segunda-feira, 24 de agosto de 2009

As birras

Tenho um placard de cortiça no meu quarto. Nele vou afixando aquilo de que não me quero esquecer, as coisas engraçadas, as importantes… Nele afixei, há já que tempos, um pacote vazio de açúcar, onde se lê: “Um dia ponho a mochila às costas e vou conhecer o mundo”.
De vez em quando vejo-me peregrino, mesmo sem mochila.
Ou então um mochileiro de sandálias, caminho fora, em demanda.
No fundo, somos todos um bocadinho assim. Na vida, sempre se busca qualquer coisa. Há sempre um caminho qualquer que ainda não percorremos.
Gostava de um dia, sem olhar para trás, ir mundo fora.
Dei-me conta que o passar dos anos dá-nos mais do que idade. Traz amarras. Algumas doem, seja porque nos peam, seja porque se mantém inexoráveis, e não nos deixam ver mais além. Nem de nós próprios, nem para além delas.
Ir mundo fora sem olhar para trás deve doer. Deve não. Dói. Já me fui embora de muitos mundos.
Mas estou animado. Soube que uns cientistas britânicos fizeram um estudo sobre a dor. Descobriram que dizer palavrões alivia a dor e ajuda a resistir-lhe. Segundo o estudo, as pessoas que se voluntariaram para esta experiência resistiram em média mais quarenta segundos à dor de ter a mão dentro de água gelada a dizer asneiras do que aquelas que teceram considerações acerca de uma mesa… A mim, parece-me óbvio. Mas não sou cientista, nem percebo nada daquelas intricadas medições e infindáveis conjecturas que permitem no fim estas conclusões. Portanto, esta descoberta trouxe-me novo ânimo, para me por à aventura. Ir mundo fora, a dizer um chorrilho de disparates, na esperança que desfaça a dor de partir. Se bem que a partida não tenha de ser sempre dolorosa. Também já parti para me libertar. E é assim que eu quero ir conhecer o mundo. Com o sol a dar-me na cara, e o vento a dizer-me que tenho tudo à espera. Sem arrependimentos.
Por cá também está tudo à espera. Estamos na silly season, e agora nada acontece. Férias. Nem que desabe o mundo. Se doer, sempre se pode dizer umas asneiras, e esperar pela reentré, que já por aí anda.
Nos últimos dias tenho confirmado que percebo mesmo muito pouco de política. Tenho lido nos jornais várias notícias que dão conta de muita gente maldisposta, por causa dos lugares que lhes calharam nas listas eleitorais. Parece que é importante esta coisa dos lugares… E faz sentido, uma vez que, como é fácil perceber, há mais candidatos que lugares. E importa, naturalmente, que calhe um lugar elegível… Já agora…
O que já não me é tão fácil perceber é a razão desta corrida e destas birras eleitorais. Vejo que, afinal, á muita gente disposta a servir a causa pública. A ponto de fazer birra. E de achar que não está a ter a atenção que merece por parte do partido. Há qualquer coisa aqui que está mal.
Servir é, em grande medida, pôr-se a si próprio à disposição. Ora, isto implica humildade, que é uma qualidade pouco apreciada, porque muitas vezes confundida com deixar-se espezinhar… E comporta também um certo zelo, um brio… E uma disponibilidade, claro está. Vejo nos nossos candidatos quase todas estas coisas. Vejo o zelo e o brio. Só não vejo a humildade. Vejo egos feridos. Não vejo que a vontade de servir seja assim tão altruísta. E tenho pena em dizê-lo. Que causa será, na verdade verdadinha, que as pessoas querem servir?... Desde quando é que podemos levar a sério pessoas que fazem birras porque o lugar que o partido lhe deu nas listas não era o que esperavam?... E o partido, com que fito joga com os lugares, de modo a agradar mais ou a conseguir mais votos?... O objectivo do partido, é governar para servir ou conseguir votos? E ganhar com as pessoas certas ou com as pessoas que agradam?... Há qualquer coisa aqui que está mal. Muito mal e muitas coisas… Cheira tudo tão a mofo, tão a panelinha… tão a dejá vu
Claro, não se governa sem votos. E, portanto, visto que eleições não faltam este ano, está quase a abrir a época de caça aos votos. Vamos ouvir as mesmas coisas, ditas pelas mesmas pessoas, ditas já tantas vezes, mas cada um à sua maneira, como se fosse uma completa e nunca pensada novidade. No placard do meu quarto vou pendurar manifestos e programas eleitorais. Não há grande vantagem em tentar compará-los ou tentar perceber o que sugerem de verdadeiramente importante e benéfico. Ficarei, muito provavelmente, exactamente na mesma, como estou agora. Desencantado.
Seria bom que alguém, lá nos meandros do poder, levantasse o dedo, um dia, como que acordando e dissesse: “Isto não está a funcionar assim. Não presta!”
Não presta porque não serve. Servir, senhores. Servir mais que o umbigo.
Não vai acontecer. Há muitos umbigos expectantes. E muita gente de birra.
Continuo a querer ir mundo fora, sem amarras. Mas penso que não irei sózinho. Agora já sabemos que podemos gritar asneiras ao vento e isso torna-nos mais capazes de resistir à dor. Para uns, a de partir, para outros a de cotovelo. Para outros ainda a dor do ego ferido. É provável que veja muitos, caminho fora, aos berros. Já vejo, aliás. Verei mais, na campanha eleitoral, por entre mercados e festas, a berrar a plenos pulmões coisas sem nexo e sem conteúdo. Pura vox. Percebo mesmo muito pouco de política. Ao menos que aliviem as dores. E que eu consiga ir para longe deles. E conseguir ainda encantar-me pelo mundo.
Abençoado estudo.

