segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Dos pobres

Tenho andado aborrecido da escrita. Há tanto para escrever... Se ao menos os meus dedos se movessem à velocidade com que as palavras me chegam... Na minha mente, tudo está escrito. Olho para o papel e vejo-o já preenchido de tanto que quero e preciso escrever... Mas não tenho escrito. E quanto menos escrevo mais me aborreço, caindo num ciclo vicioso de angústia, porque a escrita se me apresenta como um imperativo e a consciência atormenta-me porque não ligo às palavras. Eu, mero veículo instruído delas, servidor apenas da vontade delas de serem escritas, capacitado somente para lhes dar sentido e conexão e sintaxe e forma... E, portanto, como as não escrevo, elas não se fraseiam. Ainda que para mim estejam escritas.
Alguém me disse que era mesmo assim, que era normal passar períodos sem escrever. Eu respondi que não, que não era mesmo nada normal, porque sentia como a escrita me impelia a escrevê-la e não podia, porque me aborrecia escrever. É assim que tem sido. Quero e não posso. Como em tanto na vida.
Hoje, por casualidade, como quase sempre me acontece com as coisas verdadeiramente importantes de serem escritas, tomei conhecimento de realidades inquietantes. Aterradoras mesmo, quando as tomamos como certas e reflectimos nelas. Um em cada cinco portugueses é pobre. Primeiro não tomei muita atenção. Depois li outra vez. Um em cada cinco. Sim, reflectir... Não fosse a estatística ser uma coisa de números, construída de médias e cálculos avultadíssimos, diria que, à vista disto, é impossível que cada um de nós não conheça um pobre. Claro, é fácil rebater isto, porque uma franja da sociedade não conhece nenhum pobre. Aliás, é profundamente desconhecedor desta realidade, nem sequer do conceito, quanto mais da realidade de um pobre (veja-se, v.g., o último post que aqui escrevi acerca das realidades da Comporta e outras similares). Acresce a isto que a pobreza entre nós já não é apenas estrutural (que coisa ridícula de se chamar à pobreza, mas parece que é assim que se designa nas coisas sérias que se escrevem. Aqui limito-me a tentar, por via da osmose, que essa seriedade de termos se pegue a estas minhas deambulações), ou seja, que a pobreza já não é apenas de excluídos, desamparados, sem-abrigo, toxicodependentes e de todos os grupos que nos habituámos a catalogar nesta realidade. A pobreza, hoje, que faz de Portugal um País de (muitos) pobres é a pobreza da ex-classe média (serei o único a achar que o início deste colapso em que estamos foi precisamente quando nos pusémos com esta coisa de dividir as pessoas em classes?...). Pessoas que já tiveram uma vida estável, confortável, desafogada até e hoje não têm nada. Houve falências, houve divórcios, houve desemprego, houve dívidas, houve cartões de créditos em cima de cartões crédito, houve o comprar de um sonho ludibriado, vendido anos a fio, ilusório, assente em erros graves de bom-senso e da mais elementar economia... Ou então pessoas ainda com emprego, altamente qualificadas, que ganham na ordem dos 400/600 euros mensais e que não conseguem pagar renda de casa, alimentação, despesas com filhos. E passam fome. Um em cada cinco. Parece também que os dois milhões de portugueses que mais ganham têm em Portugal, auferem 7 vezes mais do que os restantes. Não quero sequer pensar se esta conta fosse feita para os cem mil mais ricos, por exemplo... Ou para os dez mil... O argumento de que os ricos não têm culpa de serem ricos tem tanto de estúpido como de demagógico. Como não sou nem uma coisa nem outra, escuso-me de aqui comentar a questão da riqueza. É evidente que não têm culpa de serem ricos (a não ser em certas circunstâncias, morais primeiro e judiciais depois). Mas eu não quero escrever sobre a riqueza. Quero escrever sobre a pobreza.
Portugal é o País da União(?) Europeia onde o fosso entre ricos e pobres é mais acentuado. Sempre foi, na verdade. Basta algum conhecimento histórico para poder dizer isto sem grande dificuldade. Portugal foi sempre um País de muito poucos ricos e muitíssimos pobres. Houve alturas em que essa diferença se esbateu, pelo menos superficialmente, outras, como agora, em que ela se acentua. A pobreza sempre esteve na realidade portuguesa. E na minha vida também. Nasci pobre, com pais pobres e avós pobres. Nunca me incomodou, porque esse contacto sempre me ajudou a estabelecer prioridades e a olhar para a vida com uma certa frugalidade. Tive também contacto com o fausto. Desejei-o. Gostava de poder dizer que esse contacto com a pobreza me preparou para a vida. Não é verdade, porque quando nos sentimos privados de algo, aspiramos a tê-lo. E isso, embora não seja um mal em si mesmo, no que toca ao facilistismo da sociedade que temos, pode ser fatal. Esse é o drama da pobreza. Ao pensar nisto, voltei a lembrar-me da senhora com sacos de plástico nos pés a servir de sapatos; da velhinha cega a cantarolar com uma voz rouca e triste, sentada num banco à frente dum grande edifício luxuoso na Baixa de Lisboa; da mulher encostada a uma parede na estação de metro, sem dizer nada e apenas com uma caixinha desbotoada na mão estendida; do Rui que escondia a cara no colo da mãe por vergonha da fome... de outros Ruis e Marias e Joões e Antónios e Andreias espalhadas por esse País, que acompanham os pais, eles próprios desenquadrados e sem saber muito bem como esconder a vergonha, nas filas para a sopa... Todas cenas muito reais e verdadeiras da minha experiência de vida. E da vida do nosso País. Cruzei-me com todos. E penso neles... E em como poderia estar eu também numa fila à espera da sopa, ou no metro de caixa estendida... Todas aquelas pessoas já tiveram outra vida. Um em cada cinco anda de caixa estendida, de rosto escondido pela vergonha, corpo arqueado pela fome em filas à espera. Enquanto escrevo, lembrei-me também do fulano que vi na televisão, já há anos, entrevistado porque a casa dele era uma espécie de gruta perto da Boca do Inferno. Queria fazer-se um retrato da pobreza (estrutural essa?) às portas da Capital. Como se dentro dela não gritasse a pobreza em todas as ruas... A certa altura, perguntaram-lhe: “Então e amanhã?. Ele riu-se, numa boca sem dentes, e respondeu: “Amanhã, o mesmo que hoje. Nada”. E ficou-se com aquilo.
Um cada cinco, nada.
E só isto importa. Sim, apenas isto. Quero e não posso. Quero gritar que parem. Que andem pelas ruas. Que vejam três gerações perdidas: dos avós, que quiseram uma vida melhor para os filhos; dos filhos que quiserem uma vida ainda melhor para os seus próprios filhos e dos filhos, educados, diplomados, preparados e agora desempregados, desamparados e pobres. E com eles os pais e os avós, despejados de qualquer remedeio, de toda a poupança e, sobretudo, de toda a esperança. Um País não se quebra pela falta dinheiro. Quebra-se pela falta de esperança. Um em cada cinco. É isto que importa.
Não há quem se levante?

