segunda-feira, 25 de março de 2013

Os ovos da Páscoa de Bo, o rabo de Beckham e os mercados financeiros (II)

(...) continuação
A acrescentar a estas dificuldades, o modelo social em que existimos padece do problema da credibilidade. Tomemos como hipótese a situação em que alguém, conhecido futebolista e modelo, lança uma linha de roupa interior masculina. Faz um anúncio publicitário em que, a par da forma física, exibe a roupa que pretende vender. Acontece que alguém alvitra a possibilidade daquele rabo que aparece no anúncio não ser o dele. A possibilidade apenas. Logo se apressa a pessoa a afiançar que sim senhor, é mesmo o rabo dele. Criou-se, no entanto, a dúvida. E esta faz tremer as previsões de vendas. A isto se chama instabilidade dos mercados, provocada pela falta de credibilidade ou confiança. No nosso modelo social em análise, o problema é exactamente o mesmo: não andam os senhores políticos, financeiros, economistas e restante pessoal técnico e de assessoria certamente preocupados com o rabo do Beckham. Mas andam muito preocupados com a instabilidade dos mercados. A razão é simples: o nosso sistema social standardizado alberga um modelo económico falido (sem respostas, sem soluções, sem possibilidade de dar a volta à situação em que se encontra). Mas por qualquer razão insiste-se nele, de tal forma que se tomam no campo político medidas, que depois serão postas em prática por técnicos sem responsabilidade política, e se abrem portas a que se prolongue a agonia deste sistema moribundo, afundando com ele todo o tecido social, com benefício, contudo, dos mesmíssimos mercados que criam a própria instabilidade, lançando eles mesmos previsões e alvitrando possibilidades de que, nesta ou naquela ocasião, serão ou não cumpridos determinados compromissos, normalmente pagamentos, que é a linguagem universal e transversal a todos os sistemas integrantes do sistema global em que vivemos. Não importa se esses compromissos vão ou não ser cumpridos, note-se. Basta aventar possibilidades. E nelas, lançar ao lixo sociedades inteiras.
Eis aqui como se domina o mundo hoje. E eis também como ele está tão próximo de se perder. E temos hoje novamente o espectro da guerra, a juntar ao da exclusão social, da fome, das lutas raciais, do desemprego que corrompe verdadeiramente a realização pessoal do indivíduoo na sociedade.... Somos um modelo social em colapso. Resta saber se o homem superará este momento. Se será maior que ele. Ou se soçobrará ante o peso dos padrões, das regras, das formas e a pressão dos fortes, que lutam ainda por subsistir neste modelo decadente. E o que resultará?...
Pois, não sei.
A primeira pergunta deveria ser, antes do que resultará, quem beneficiará?... Houvesse quem respondesse, quem se pusesse a pensar, quem limpasse o raciocínio de tantas formas e modelos e padrões e regras e ideologias gastas e ocas e talvez, talvez, se afigurasse um caminho. Houvesse quem fosse maior do que si próprio, quem se orgulhasse daqueles que representa, quem se esmerasse pela busca do melhor e do mais justo e talvez, talvez houvesse um caminho. Mas não. Estamos na era do depois do vazio.Já passou o moderno, o pós-moderno e até o hipermoderno... Agora é a era dos extremismos. Da irracionalidade barata e cruel. A era dos mercados financeiros. É a era da política sem inteligência. A era dos políticos tecnicizados. Queria políticos que lessem Thomas More... Ou então outra coisa qualquer... Mas que lessem. E pensassem...Ah, o difícil acto de pensar...Tão fácil, e tão difícil.
Mas enfim, nem tudo está perdido. Bo esquadrinha alegremente os campos da Casa Branca em busca dos ovos pintados da Páscoa; o querido líder da Coreia vai fazendo uns ensaios nucleares; o Comandante venezuelano foi-se para influenciar no céu a escolha dum papa argentino; na Europa os senhores reunem-se para evitar o inevitável e lidar com o mal comportando Chipre... E por cá, tudo se adia para depois da Páscoa. Vamos comendo o folar enquanto o temos. Depois? Depois veremos. A nossa desgraça é esta mesmo: uns ou outros, todos da mesma medianidade insuportável e bafienta.
Só o pobrezinho português deseja sossego. Mas ninguém lho dá. 
E, pasme-se! Era mesmo o rabo do Beckham. Ele há coisas...

domingo, 24 de março de 2013

Os ovos da Páscoa de Bo, o rabo de Beckham e os mercados financeiros (I)

