segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

O esqueleto cantante e os beijos à porta

      Há qualquer coisa de extraordinário no espaço confinado de um autocarro, com cinquenta pessoas (mais coisa, menos coisa), com cinquenta histórias (mais coisa, menos coisa) diferentes. Para um solitário, que escreve, é importante ver pessoas, seja no autocarro, no metro, nas ruas... tomar parte nesses banhos de realidade concreta diária, como espectador atento da realidade humana, afastando-me da contemplação solitária imanente da minha vida. De outro modo, sobre o que escreveria? Sobre a beleza das folhas que caem, ou da brisa gélida e elegante que molda o inverno?... Pois sim, isso é belo. Mas só há um tanto sobre o que se pode escrever acerca de folhas caídas ou brisas gélidas. Depois esgota-se. E, além disso, que posso eu escrever que acrescente novidade a odes preciosas já escritas, sobre folhas caídas ou brisas de inverno, quando tantos, com tanta mestria, já o escreveram. Poderia certamente reinventá-lo, pois escrever também é isso. Mas só há um tanto sobre o que pode ser escrito acerca dessas coisas. Não... Preciso da paleta humana. Desses banhos de realidade concreta que me fazem pensar e humildemente esperar que as palavras queiram ser escritas. Portanto, não há melhor maneira do que meter-me pelas ruas fora, mais ainda nesta época de correrias desatentas, mas naturais, porque reflexo do mais puro alheamento do humano, ou simplesmente entrar num autocarro ou no metro.
Atrás de mim uma rapariga lamentava-se ao telefone, numa típica crise do fim da adolescência, falando como se estivesse sozinha com a amiga interlocutora com quem desabafava, no recato duma sala ou dum quarto, dos desamores frustados de uma investida de um “amigo” que, depois de uma noite de copos sugeriu saírem da discoteca para irem para outra zona de bares e que, cá fora, a tentou beijar. Ela não quis. Parece que ainda estava magoada doutra experiência atrasada. E voltou a fugir para a discoteca, gorando as expectativas do amigo, a quem ela insistia em dar o nome, ante aquele auditório de cinquenta pessoas, mais coisa, menos coisa. Claro, talvez nem todos estivessem atentos ou sequer interessados. Olhei em redor: nas imediações do meu assento, que era o auditório mais próximo desta conversa, todos olhavam compenetradamente para o ecrán do smartphone. Uns bancos mais à frente, viam um filme no portátil. Todos perfeitamente alheados. Lembrei-me imediatamente do “Pensatório”, do Harry Potter, onde as pessoas mergulham (literalmente) nas suas memórias (ou de outros, desde que metidas em convenientes frasquinhos), deixando para trás – mesmo que por momentos – a realidade concreta. A seguir, outra chamada, para comentar o episódio de choro na aula duma colega, a braços com um luto. Percebi perfeitamente. Há assuntos que, num processo de luto, despoletam marés de emoções. A professora também se comoveu, ela própria em luto. Rapidamente tudo chorava e se descontrolou a aula, que acabou mais cedo. Depois disto, o mesmo episódio da discoteca e da tentativa de beijos do amigo, que ela acabou por encontrar no dia seguinte e fez de conta que não viu. Foi melhor assim. “Não estás bem a sentir, estou mesmo mal”. Se pela noitada, pela ressaca e falta de dormir, se pelo beijo frustrado (que ela queria mas não queria), acabei por não perceber. Mais tarde, nova conversa, com a amiga enlutada,
“então, como estás?”