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

As melgas, a Comporta e a Manta Rota

De entre as hordas de insectos e criaturas várias que assolam este mundo, e que muito embora tenham o seu papel bem definido na complexidade da Natureza, ainda que pareçam existir somente para nos aborrecer, não haverá porventura uma que seja mais chata e aborrecida e inconveniente e nefasta do que a melga. E se uma melga tem o verdadeiro poder de tirar a paciência a um santo, o que fará uma quantidade delas, atacando em bando incautos e despreocupados transeuntes. Parece ter sido este o fenómeno mais marcante do verão. Uma verdadeira calamidade, a forma como as melgas enxamearam (enxameam?) as pessoas. Foi-o seguramente para a vítimas, perseguidas impiedosamente por essas sanguinárias criaturas. Felizmente foi um problema contido. Não se estendeu de norte a sul. Ficou ali por Loulé ou coisa que o valha, para grande lamento de quem lá decidiu ir a banhos ou de quem queria ver mitigada a magreza dos seus negócios. Não prejudicou, felizmente, as férias na Manta Rota ou outras de similar importância, nem tão pouco interferiu nas brincadeiras na Comporta, onde a moda parece ser brincar aos pobrezinhos. Seria, na verdade, trágico que houvesse melgas, uma que fosse, que achasse bem ir imiscuir-se nesses campos de férias. Não seria de bon ton, ali onde as pessoas se entretiveram com banhos e tardes preguiçosas, idas ao mercado, sestas em telheiros ou em casinhas de telhados de colmo e coisas assim. Melgas não. Mosquitos, infelizmente, parece que houve. Nada é perfeito, nem no mundo hippie-chique.
Foi divertido podermos ter estes episódios para nos divertir durante a silly season. Para nos distrair da nossa vida, dos problemas, das avaliações da Troika, do segundo resgate, do conflito na Síria, do País a arder, da morte dos bombeiros... De tudo aquilo que parece ficar suspenso da existência durante estes diazinhos.
Setembro, porém, faz-nos entrar em choque com a realidade. Seria óptimo podermos continuar entretidos com o conjunto de disparates que encheu os noticiários de agosto. Até os comentadores se viram na necessidade de fazer longos tratados acerca dos inconvenientes das melgas; das férias dos membros do governo; dos lapsus linguae das madames na Comporta ou das extravagâncias de certas festas de aniversário e subsequente entrevista em horário nobre. Tudo da maior importância, como facilmente se percebe. Mas não, não pode ser. Setembro mal começou e já só se fala da iminência da guerra na Síria, que pode muito bem ser o rastilho para uma coisa de maior monta, mas para o qual ninguém parece importar-se muito; das avaliações da Troika, que ninguém sabe muito bem o que chegam a ser; do segundo resgate, mais do que provável; da desgraça e do rasto de morte e sacrifício dos bombeiros; de tantos outros episódios que não cabem aqui.
Ah, que saudades das tardes preguiçosas de agosto, onde parece não chegar a mundanidade. Parece que foi à muito tempo... Setembro tem esta característica de nos trazer de volta à vida de todos os dias. Sem direito a mais episódios revigorantes nas estâncias balneares. Já se consegue sentir a azáfama das escolas, lentamente a retomar o ritmo, enquanto os pais fazem contas. Já se retoma a lida de todos os dias, levantar e ir para o emprego e correr, para depois regressar à tarde ou à noite, para no dia seguinte voltar ao mesmo. Até os campos, cansados do calor, querem já umas gotas de chuva. E a noite é já mais quieta, mais silenciosa, à espera da queda das folhas, de passos miudinhos na chuva, da brisa mais fresca...
Uma coisa nos pode confortar: não poderemos, porventura, entreter-nos mais em brincadeiras. Isso decerto que não. Aliás, parece-me que andamos a brincar à muito tempo, não apenas no verão. Não pode mesmo ser mais. Mas as melgas hão-de começar a desaparecer. Resta saber até quando.

