quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Caim

Caim lançou-se sobre seu irmão Abel e matou-o.” (Gen 4, 8b)
Caim. Parece-me, cada vez mais, que estamos num país devotado à polémica. Como se tudo e todas as coisas onerassem desta dívida, e portanto, tudo aquilo que acontece tenha de lhe pagar algum tributo…
Estou muito curioso para ler Caim. Não tanto pela polémica. Lê-lo-ia apesar disso. Aprendi a apreciar Saramago. A escrita e o homem por trás dela. O génio. Levei muito tempo a reconciliar-me com ele. Sempre fui muito de ideias feitas, com tudo o que isso acarreta de prejuízo. Houve uma fase, muito militantemente católica, em que o próprio nome me enfurecia. E era estúpido. Estúpido como todos aqueles que falam sem saber. Eu nunca tinha lido nada dele. E punha-me com palpites. A vida, porém, ensinou-me a minhas custas a prudência e, sobretudo, a graça da tolerância. O respeito pelas opiniões, mesmo se diversas das minhas. Chegou-me às mãos, há uns anos, “o cão das lágrimas”. Desejei, se algum dia me vir tão desprezado que não sobre nada nem ninguém, ter ao menos um cão das lágrimas. E pensei: o cão das lágrimas não pode ter nascido de alguém tão desprezível. Não. Nasceu dum Homem. Alguém capaz de falar da natureza humana à maneira dos génios da literatura, que captam aquilo, por vezes posto aí para se ver, mas que os olhos atarefados e distraídos não vêem.
Estou muito curioso para ler o livro. Mas fiquei triste com a polémica. E, mais ainda, com a troca de galhardetes… Como se o senhor precisasse de polémicas para vender livros ou para publicidade (é fácil perder a noção dos disparates que se aventam)… Como se o senhor não tivesse direito a expressar o que pensa… A dizer no que se baseia para escrever ou lá o que for… Como se de cada vez que fala fosse uma ofensa ou estivesse no intuito de ferir alguém de morte… Não me senti ofendido enquanto católico. Todas as opiniões são válidas. Pode-se concordar ou não. Agora vir dizer que o homem é indigno de ser português; que é um vaidoso; que acha que tem o direito a dizer tudo o que lhe apetece; que procura sempre ofender a Igreja… Andar com trocas de recados entre deputados… Mas que país é este, senhores?...
A Bíblia é um catálogo de maus costumes. Sim. O Deus da Bíblia é vil. Sim sim. Muito de acordo.
Pergunta: onde é isto ofende a Igreja? Ou os católicos? Ou somos tão pouco seguros da verdade da nossa fé, que não suportamos a diversidade e a contrariedade? O problema estará no senhor Saramago, que disse o que pensa e como pensa o Deus que lê na Bíblia, ou em nós, que ouvimos? Desde quando é que a Igreja rejeita a pluralidade de opiniões? Ai, os ventos do Concílio, que se calaram… Continua só a cheirar-me a mofo e a cera de velas queimada. Ou a verdade duma coisa não é como um diamante, com muitas faces, que uns vêem duma perspectiva e outros doutra?...
Pois entendo que Saramago não ofendeu ninguém. Na verdade, até creio que disse o que disse num tom bastante desempoeirado e despretensioso. Disse o que pensa, da forma que está habituado a fazer: sem rodeios. E tem direito a achar que o Deus da Bíblia não lhe serve. Teria gostado muito de ver uma atitude esclarecedora e apaziguadora por parte da Igreja, em vez de aparecer um senhor muito ufano a fazer de porta-voz, a vir falar de jacobinismos… Até arrepia. Teria gostado que alguém dissesse: Sim. A Bíblia mostra o pior do homem. Mostra. E um Deus que se apresenta vil. Porque a Bíblia é também a história do homem e da humanidade, na sua busca de autoconhecimento e relacionamento com Deus. É a história de Deus com os Homens e a história de como se relaciona com um Povo. É um relato teológico (isto aqui diz tudo, embora não consiga expressar plenamente a força do que quero dizer) onde se relata o pior do homem no seu vício, mas também o melhor. Onde está presente a crueldade, o assassínio, o engano, a mentira, mas também o amor. E é nele que a Bíblia se sustenta. No Amor de Deus. Teria gostado tanto de ver alguém falar da forma amorosa como Deus se revela… Como Deus se dá… E a voz da Igreja a ser sinal…
Não consigo perceber por que razão se opta sempre pela polémica em vez do diálogo… Pela afronta em vez do respeito e compreensão. Não é esse o modo de Cristo? Não é assim também sequela Christi? E não é isto, senhores ofendidos, o dedo do diabo? Não está nisto a tentação última posta à Igreja? Reflexão. E oração. Muita. Antes de nos pormos para aí a fazermo-nos de ofendidos. Ainda vamos ficar todos Caim…
No relato bíblico, primeiro o homem revolta-se contra Deus. Depois uns contra os outros. É isto que teologicamente se tira do relato de Caim e Abel. Estranhamente, continuamos a matar o Abel à primeira oportunidade. E o sangue dele a clamar na terra…
Teria gostado de ver o rosto de Abel nesta história toda.
Ah… Obrigado, José Saramago.
Quanto a nós, católicos ofendidos, há tanto na Bíblia para nos surpreender, antes de atirarmos as pedras…