domingo, 23 de agosto de 2009

O grilo

Havia um grilo na Gare do Oriente. Hoje não o ouvi. Mas durante uma semana, lá esteve, sempre a cantar. Nunca o vi. Seria giro ver a cara das pessoas se me vissem andar à procura dum grilo por ali… Mas não. Só o ouvi cantar, todos os dias, ao subir do metro ou sair do autocarro.
Regressei há pouco de férias, e o grilo encheu-me os ouvidos do mesmo som que todas as fins de tarde e noites me fizeram companhia. Melancolia. Senti falta dos grilos, dos cheiros. Da brisa balsâmica da tarde, depois do dia cálido.
Fiquei a pensar no grilo solitário. No som ininterrupto de chamamento por companhia. Nele, um imperativo da natureza. Por isso não o poderia calar. Na verdade, nós também não… Passamos a vida a tentar mitigar a solidão. Pode estar-se rodeado de gente e ainda assim na mais completa solidão… Sem uma mão amiga ou uma palavra de consolo ou sem alguém que entenda, mesmo sem nunca o dizer.
Voltei às lembranças de infância, como no gafanhoto. Juntei-lhe umas novas. Há dias, alguém me perguntou: “isto são grilos a cantar?”. “Não”, respondi, “são cigarras”. Eram cigarras. Deu-me vontade de rir, mais pela inocência da pergunta do que outra coisa. Confundir cigarras e grilos é possível, sobretudo quando se nasceu na cidade. E pus-me a pensar que tenho muitas vezes confundido cigarras com grilos. Que penso que ouço grilos, e são cigarras. A vida, mesmo quando a achamos injusta ou não gostamos da forma como ela nos trata ou nos corre, não pára de nos surpreender. E de nos ensinar. A mim ensinou-me que apesar de adulto, o caminho não está feito. Faz-se a caminhar, e ás vezes esqueço-me disso. E que as pessoas podem ser sempre um desencanto. E isto gostava que não me tivesse lembrado. O desencanto por alguém é mais triste que o canto solitário do grilo. E também não se cala.