sexta-feira, 26 de julho de 2013

Cavaleiros da Triste Figura

Dou por mim a pensar porque será que é tão difícil reconhecer que a razão pela qual estamos permanentemente em “crise” é apenas porque os modelos em que nos baseamos estão gastos. O modelo económico, social, financeiro e julgo mesmo que até político, pura e simplesmente chegaram ao limite do que podem oferecer. Não respondem mais.
Para mim isto é evidente. Salta à vista, com a mesma facilidade com que o sol se põe ou levanta; com que as marés se alternam ou as estações se sucedem. Por que razão então é tão difícil abandonar estes sistemas gastos e vazios de opções e respostas e procurar outros?
A resposta é simples também: não só não há outros que presentemente sejam viáveis e realmente capazes de novos rumos (pelo menos ainda não experimentados ou que em algum momento ou lugar tenham já falhado), como estes continuam, apesar de falidos, a servir determinados interesses. Quando assim é, à resistência natural à mudança, alia-se um certo desnorte, num espectáculo sôfrego de tentar, a todo o custo, suster o impossível. Penso nisto e vem-me logo à ideia aquela conhecida frase de Churchill sobre a democracia ser o pior dos regimes, exceptuando todos os outros...
Receio bem ser este o espectáculo a assistimos. Não é apenas uma crise económica ou financeira ou todas estas e mais social. É a falência da sociedade como um todo, enquanto estrutura organizada e baseada em determinados modelos. A razão pela qual penso isto não é por ser mais clarividente que as cabeças iluminadas que nos governam, dotadas de uma extraordinária incapacidade para verem além de si mesmos e dos seus próprios interesses. É tão só por ser evidente. E porque a ausência de simpatias políticas me permite pensar e, sobretudo, dizer ou escrever sem medo ou sem qualquer outra sanção que não seja aquela da minha própria consciência aquilo que realmente penso.
Poderíamos tentar fazer o exercício intelectual (intelectual apenas, uma vez que a questão não interessa realmente a quem tem neste campo responsabilidades. Terá qualquer coisa a ver com as vantagens do status quo...) de tentar perceber de onde vem esta crise, quer dizer, esta ruptura. De onde nasceu esta falência. Porque razão se esgotaram os modelos que têm guiado, orientado e moldado a sociedade?
Serão, por certo, diversas as respostas ou as opiniões sobre o assunto. A minha é a de que a razão de tudo isto é de fundo, de fundamentos mesmo, e tem a ver com os valores. Ou com a falta deles. Tudo isto que vemos, como espectadores mais ou menos interessados ou então como actores na história que se está a fazer diante de nós, radica na mudança civilizacional que levou à extinção ou ao não reconhecimento de certos valores, que atá há bem pouco tempo guiavam e norteavam a vida em sociedade.
Aceito que esta explicação não seja clara. Mas estou absolutamente convencido dela. Que não seja claro de que modo os valores se relacionam com a enfadonha medianidade no campo político; com o crescendo de problemas sociais; com a crise económica; com o facto de na política ser mais importante a reacção dos mercados financeiros do que a vida das pessoas concretas; com a indescritível incapacidade de afirmação dos líderes; com a escassez de cabeças verdadeiramente pensantes, não devedoras de vénias a interesses; enfim, com a estúpida insensatez com que somos governados e nos deixamos governar.
Os valores funcionam como uma espécie de grelha. Uma trama onde assenta o fio que tece o tecido social. Sempre que se deixa de considerar ou se rejeita um determinado valor é absolutamente necessário substitui-lo por outro, sob pena de se desmoronar o tecido social. Ora o que acontece, nesta nossa Era do Vazio é precisamente o esvaziamento de valores, sem que outros tomem o seu lugar. Aparentemente, nada daqui decorre que possa de algum modo fazer colapsar a sociedade em que vivemos. Mas da mesma forma que é impossível tecer algo sem a trama, também um modelo social não consegue subsistir sem valores de fundo. A questão não é que se tenham deixado de considerar válidos ou actuais determinados valores. A questão é que se deixaram de levar em conta esses valores sem que outros tomassem o seu lugar. Resulta daqui um grave deficit ético, sem que haja uma régua de valores a nortear a vida e o comportamento social. Não quero fazer juízos de valor sobre os valores que estão em falta. Para mim serão mais importantes ou fundamentais certos valores. Para outras pessoas, talvez outros. A questão de fundo é mesmo a falta deles. As consequências desta deturpação do tecido social estão à vista. Foram subreptícias, lentas e nada sonantes. Foram-se fazendo sentir aos poucos, e continua a ser necessário estar atento e preocupado para as ver. Mas é essencial, vital mesmo, que se tome novo rumo. Que se aceite a falência destes modelos agora em vigor, procurando outros, mais robustos do ponto de vista ético-moral, de modo que a vida das pessoas possa encontrar o tecido para se realizar. Convençamos-nos disto: sem pessoas, não há sociedade. O mesmo é dizer que aniquilar o indivíduo, sacrificando-o a modelos falidos de modo a espremer qualquer réstia de vida lucrativa que ainda possam conter para alimentar a máquina que bombeia esses modelos, levará inevitavelmente ao aniquilamento da sociedade. Estará, então, aberto o caminho ao desastre não apenas económico-social, mas à destruição mesmo. Se nada for feito para inverter este caminho, ouviremos doravante falar mais em guerra... Uma guerra nasce de uma de duas coisas: da procura de realização de certos interesses (pessoais, políticos, raciais, económicos...) ou então da falência dos modelos sociais sem outros tomem o seu lugar atempadamente.
Por cá, ainda não atingimos esta maturidade de pensamento. Pelo menos não aparenta haver. Mas faria falta que ela chegasse. Continuamos entretidos entre seasons. A silly season permite, enfim, depois da maçada e do aborrecimento nulo que se tornou a cena política, um descanso na praia, para quem pode evidentemente. Os restantes, como reais despojados de guerra ou então como vítimas colaterais dos jogos de quem governa, limitam-se a dar graça por estar vivos. Entretêm-se a olhar boquiabertos para estes Cavaleiros da Triste Figura, mais ou menos embrenhados nos seus gigantes de moinhos de vento, completamente ignaros do estado do País e da vida das pessoas (essas que são o tecido da sociedade e que, em teoria, representam, governando em seu nome e não em nome deles próprios); perfeitamente desconhecedores de como se faz para comer todos os dias quando falta o trabalho e não há fontes de rendimento em famílias inteiras, marcadas pelo desemprego, pela fome, pelo estigma e pela vergonha; inteiramente alheados da realidade concreta que os rodeia, ou então fazendo esforços por ignorar essas evidentes evidências, fazendo aqui e ali pequenas alterações ou publicando um outro despacho ou regulamento ou portaria, que permita evitar o aborrecimento que é a contestação. Na verdade, estes Paladinos da Triste Figura sentem-se injustiçados. Consideram que lhe falta a justa e devida bajulação do Povo, essa coisa amorfa, sem rosto, que na verdade não existe, a não ser em época de eleições. A essa enorme massa (as pessoas) resta-lhes, na verdade, entreterem-se com as nulidades vazias debitadas pela TV, cumprindo verdadeiramente o seu papel, na medida em que, em vez de iluminar mentes as estupidifíca, com o genérico aplauso tanto dos Cavaleiros como das pessoas governadas. Bem certo é que não há nada que seja mais assustador para a Cavalaria da Triste Figura do que a cultura e o papel que ela tem nas mentes das pessoas. Pudéssemos nós regalarmo-nos com idas às Selvagens a ver cagarras e anilhar espécimens indígenas, ou ao menos às Berlengas ver gaivotas. Mas nada mais resta, para uma grande franja da sociedade senão embasbacar-se frente à TV. Felizmente temos as prazenteiras notícias das viagens presidenciais, do bebé real, das férias do Cristiano e da langerie da Irina. Agora que o Big Brother se foi, que há-de ser de nós?

