dos parlamentares tem insónias… Depois olhei para trás. A mulher ainda estava “ao pé da Breshka”. Não sei se conhece a Vera Pereira, nem se a incomodam os 81 euros. Talvez o seu mundo se centre mais em sacos de compras.