“Claro... E já não vais sair, ficas por casa? Pois, fazes bem”. Novamente a história do amigo e do beijo. “Mas se precisares da alguma coisa liga, sim?”
No espaço duma viagem, a história da noitada, da tentativa de beijo do amigo, da sua fuga de volta para a aparente segurança na discoteca e as aulas do dia seguinte foi contada e recontada. Como se estivesse sozinha com a(s) interlocutora(s) no espaço recatado dum quarto ou duma sala, ou até duma discreta mesa de café onde se pode falar sossegadamente... Também há qualquer coisa de extraordinário no espaço duma mesa de café, como se houvesse ali uma pequena redoma que nos encerra num mundo. E foi natural, como se não estivessem ali cinquenta pessoas, mais coisa, menos coisa. Como se estivesse sozinha. Ou então, talvez estivesse, apenas com os meus indiscretos ouvidos, e todos os outros mergulhados nas suas redomas de ecrán brilhante.
Fiquei a pensar como seria a vida daquela estudante universitária e como espelhará a vida de todos os estudantes universitários. Fiquei a pensar como se pode viver a vida tão despreocupadamente, sem ter noção do real e concreto valor das coisas, reduzindo o final da adolescência, o início da idade adulta e a experiência da faculdade a noitadas, copos e tentativas de beijos. E em como, a seguir a isso se vai para as aulas... Depois considerei que nós, adultos, vivemos a nossa vida igualmente despreocupados, olhando para “pensatórios” de alheamento da realidade concreta. Jamais entenderei a necessidade de noitadas e copos. Ainda menos o considerar-se isso divertimento. Mas também não consigo entender completamente a necessidade de constantemente nos alhearmos da realidade e deixarmos os nossos smartphones governar a nossa vida.
Se bem que, às vezes, é necessário um tanto de alheamento. Como de folhas caídas e brisas gélidas.
Apesar da proximidade do Natal, o sol nas ruas é agradável. Quase que se podem dispensar os casacos pesadões, as luvas, cachecóis e gorros. Pelo menos durante o dia. Passeando despreocupadamente, atento nas pessoas, em correria, sempre, nas decorações de natal, nas montras, na música nas ruas... Que bom o anonimato de passear despreocupadamente nas ruas cheias e , apesar disso, sem ninguém conhecido. Este pequeno conforto que só cidades grandes podem dar. Fui passando de rua em rua, admirando mais as decorações que as gentes, até deparar com os habituais grupos que se juntam em torno dos artistas de rua. Alguém fazia pinturas estranhas com sprays de cheiros também estranhos e combinações ainda mais esquisitas. Sentado no chão, uma roda de admiradores ia crescendo à medida que as pessoas passavam, muitas apenas curiosas, como eu, outras ficando um bocadinho, na admiração daquela arte de manchas psicadélicas, mais coisa, menos coisa. Não faço ideia se isso se iria traduzir em dinheiro na caixa despreocupadamente pousada ao lado, mas garantidamente debaixo de olho. Mais abaixo, uma figura envolta num lençol azul petróleo pairava no ar, sem nada de aparente que a sustentasse, para deleite dos passeantes. Noutra rua, um performer, já de certa idade, dava vida a um esqueleto cantante, que abria e fechava as mandíbulas ao som duma música barulhenta, encetando uma dança desengonçada, tal qual a sua própria condição de esqueleto, ainda que animado por cordéis.
A necessidade duma cadeira aliou-se à vontade duma bebida quente, o que me fez entrar numa cafeteria, de conceito demasiado americano para conseguirmos compreender tudo aquilo que se elenca nos preçários. Ainda assim, um espaço razoavelmente agradável, onde estar sozinho não parece estranho a ninguém, porque ninguém sequer repara, e se estivermos dispostos a abstrair-nos do corropio circundante. Um chocolate quente com uma nota de avelãs, desfigurado por natas de uma lata, que já não consegui impedir a tempo, e que o fez ficar enjoativo. Embora me tenha perguntado, e eu tenha dito um mecânico “sim”, antes mesmo de perceber exactamente o que me perguntava, por tão absorto na observação do ritual que aquela cafetaria implica.
“Obrigado... já chega”,
disse eu,
ante a surpresa do funcionário, que ainda mal tinha esguichado a lata. Os guardanapos muito bem arrumados numa mesa à parte; noutro compartimento, finas espátulas de madeira para se agitarem as bebidas... E ali toda a gente vem, enquanto se aguarda que nos chamem pelo nome – uma americanice possidónia que toda a gente parece achar normal – e nos entreguem copos com os nossos nomes escritos. É fácil ver quem são os solitários, os desajustados, os turistas, os nacionais, os geeks, os nerds, os populares, com um séquito de admiradores que se inebriam da luz que deles se desprende... Ali, todos os nichos entram, sem se misturarem, ainda no estrito cumprimento daquele ritual. Como noutros sítios, naturalmente. Mas ali tudo se faz num hino de louvor à marca, presente em todos os cantos e em todas as coisas, auto-elogiando-se a si própria em pequenos textos e constatação de feitos, num verdadeiro culto de si mesma: prémios disto e daquilo; metas alcançadas; x milhões de tal; x percentagem de reciclagem; tantas árvores salvas...
Lá fora a música de natal continuava ininterrupta. Levantou-se um vento gelado, próprio do fim dos dias no inverno. O esqueleto cantante já tinha desaparecido. A multidão nas ruas era mais fluída à medida que o sol desaparecia e ficava frio. As decorações de natal impuseram também o seu ritual próprio de festa. Há qualquer coisa de igualmente extraordinário nas decorações de natal e no seu ritual.
Na viagem de regresso, entretive-me no deslumbramento duma figura extraordinária. Não sei se o era, realmente, ou se simplesmente a mim me parecia que fosse, na solidão que escolhi para viver. A solidão também ela pode ser extraordinária, sobretudo quando se escolhe e não é imposta. Da rapariga dos beijos roubados, nem rasto. Esse encontro fortuito, porventura irrepetível, foi revelador dum universo paralelo ao meu, e que eu jamais entenderei ou pertencerei. É de igual modo extraordinário como as nossas escolhas de vida definem o nosso próprio universo e moldam a nossa existência, mais coisa, menos coisa. Apercebemo-nos disso em pormenores pequenos, que se estivermos desatentos, não damos por eles. Surgem em pequenas redomas extraordinárias da existência.
Acordei desse torpor para voltar ao conforto da vida que me é familiar. Enfim em casa, sem auditórios indiscretos. Mesmo que seja o do confinamento dum autocarro, ou duma pequena mesinha de café. Lá fora o vento é gélido e as folhas das árvores, já quase nuas, são sopradas com certa inclemência, própria do tempo. Está bem assim, tudo no seu tempo. O frio, o gelo, as folhas caídas, os beijos roubados à porta duma discoteca.
Feliz Natal.