sábado, 8 de junho de 2013

E se nos levantássemos?

Os sofás. As cadeiras. Essas peças de mobiliário a que nos habituámos e que sobre nós exercem um certo tipo de atracção que quase nos faz depender delas e nos faz ansiar pelo momento de nos refastelarmos nelas.
Um dos meus maiores amigos tem o dom de dizer as coisas mais banais com um ar grave, de tal forma que quem o não conhece acha que aquele assunto é de suprema importância, mesmo que seja a coisa mais corriqueira do mundo. Não raro, são momentos que nos proporcionam boas gargalhadas. “As cadeiras. São as cadeiras, caríssimo... O problema são as cadeiras”... Quase que consigo ouvi-lo.
Despertei para esta problemática das cadeiras e dos sofás e da atracção que exercem em nós – um verdadeiro poder – por intermédio dum anúncio publicitário que passa vezes sem conta na televisão, juntamente com todos os outros de cremes de veneno de cobra, baba de caracol, sumos de frutos de que nunca ninguém ouviu falar, mas verdadeiramente milagrosos, remédios para unhas, colchões especialíssimos e robots de cozinha verdadeiramente inteligentes.
Vi o réclame, como dantes se dizia, mas que agora é um francesismo desusado, quase deselegante, apesar das raízes francesas, e logo pensei que, realmente, as cadeiras têm o poder. São elas, e todas as outras peças que servem para sentar, que realmente nos aturam. E nos puxam. Muito mais que uma compulsão ao ócio, é uma verdadeira estratégia de poder, de forma a enredar nelas, nos seus braços, nos seus assentos, todos os traseiros que possam, ainda que remotamente, ter qualquer espécie de poder, decisório ou executório. E nelas se concentra assim todo o poder que rege este mundo.Extraordinária coisa. Quase maquiavélica, fossem elas capazes de ler "O Príncipe" ou capazes de qualquer conjectura.
Mas, e se nos levantássemos?
Se negássemos a essas peças de mobiliário responsáveis por tanta maquinação e estratagema, a sua fonte de poder? Talvez os pés e as pernas se começassem a queixar do excesso de esforço, ou os traseiros sentissem falta dum bocadinho desse descanso ou o corpo suplicasse por uns minutinhos de refastelamento no sofá... Não sei. Quem sabe até uma rebelião corporal contra a cabeça que congeminou esta ideia de se negar às cadeiras... Nada fácil dirimir estas questões de contentar pés e pernas, fazendo a vontade ao corpo e ouvindo a cabeça. Um horror. Aliás, discorro, que deve ter sido assim que nasceu a política, desta necessidade de contentar partes desavindas, de atender a vontades diversas, de conciliar opiniões e, enfim, não chegar absolutamente a parte nenhuma. Poderia até pensar no papel que teve a cadeira neste parto...
Se nos levantássemos certamente haveria manifestações contra. Desde logo das cadeiras, privadas da sua fonte de poder... Mas quem as ouviria, se ninguém se lá sentasse?
Ou nos levantamos, mesmo que o corpo se manifeste, ou permanecemos sentados e as cadeiras continuarão a ser senhoras dos destinos que regem o mundo de loucos que construimos.
“As cadeiras, caríssimo... O problema são as cadeiras”, diz ele enfaticamente. Eu por mim penso que o problema das cadeiras talvez se possa resolver com quem se senta nelas. Quem nelas se senta e quem nelas pomos sentados.

