quarta-feira, 8 de outubro de 2014

In memoriam

Tenho-me esforçado por encontrar a primeira memória que tenho de ti, querido Avô. São tantas, todas ligadas a momentos bons de infância, e também aos difíceis, onde te encontro sempre presente, que me vejo sem saber qual é exactamente a primeira... Talvez a minha memória ande a dar os mesmos sinais dos fios de barba brancos que tenho visto surgir. Talvez. Ou então talvez toda a minha vida seja uma memória tua e da Avó e, portanto, é difícil centrar-se numa só memória. Insiste, ainda assim, em vir-me à ideia uma imagem. Nós dois, a descer a nossa rua. Tu sempre bem-disposto, a boina ligeiramente ao lado, colónia de lavanda, uns sapatos engraxados, as calças de risca e a camisa branca de quadrados. O relógio de bolso muito bem posto no bolso. Não sei donde vínhamos. Íamos para casa e, à porta, estava o sorriso daqueles olhos verdes da minha Avó, à espera. Lembro-me de me sentir muito contente, inchado de orgulho do meu Avô. Aos meus olhos eras possante. Podias tudo; eras capaz de tudo. Parecias-me gigante, quando me apanhavas do chão e me punhas ao colo.
Lembro-me de pensar nisto muitas vezes durante a tua velhice. À medida que te via ficar cada vez mais pequeno; curvado, trôpego. Quando começaste a ter por companheiro inseparável o “castanho”, aquela bengala que tanto gostavas. Falava-te nisso e tu rias. “É mesmo assim”, dizias-me, sem qualquer mágoa ou tristeza. Aceitaste a doença, a velhice, os contratempos da vida, a perda da filha, a viuvez. Sempre levantaste a cabeça. Nunca te vi desistir. Contigo aprendi a determinação, mesmo que tantas vezes a não consiga ou saiba por em prática.
Contigo aprendi também uma grande parte do homem que hoje sou. Contigo e com a Avó. De ti aprendi o orgulho no trabalho. Estiveste sempre ao meu lado nas minhas decisões e opções, mesmo que não concordasses com elas. Foste o primeiro a dizer-me que a vida de padre não era para mim. Mas ainda assim, estiveste sempre do meu lado. Entendias que estudar não bastava: um homem que não saiba usar as mãos não é homem. E foi assim que contigo aprendi a usar um serrote; a entender uma árvore, a ajudá-la a frutificar mais, a cuidá-la; a manejar uma enxada, uma colher de pedreiro, um martelo... sei lá que mais. Contigo aprendi a satisfação de fazer coisas com o meu próprio trabalho e a orgulhar-me disso. Contigo aprendi a honra, a determinação, a força interior.
Nos últimos meses, trouxe-te o Túlio, o gato endiabrado que tu tanto estimavas e mimavas e que te arrancava gargalhadas. Guardo-as junto de tantas e boas memórias que fico de ti, querido Avô. Tive o privilégio de te ter presente na minha vida até agora. Nestes últimos tempos, foste descaindo. Tu também sentias. Foste ficando mais dependente. Foi honra minha cuidar de ti até ao fim. Velar por ti. Estar sempre presente. Atender aos teus caprichos, vontades e, sobretudo, necessidades. Uma pequenina parte do que sempre foste na minha vida: um exemplo, um refúgio, um enorme amparo mas, sobretudo, um amigo.
Vou sentir-te a falta. Não mais te verei descer a nossa rua, com o “castanho”. Não mais comentaremos as travessuras do Túlio; a política; as notícias. Não haverá conversas, a não ser em silêncio, de mim para ti. Partiste cedo demais, apesar da tua muita idade. Mas estarás sempre, até que a minha vida se acabe, junto de mim. Espero saber viver a minha vida com a mesma determinação, coragem e força interior com que viveste a tua. Descansa em paz, querido Avô.
                                                                                                                                6 de Outubro de 2014