domingo, 11 de outubro de 2009

O Nobel

Deve ser a primeira vez que um prémio Nobel é atribuído não pela obra feita, mas pela obra ainda a fazer. Ou que se espera que alguém faça.
O Presidente Obama ganhou o Nobel da Paz. Fiquei surpreso como quase toda a gente. Mas gostei. Sim, gostei. Simpatizo com o homem. Deve ser porque ambos pomos muita força naquilo em que acreditamos. E por aquela forma de falar... Também já falei assim, noutro contexto. De forma apaixonada, a saber dizer a palavra certa no momento certo, com uma vontade imensa de acreditar e fazer acreditar. Em mim, infelizmente, passou. Já não preciso de discursar. Nem para mim mesmo. Mas olho para ele e penso: “Até que enfim”...
Gosto dele. E que lhe atribuissem um Nobel. Naturalmente, concordo que não tem obra feita. Ainda. Mas há-de ter. A nomeação foi claramente política... uma mensagem, quanto a mim muito clara... e uma esperança. Como se o mundo todo estivesse de barbas brancas, esqueleticamente apoiado em bengalas, à espera de alguém que tomasse as rédeas e as dores. Alguém inspirado. Alguém que compreendesse. Que estivesse disposto a pegar no embróglio poeirento que é o mundo diplomático e tratasse de começar a desatar. A solução de Alexandre seria prática. O problema é que nós não se deixam cortar.
Quando o vi, percebia que ia ser ele. Eu e todos os velhos de bengala. Há, no entanto, aqui, um erro de estratégia... Puseram-lhe tudo às costas. E vão vergá-lo pelo peso antes do tempo. Mas isso veremos. Agora o que há, é a esperança. Uma esperança grande que ele, animado pelo Nobel, faça o que os de barba e bengala não fizeram. Pode até ser naif. Não há salvadores ad hoc. Mas que é animador, é. Era bom que voltássemos a acreditar. Todos.

A fantasia

Irritam-me as pessoas muito cor-de-rosa. Muito cuchi-cuchi, muchi-wuchi, gugu-dadá. Pessoas que apesar de adultas vivem rodeadas de coisas de meninos e meninas pequeninos. Como se apesar da idade, continuassem agarrados à fantasia.
Ontem no expresso, no banco da frente vinha uma dessas pessoas. A falar ao telemóvel, com uma voz muito melosa e distorcida, na tentativa atabalhoada de imitar a voz de bebé...
Naturalmente que a fantasia faz parte da vida. Às vezes faz falta fantasiar. O problema da fantasia é a ilusão. O fascínio, melhor dito. Arranca-nos à realidade e não nos deixa por os pés no chão.
Pode haver quem ache graça às meninas adultas cheias de laçarotes, bonecos da Pucka, da Hello Kitty, cheias de cor-de-rosa. Mas a vida não tem laços nem bonecos, e muito menos é cor-de-rosa. Dá vontade de abaná-las com força e dizer: “Hey! Acorda! Sim, tu. Já cresceste, sabias? Olha aí o mundo à tua espera!”