quarta-feira, 10 de abril de 2013

O triunfo dos cromos

Em todas as sociedades, de uma forma ou de outra, acaba por se desenvolver a necessidade de criar heróis, figuras mais ou menos míticas, mais ou menos fantasiosas, em maior ou menor grau imaginadas, capazes de aglomerar em si mesmas as expectativas e os desejos dos indivíduos, tornados modelo, guia, alvo a atingir. São como uma espécie de criaturas idealizadas nas quais se faz encarnar o perfeito, o melhor, o ideal de cada ser humano e para o qual cada um deve olhar e aspirar.
Não devemos confundir este fenómeno com a religião ou com a necessidade de Deus. A necessidade de Deus é uma coisa íntima, se quisermos entender assim e se formos capazes de o entender assim. A necessidade dos heróis é de outra ordem. Da ordem do aspirar, da ordem do motivar, do incentivar ao melhor, de serem força de erguer quando a sociedade se deixa abater. Deus também, é verdade. Mas um herói imaginado não me consegue compreender no íntimo. Deus, sim. Claro, esta é uma interpretação pessoal. Haverá outras, tão ou mais competentes e válidas como esta. A minha é esta mesmo. Na verdade, entendo que nenhuma sociedade subsistiria sem os seus heróis. Certamente, nenhum regime político.
A par com este fenómeno interessantíssimo, digno só por si de muitos estudos aprofundados, e não somente destes devaneios, surge um outro, porventura tão ou mais interessante: os cromos.
Os cromos são aquelas figuras sem as quais, a par dos heróis, nenhuma sociedade floresce. São muito mais do que anti-heróis. Enquanto que os heróis aglomeram em si os aspectos de perfeição a seguir, os cromos representam o risível, o caricato, o ridículo. E quanto maior é a lata como se apresentam a si mesmos modelos para os demais, maior é o seu impacto enquanto cromos e/ou profissionais do ser cromo. Depois há aqueles que, sendo cromos, se apercebem de formas de fazer uso dessa sua qualidade, atropelando socialmente os demais, dando de si mesmos uma imagem de perfeição (que apenas existe para eles mesmos) e tentando fazer com que essa imagem de perfeição se sobreponha ao ser cromo, um pouco à maneira do corvo que queria ser águia. Quando eu era pequeo, contavam-me a história dum corvo que tinha de si mesmo a ideia de ser tão grande, em tamanho e importância, como uma águia. Estava mesmo convencido de que era uma águia. E, por isso, lançava-se, tal como ás águias, sobre o gado que pastava, mormente sobre os borregos, sem nunca, claro está, conseguir levantar nenhum do chão.
Diria que este é uma espécie de cromo que está convencido que é herói. E age como tal. E reclama para si as honras e os aplausos de ser herói. E nem sequer tem vergonha de se apresentar e dizer de si mesmo ser um modelo a seguir. Um devoto do bem da sociedade, pela qual tudo sacrifica e pela qual trabalha incansavelmente. Claro está que o cromo-corvo, não sendo herói, não elevará nunca nem a sociedade, nem os cidadãos, nem a moral, nem os ânimos. Pode, no entanto, ter um papel até importante, enquanto bobo. Vem de longe o reconhecimento e a importância dos bobos, muito antes de haver cromos, ou de a sociedade ter tido a necessidade de criar estas figuras ímpares. Foram eles os precursores do riso, do gozo, que tanto ajuda ao aliviar de tensões e põe as pessoas mais dispostas e mais capazes de aturar certos desmandos. Na verdade, simpatizo muito mais com os bobos do que com os cromos. Os bobos são autênticos, parvos com orgulho de o ser, nada dissimulados e sem necessidade de esconder aquilo que são. Já um cromo pode parecer um herói respeitável. E por vergonha de assumir a sua função no seio da sociedade que o criou e lhe deu fôlego, disfarçar-se do que não é. O que acontece nesta circunstância é que, quando cai no riso dos demais acaba por se apresentar como um mártir, que é outra das categorias de figuras, também esta muito interessante.
O corolário da vida de um cromo-corvo é quando finalmente se consegue apresentar como um cromo-mártir, lamentando-se da sua desgraça, mas sobretudo, lamentando-se de como as suas ideias não são bem interpretadas e de como os seus esforços e acções são mal compreendidas. É como se o corvo se lamentasse do peso dos cordeiros e do facto de a natureza o ter feito corvo e não águia. Ele bem sabe que era águia. Mas aos olhos de todos não passa de corvo.
Outros há, que não sendo nem corvos nem águias, são borregos, que descobriram que conseguem pôr-se de pé e, gritando pelos corvos, embarcam também na aventura de serem cromos, apresentando-se aos outros borregos como o modelo capaz de os fazer subir além do seu ser de borregos, para grande gaúdio dos corvos, que na ausência das águias, esfregam as penas ante a visão de tanta carne fresca. Estes borregos, servindo um interesse próprio, servem também o interesse dos corvos, mas não vão além do ser cromo. São umas figuras patéticas, andantes bípedes num mundo quadrícipede, desfiando meia dúzia de anglicanismos e esbracejando muito. Muito mais que borregos, estes cromos, escolhidos entre os seus pares para os convencer que aos borregos convém o andar bípede e não as quatro patas, são para mim muito mais parecidos com certo pregador, falho de argumentos, mas bom conhecedor de como retirar impacto das palavras, e que em certa ocasião, ao ter de falar acerca de um assunto sobre o qual não era versado (coisa comum entre os cromos), escreveu a letrinhas pequeninas na sua cábula “aqui gritar, que o argumento é fraco”.
Inevitavelmente, o cromo-borrego chega à mesma conclusão que o cromo-corvo: é fraco argumento querer ser como as águias e querer que os borregos andem de pé. E, claro, o desconsolo de ver a sua argumentação cair por terra, apesar de tanto esbracejar e dizer barbaridades em inglês, como se aquelas palavrinhas estrangeiras fossem fórmulas mágicas, atira o cromo-borrego também para a tristeza de se sentir incompreendido. Ele bem sabe como fazer para andar de pé. Mas ninguém o ouve, e os borregos andam em quatro patas. É a realidade que não ajuda os cromos.
Ainda assim, eles parecem florescer. Diria mesmo que, desde que mergulhámos neste mal-fadado estado de coisas, o número de cromos subiu exponencialmente.Mais do que heróis, hoje triunfam os cromos.

