O modelo social em que vivemos hoje é,
em larga medida, feito de coisas standard. Vivemos de acordo com
certas regras, com certos padrões definidos, com certas formas de
estar e agir e onde se espera que em determinadas alturas da vida se
faça isto ou aquilo. É uma maneira de estruturar a sociedade. Na
verdade, nós os que vivemos hoje, concretamente, tivémos muito
pouco a dizer sobre esta forma de fazer. É assim e pronto. A vida em
sociedade seria, na verdade, completamente impossível não fossem as
regras, os padrões, os usos, as leis que moldam e peiam cada
indivíduo, pegando nele desde o berço e modelando-o, de tal modo
que viva na sociedade que já encontrou e possa nela realizar-se como
pessoa, indivíduo e membro do conjunto social alargado em que vive,
contribuindo também para a sua melhoria. De certo modo, há um
tolher da liberdade individual, embora sacrificada para proteger o
próprio indivíduo e para o inserir na sociedade onde tem de fazer a
sua vida. O indivíduo deixado à solta, sem regras, modos, modelos
ou padrões, seria bestial. Lobo de si mesmo, se pegarmos no conceito
de Hobbes.
O problema da standardização é
precisamente quando falha. Ou então quando alguém, conscientemente,
percebe que o modelo em que se espera que viva não corresponde à
sua própria essência como pessoa. Dito de outra forma, quando
alguém percebe que será mais feliz vivendo de outro modo. No plano
puro das liberdades, esta seria uma situação perfeitamente
legítima. Dum certo ponto de vista, até desejável, na medida em
que os modelos sociais, quaisquer que sejam, não conseguem realizar
plenamente todos os indivíduos, e necessitam constantemente de
aperfeiçoamento e de maturação e, claro, de mudança. Não pode
haver mudança se não houver discordância. Mas, no plano concreto
da vida, esta é exactamente o tipo de situação que cria atritos. E
donde nascem fenómenos como racismo, xenofobia, o bullying e coisas
mais do género. A razão disto é a incapacidade para a diferença.
O embaraço de ter de lidar com a situação de alguém que não está
em plena concordância com o que seria de esperar. E isso assusta. E
lança dúvidas. Naturalmente, é muito mais fácil adoptar uma
postura de rejeição do que de inclusão da diferença. São muitas
as razões para isso, mas é fácil constatar que perante alguém
diferente a primeira reacção é de afastamento. Têm sido,
felizmente, muitos os esforços no sentido de promover a diferença.
E gradualmente a diferença consegue subsistir. Não tanto por ser
aceite, mas por ser tolerada. A razão disto é que a inclusão dos
que foram ficando “à margem” não faz parte do nosso modelo
social. É um apêndice, que foi necessário adoptar para conviver
com as várias diferenças: alguém que tem um qualquer problema de
saúde; que nasce com uma deficiência; que é gordo quando deveria
ser magro, baixo quando deveria ser alto, fraco quando deveria ser
forte... Ou alguém que escolhe não constituir família, ou
constitui-la de forma diferente... São muitas, muitas as situações
que vão mostrando a necessária adaptabilidade dos sistemas de
sociedade, perante a legitimidade e o direito de ser diferente sem
ser proscrito ou marginalizado por isso. E de cada vez que alguém é
maltratado por fazer ou ser diferente, regride-se no processo
civilizacional e acentua-se a necessidade, que é constante, de
promover a diferença como realmente parte da sociedade.
Evidentemente, a utopia é precisamente
esta: uma sociedade baseada num modelo social em que os indíviduos se
possam realizar plenamente como pessoas e como parte de um todo, de
acordo com a sua própria essência.
Imaginemos agora um modelo social onde
a standardização assenta na premissa base de que a sociedade se
divide entre fracos e fortes. E em que todo o modelo social cresce e
se alimenta em torno desta premissa. Imaginemos ainda que há não
uma sociedade a viver deste modelo, mas o mundo inteiro, devido não
apenas ao factor globalização, mas à força dos mercados
financeiros e das instituições ou pessoas que os controlam.
Tomemos isto como real, e teremos uma
descrição sumária, porventura simplista, ainda que verdadeira, da
nossa própria e concreta sociedade, à escala global. Ora a situação
em que vivemos, e que habitualmente chamamos de “crise”, advém
precisamente da falha deste modelo standard, seja porque os fracos se
cansaram de ser fracos, ou seja, muito provavelmente, porque os
fortes esvaziaram de tal forma os fracos, que estes já não conseguem
sustentar os fortes. Não há mais por onde. Há, portanto, aqui uma
verdadeira crise, no sentido literal da palavra: uma ruptura. Urge,
pois, repensar todo o modelo social. Não apenas o económico. Porque
uma economia não pode subsistir sem pessoas. Aliás, ela existe
para as pessoas. Correndo o risco de contradizer os economistas que
acham que os historiadores não servem para nada, aqui vai: economia:
do grego "oeconomia", que quer dizer “regras da casa”, numa
tradução mais livre. Significa isto que a economia serve para o bem
gerir da casa. Nesta vertente, a economia é uma ciência social, ou
seja, que se desenvolve e fomenta na sociedade. Se não houver
sociedade, também não há economia. E se os cientistas da economia
escutassem, ou melhor ainda, lessem, os cientistas da sociedade,
talvez se abstivessem de aberrações académicas que transformam as
pessoas em cobaias de ensaio. Outro grave problema trazido pela
crise.
(...) continua
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