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Os três mendigos

Gosto de sair de casa ao fim-de-semana. Gosto da calma. Sempre que posso, o Alentejo. Mas às vezes fico em Lisboa.
Fui ao super-mercado, numa tarde de sol. Podia ter ido à praia se tivesse companhia. Ou à esplanada. Ou passear. Podia ter ido fazer uma coisa diferente. Às vezes penso que a minha vida se acomodou numa monotonia sem sabor. Mas o super-mercado era um imperativo, ditado pelo frigorífico vazio. Segui pois o ritual de tantos solitários sem sabor, como eu, que necessitam, de vez em quando rumar a esses locais, quase peregrinamente, cheios de pessoas a empurrarem carros por entre prateleiras a olhar como se estivessem de visita a um museu e "pis" das máquinas registadoras, que nos permitem depois sobreviver durante a semana no esquema trabalho-casa-comer qualquer coisa-cama.
Não havia carros na rua. Nem muita gente. Gostei de sentir o sol. Estava quente.
Encontrei no caminho até ao super-mercado 7 pessoas e 3 carros. Um casal de chineses, atarefados à porta da sua loja, sempre aberta; um português a arrumar o porta-bagagem do seu carro, muito empertigado nas suas calças vincadas à meia canela e meia branca; um marroquino em passo apressado e três sem abrigo. Um deles carregava um enorme saco de viagem cinzento, sujo e caminhava em passo acelerado, como para chegar a qualquer lado. Outro ia devagar, num delírio murmurante, a andar para lado nenhum. Outro, mais velho, enrolado em trapos, sentado muito encolhido, olhava para a frente, sem ver nada. Os carros iam em velocidade de fim-de-semana. Não fosse os mendigos e ter-me-ia parecido uma bela tarde de sábado à tarde.
Voltei com os sacos das compras, para ouvir os diários das campanhas eleitorais. Votos, votos, votos. Uns porque o governo foi prepotente, outros porque querem mais e melhor (queremos todos), o governo porque a oposição é derrotista e pessimista. Fixei uma frase: "aquilo que realmente nos une é uma visão de futuro". Pensei nos mendigos e na visão de futuro. Pensei nos portugueses sem emprego; na "geração 500"; nos reformados. Não consigo entender a visão de futuro, a não ser que seja um tender para. Aí já me faz algum sentido... Mas não achei que o calor da campanha eleitoral fosse alimentado por considerações de natureza filosófica. Às vezes (muitas) nem política.
As eleições são uma coisa gira.
Não percebo muito de eleições. Mas tenho vindo a ganhar interesse nos últimos tempos. Talvez seja sinal de maturidade. Talvez seja sinal da inconformidade. Ou da indómita vontade de sempre querer melhor, de nunca estar satisfeito, tão própria do ser humano. E de querer mudar e de fazer, em vez de continuar a ver só falar e falar e falar... Ou talvez seja só sinal de cansaço. E de não poder continuar indiferente, como se fosse espectador num mundo paralelo enquanto o país e o mundo se corroem e se gastam. E eu impassível, a ver os chineses, o português de calça à meia canela e o marroquino. E os mendigos. O que pensarão os mendigos da visão de futuro? O que pensarão os mendigos do futuro. Em si mesmo. Lembrei-me do Almada: "até hoje fui sempre futuro". E amanhã?
São giras, as eleições. Este ano, com tantas, há muito sobre o que escrever. Embora também não haja muito a dizer.
Dei-me conta que toda a gente ganhou. Foi o grande ensinamento: numas eleições, pensava eu, uns perdem e outros ganham. Mas nesta coisa dos partidos não. Nos partidos todos ganham. Ainda assim, uns mais do que outros. O partido do Governo ganhou um segundo mandato. Os partidos da oposição ganharam, porque o partido do Governo perdeu a maioria absoluta; porque conseguiram mais deputados; porque chegaram aos dois dígitos... Todos ganhadores para melhor servir. Ver-se-á, no decorrer da legislatura o que foi que ganharam realmente. E o que ganhámos nós, realmente. O português da meia branca e os mendigos. E todos os outros que agora povoam o nosso canto. Vindos de todos os lados. E por cá se fazem e por cá ficam. Uns de meia branca. Esperemos que não mais mendigos a olhar para lado nenhum.
O que precisamos é visão de futuro. Mas não utópico. Futuro a fazer-se hoje. E esse não vai lá com visões. Só com trabalho. E seriedade.Vi que todos ganharam. Mas pode haver alguma coisa onde todos ganhem? Se os partidos ganharam todos, então, quem perdeu?