segunda-feira, 25 de março de 2013

Os ovos da Páscoa de Bo, o rabo de Beckham e os mercados financeiros (II)

(...) continuação
A acrescentar a estas dificuldades, o modelo social em que existimos padece do problema da credibilidade. Tomemos como hipótese a situação em que alguém, conhecido futebolista e modelo, lança uma linha de roupa interior masculina. Faz um anúncio publicitário em que, a par da forma física, exibe a roupa que pretende vender. Acontece que alguém alvitra a possibilidade daquele rabo que aparece no anúncio não ser o dele. A possibilidade apenas. Logo se apressa a pessoa a afiançar que sim senhor, é mesmo o rabo dele. Criou-se, no entanto, a dúvida. E esta faz tremer as previsões de vendas. A isto se chama instabilidade dos mercados, provocada pela falta de credibilidade ou confiança. No nosso modelo social em análise, o problema é exactamente o mesmo: não andam os senhores políticos, financeiros, economistas e restante pessoal técnico e de assessoria certamente preocupados com o rabo do Beckham. Mas andam muito preocupados com a instabilidade dos mercados. A razão é simples: o nosso sistema social standardizado alberga um modelo económico falido (sem respostas, sem soluções, sem possibilidade de dar a volta à situação em que se encontra). Mas por qualquer razão insiste-se nele, de tal forma que se tomam no campo político medidas, que depois serão postas em prática por técnicos sem responsabilidade política, e se abrem portas a que se prolongue a agonia deste sistema moribundo, afundando com ele todo o tecido social, com benefício, contudo, dos mesmíssimos mercados que criam a própria instabilidade, lançando eles mesmos previsões e alvitrando possibilidades de que, nesta ou naquela ocasião, serão ou não cumpridos determinados compromissos, normalmente pagamentos, que é a linguagem universal e transversal a todos os sistemas integrantes do sistema global em que vivemos. Não importa se esses compromissos vão ou não ser cumpridos, note-se. Basta aventar possibilidades. E nelas, lançar ao lixo sociedades inteiras.
Eis aqui como se domina o mundo hoje. E eis também como ele está tão próximo de se perder. E temos hoje novamente o espectro da guerra, a juntar ao da exclusão social, da fome, das lutas raciais, do desemprego que corrompe verdadeiramente a realização pessoal do indivíduoo na sociedade.... Somos um modelo social em colapso. Resta saber se o homem superará este momento. Se será maior que ele. Ou se soçobrará ante o peso dos padrões, das regras, das formas e a pressão dos fortes, que lutam ainda por subsistir neste modelo decadente. E o que resultará?...
Pois, não sei.
A primeira pergunta deveria ser, antes do que resultará, quem beneficiará?... Houvesse quem respondesse, quem se pusesse a pensar, quem limpasse o raciocínio de tantas formas e modelos e padrões e regras e ideologias gastas e ocas e talvez, talvez, se afigurasse um caminho. Houvesse quem fosse maior do que si próprio, quem se orgulhasse daqueles que representa, quem se esmerasse pela busca do melhor e do mais justo e talvez, talvez houvesse um caminho. Mas não. Estamos na era do depois do vazio.Já passou o moderno, o pós-moderno e até o hipermoderno... Agora é a era dos extremismos. Da irracionalidade barata e cruel. A era dos mercados financeiros. É a era da política sem inteligência. A era dos políticos tecnicizados. Queria políticos que lessem Thomas More... Ou então outra coisa qualquer... Mas que lessem. E pensassem...Ah, o difícil acto de pensar...Tão fácil, e tão difícil.
Mas enfim, nem tudo está perdido. Bo esquadrinha alegremente os campos da Casa Branca em busca dos ovos pintados da Páscoa; o querido líder da Coreia vai fazendo uns ensaios nucleares; o Comandante venezuelano foi-se para influenciar no céu a escolha dum papa argentino; na Europa os senhores reunem-se para evitar o inevitável e lidar com o mal comportando Chipre... E por cá, tudo se adia para depois da Páscoa. Vamos comendo o folar enquanto o temos. Depois? Depois veremos. A nossa desgraça é esta mesmo: uns ou outros, todos da mesma medianidade insuportável e bafienta.
Só o pobrezinho português deseja sossego. Mas ninguém lho dá. 
E, pasme-se! Era mesmo o rabo do Beckham. Ele há coisas...

domingo, 24 de março de 2013

Os ovos da Páscoa de Bo, o rabo de Beckham e os mercados financeiros (I)