O modelo social em que vivemos hoje é, em larga medida, feito de coisas standard. Vivemos de acordo com certas regras, com certos padrões definidos, com certas formas de estar e agir e onde se espera que em determinadas alturas da vida se faça isto ou aquilo. É uma maneira de estruturar a sociedade. Na verdade, nós os que vivemos hoje, concretamente, tivémos muito pouco a dizer sobre esta forma de fazer. É assim e pronto. A vida em sociedade seria, na verdade, completamente impossível não fossem as regras, os padrões, os usos, as leis que moldam e peiam cada indivíduo, pegando nele desde o berço e modelando-o, de tal modo que viva na sociedade que já encontrou e possa nela realizar-se como pessoa, indivíduo e membro do conjunto social alargado em que vive, contribuindo também para a sua melhoria. De certo modo, há um tolher da liberdade individual, embora sacrificada para proteger o próprio indivíduo e para o inserir na sociedade onde tem de fazer a sua vida. O indivíduo deixado à solta, sem regras, modos, modelos ou padrões, seria bestial. Lobo de si mesmo, se pegarmos no conceito de Hobbes.
O problema da standardização é precisamente quando falha. Ou então quando alguém, conscientemente, percebe que o modelo em que se espera que viva não corresponde à sua própria essência como pessoa. Dito de outra forma, quando alguém percebe que será mais feliz vivendo de outro modo. No plano puro das liberdades, esta seria uma situação perfeitamente legítima. Dum certo ponto de vista, até desejável, na medida em que os modelos sociais, quaisquer que sejam, não conseguem realizar plenamente todos os indivíduos, e necessitam constantemente de aperfeiçoamento e de maturação e, claro, de mudança. Não pode haver mudança se não houver discordância. Mas, no plano concreto da vida, esta é exactamente o tipo de situação que cria atritos. E donde nascem fenómenos como racismo, xenofobia, o bullying e coisas mais do género. A razão disto é a incapacidade para a diferença. O embaraço de ter de lidar com a situação de alguém que não está em plena concordância com o que seria de esperar. E isso assusta. E lança dúvidas. Naturalmente, é muito mais fácil adoptar uma postura de rejeição do que de inclusão da diferença. São muitas as razões para isso, mas é fácil constatar que perante alguém diferente a primeira reacção é de afastamento. Têm sido, felizmente, muitos os esforços no sentido de promover a diferença. E gradualmente a diferença consegue subsistir. Não tanto por ser aceite, mas por ser tolerada. A razão disto é que a inclusão dos que foram ficando “à margem” não faz parte do nosso modelo social. É um apêndice, que foi necessário adoptar para conviver com as várias diferenças: alguém que tem um qualquer problema de saúde; que nasce com uma deficiência; que é gordo quando deveria ser magro, baixo quando deveria ser alto, fraco quando deveria ser forte... Ou alguém que escolhe não constituir família, ou constitui-la de forma diferente... São muitas, muitas as situações que vão mostrando a necessária adaptabilidade dos sistemas de sociedade, perante a legitimidade e o direito de ser diferente sem ser proscrito ou marginalizado por isso. E de cada vez que alguém é maltratado por fazer ou ser diferente, regride-se no processo civilizacional e acentua-se a necessidade, que é constante, de promover a diferença como realmente parte da sociedade.
Evidentemente, a utopia é precisamente esta: uma sociedade baseada num modelo social em que os indíviduos se possam realizar plenamente como pessoas e como parte de um todo, de acordo com a sua própria essência.
Imaginemos agora um modelo social onde a standardização assenta na premissa base de que a sociedade se divide entre fracos e fortes. E em que todo o modelo social cresce e se alimenta em torno desta premissa. Imaginemos ainda que há não uma sociedade a viver deste modelo, mas o mundo inteiro, devido não apenas ao factor globalização, mas à força dos mercados financeiros e das instituições ou pessoas que os controlam.
Tomemos isto como real, e teremos uma descrição sumária, porventura simplista, ainda que verdadeira, da nossa própria e concreta sociedade, à escala global. Ora a situação em que vivemos, e que habitualmente chamamos de “crise”, advém precisamente da falha deste modelo standard, seja porque os fracos se cansaram de ser fracos, ou seja, muito provavelmente, porque os fortes esvaziaram de tal forma os fracos, que estes já não conseguem sustentar os fortes. Não há mais por onde. Há, portanto, aqui uma verdadeira crise, no sentido literal da palavra: uma ruptura. Urge, pois, repensar todo o modelo social. Não apenas o económico. Porque uma economia não pode subsistir sem pessoas. Aliás, ela existe para as pessoas. Correndo o risco de contradizer os economistas que acham que os historiadores não servem para nada, aqui vai: economia: do grego "oeconomia", que quer dizer “regras da casa”, numa tradução mais livre. Significa isto que a economia serve para o bem gerir da casa. Nesta vertente, a economia é uma ciência social, ou seja, que se desenvolve e fomenta na sociedade. Se não houver sociedade, também não há economia. E se os cientistas da economia escutassem, ou melhor ainda, lessem, os cientistas da sociedade, talvez se abstivessem de aberrações académicas que transformam as pessoas em cobaias de ensaio. Outro grave problema trazido pela crise.     
(...) continua