O modelo social em que vivemos hoje é, em larga medida, feito de coisas standard. Vivemos de acordo com certas regras, com certos padrões definidos, com certas formas de estar e agir e onde se espera que em determinadas alturas da vida se faça isto ou aquilo. É uma maneira de estruturar a sociedade. Na verdade, nós os que vivemos hoje, concretamente, tivémos muito pouco a dizer sobre esta forma de fazer. É assim e pronto. A vida em sociedade seria, na verdade, completamente impossível não fossem as regras, os padrões, os usos, as leis que moldam e peiam cada indivíduo, pegando nele desde o berço e modelando-o, de tal modo que viva na sociedade que já encontrou e possa nela realizar-se como pessoa, indivíduo e membro do conjunto social alargado em que vive, contribuindo também para a sua melhoria. De certo modo, há um tolher da liberdade individual, embora sacrificada para proteger o próprio indivíduo e para o inserir na sociedade onde tem de fazer a sua vida. O indivíduo deixado à solta, sem regras, modos, modelos ou padrões, seria bestial. Lobo de si mesmo, se pegarmos no conceito de Hobbes.
O problema da standardização é precisamente quando falha. Ou então quando alguém, conscientemente, percebe que o modelo em que se espera que viva não corresponde à sua própria essência como pessoa. Dito de outra forma, quando alguém percebe que será mais feliz vivendo de outro modo. No plano puro das liberdades, esta seria uma situação perfeitamente legítima. Dum certo ponto de vista, até desejável, na medida em que os modelos sociais, quaisquer que sejam, não conseguem realizar plenamente todos os indivíduos, e necessitam constantemente de aperfeiçoamento e de maturação e, claro, de mudança. Não pode haver mudança se não houver discordância. Mas, no plano concreto da vida, esta é exactamente o tipo de situação que cria atritos. E donde nascem fenómenos como racismo, xenofobia, o bullying e coisas mais do género. A razão disto é a incapacidade para a diferença. O embaraço de ter de lidar com a situação de alguém que não está em plena concordância com o que seria de esperar. E isso assusta. E lança dúvidas. Naturalmente, é muito mais fácil adoptar uma postura de rejeição do que de inclusão da diferença. São muitas as razões para isso, mas é fácil constatar que perante alguém diferente a primeira reacção é de afastamento. Têm sido, felizmente, muitos os esforços no sentido de promover a diferença. E gradualmente a diferença consegue subsistir. Não tanto por ser aceite, mas por ser tolerada. A razão disto é que a inclusão dos que foram ficando “à margem” não faz parte do nosso modelo social. É um apêndice, que foi necessário adoptar para conviver com as várias diferenças: alguém que tem um qualquer problema de saúde; que nasce com uma deficiência; que é gordo quando deveria ser magro, baixo quando deveria ser alto, fraco quando deveria ser forte... Ou alguém que escolhe não constituir família, ou constitui-la de forma diferente... São muitas, muitas as situações que vão mostrando a necessária adaptabilidade dos sistemas de sociedade, perante a legitimidade e o direito de ser diferente sem ser proscrito ou marginalizado por isso. E de cada vez que alguém é maltratado por fazer ou ser diferente, regride-se no processo civilizacional e acentua-se a necessidade, que é constante, de promover a diferença como realmente parte da sociedade.
Evidentemente, a utopia é precisamente esta: uma sociedade baseada num modelo social em que os indíviduos se possam realizar plenamente como pessoas e como parte de um todo, de acordo com a sua própria essência.
Imaginemos agora um modelo social onde a standardização assenta na premissa base de que a sociedade se divide entre fracos e fortes. E em que todo o modelo social cresce e se alimenta em torno desta premissa. Imaginemos ainda que há não uma sociedade a viver deste modelo, mas o mundo inteiro, devido não apenas ao factor globalização, mas à força dos mercados financeiros e das instituições ou pessoas que os controlam.
Tomemos isto como real, e teremos uma descrição sumária, porventura simplista, ainda que verdadeira, da nossa própria e concreta sociedade, à escala global. Ora a situação em que vivemos, e que habitualmente chamamos de “crise”, advém precisamente da falha deste modelo standard, seja porque os fracos se cansaram de ser fracos, ou seja, muito provavelmente, porque os fortes esvaziaram de tal forma os fracos, que estes já não conseguem sustentar os fortes. Não há mais por onde. Há, portanto, aqui uma verdadeira crise, no sentido literal da palavra: uma ruptura. Urge, pois, repensar todo o modelo social. Não apenas o económico. Porque uma economia não pode subsistir sem pessoas. Aliás, ela existe para as pessoas. Correndo o risco de contradizer os economistas que acham que os historiadores não servem para nada, aqui vai: economia: do grego "oeconomia", que quer dizer “regras da casa”, numa tradução mais livre. Significa isto que a economia serve para o bem gerir da casa. Nesta vertente, a economia é uma ciência social, ou seja, que se desenvolve e fomenta na sociedade. Se não houver sociedade, também não há economia. E se os cientistas da economia escutassem, ou melhor ainda, lessem, os cientistas da sociedade, talvez se abstivessem de aberrações académicas que transformam as pessoas em cobaias de ensaio. Outro grave problema trazido pela crise.     
(...) continua

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

O Carnaval dos Parvos

Abacílio andava preocupado. Era pelo Carnaval. Preocupado com os festejos, atormentava-se por não ter máscara. Não sabia de que se mascarar. Andando pela rua, assim angustiado, viu uma loja pequenina, mas muito arranjadinha, toda cheia de luzes e cores, com balões à porta e meninas bonitas ao balcão. Vendiam-se ali máscaras de Carnaval! Entrou afoito, animado com a perspectiva de ali poder encontrar a sua máscara para o cortejo.
Olhou, olhou, passeou e revirou, mas nada. Umas porque eram grandes, outras porque eram pequenas; umas por serem feias, outras porque serem iguais às de toda a gente, certo é que nenhuma agradava ao Abacílio.
Veio então uma vetusta senhora, muito elegante, de sorriso branco e modos portentosos. Trazia nas mãos uma máscara. Era perfeita! Toda ela à medida, bem proporcionada, de feições robustas, medonha quanto baste. Tudo o que se quer numa máscara. Brilharam os olhos de Abacílio, enquanto a velha senhora lhe estendia a máscara.
“De que é? De que é?”, perguntava sem se conter. A velha senhora segredou-lhe ao ouvido, e ele riu a bom rir, feliz por ter a sua máscara. Saiu a correr, depois de pagar, claro está, que Abacílio era jovem mas era honesto. Era cara. Mas podia pagar a prestações. Em cinco anos pela moeda antiga, ou em três, e amortizações por mais uns quantos, na moeda de agora.
Aprumou-se a rigor, colocou a sua máscara nova e lá foi.
A rua já fervilhava de gente, tudo mascarado. Ouvia-se o riso e os guinchos deliciados dos mais pequenos. Chegou ao corso. Toda a gente admirava a máscara nova do Abacílio. Ele cumprimentava os demais e ia passando, inchado de vaidade: “Eu cá, tenho uma máscara de doutor!”
“De doutor!”, exclamavam os foliões.
Não tardou muitos que toda a gente o cercasse, a admirar a máscara. Juntaram-se e juntaram-se, tantos foliões que não se contavam.
Chegaram, por fim, os amigos e conhecidos de Abacílio, também eles a rigor. Qual não foi o espanto do Abacílio, ao ver que os amigos traziam também uma máscara igual à sua. Pudesse ver-se-lhe a cara e estaria mais branca que a máscara, agora descorada e sem brilho.
“Ó Abacílio, de que é a tua máscara?”
“É de doutor”, respondeu com voz sumida.
“A minha é de engenheiro.”
“A minha de técnico.”
“E a minha de empregado qualificado”.
“Pois a minha, é de colaborador”, disse, emproado um dos amigos.
“Qual colaborador, qual carapuça. Pois se são todas iguais!”, exclamou o Abacílio. “Raio da velha. Se a apanho! Custou-me esta merda cinco anos!”
“A minha três. Mas com juros e amortizações.”
Os foliões começaram a rir-se.
“Ó rapazes, deixem-se disso. Então vocês não vêm que estão todos mascarados de igual?”
“Pois isso vemos. Só não sabemos é de quê…”
“De parvos, senhores. E de parvos escravizados!
“Ai o raio da velha, que nos enganou a todos!”, exclamou o Abacílio. “Ó malta! Às favas para o corso. Vamos mas é atrás da velha”.
E puseram-se em debandada, com o Abacílio de máscara em punho, a pedir os cinco anos de volta. Atrás dele, os amigos, e atrás dos amigos a multidão dos foliões. Todos bradavam à velha.
Correram a bom correr e só pararam quando já não tinham fôlego. Da velha nem sinal. Ia um desfile a passar. Carros bonitos, bem decorados, gente bem vestida e anafada. Todos perdidos de riso. A encimar o desfile ia a velha, num trono. Toda ela de cetim e madrepérola. Acenou-lhes com aquele sorriso branco e untuoso.
Eles bem fizeram menção de a perseguir, mas havia muita gente a proteger o corso. Eram gordos, enormes mesmo, bem juntos em fileira, e os foliões não conseguiam passar. Dos carros, os bem-postos puseram-se a perguntar quem era aquela gente.
“São os parvos”, respondeu a velha. E todos gargalharam, bem-postos e gordos, todos num conluio. “Velha senhora”, gritou um dos bem-postos, “atira-lhes com notas de 500, que os acalma”.
“Está bem. Mas uma por mês. Só uma!” E riram e riram. Passava o corso, e os foliões ali parados não podiam senão olhar.
“Ó Abacílio”, gritou um dos bem-postos, “de que te mascaras?”
“De parvo”.
Ai que parvos. Que parvos que nós somos!
Fim da festa.

 Nota:  Este mesmo texto foi publicado aqui o ano passado, pelo Carnaval, sob o título "A Máscara de Abacílio".Uma vez que a sátira a que alude ainda se mantém, aqui fica de novo, para acicatar consciências e arrancar sorrisos.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

O problema do neoliberalismo

Para todos aqueles que estudaram Filosofia, ou então para todos aqueles que estudaram com o mesmo Doutor que eu (devida vénia), saberão indelevelmente que um ismo é uma teoria ou doutrina segundo a qual. Uma maneira fácil de apreender como se define um ismo. Diz-nos logo duas coisas importantes: ou é uma teoria (qualquer coisa que pode vir a ser aplicada ou experimentada ou que existe somente no campo das formulações) ou é uma doutrina (algo que já foi experimentado, aplicado no campo concreto da vida, com todas as implicações e consequências disso mesmo). Aceitando que se pode discordar disto, para mim, funciona. E é assim que arrumo mentalmente todos os ismos que me vão aparecendo. Arrumei o neoliberalismo no campo das doutrinas. E como todas as doutrinas, estende-se por vários campos da sociedade. Neste em concreto, não apenas ao económico, mas também ao político e, consequentemente, ao social. Não pode haver doutrinas económicas que não sejam também políticas. E sendo políticas influem na vida das pessoas entrando, portanto, no campo social. E daqui... Bom, daqui, chega a todos os campos.
Curioso como as ideias, primeiro pequenas, incipientes, vão crescendo. Se fazem hipóteses, se testam em teorias e transformam em doutrinas, apanhando nelas todos os campos possíveis do espectro humano e social. A mim fascina-se como o pensar se pode traduzir em algo assim. Claro, com uma boa ajuda de outros elementos, sobretudo quando falamos em ideias que se transformam em modelos ou filosofias económicas, que depois se abraçam às políticas e são levadas por diante. Às vezes, menosprezando as consequências e os resultados marginais, quase como sub-produtos, dessas aplicações e dessas estreitas colaborações e implicações entre as ideias, o económico, o político e o social. De tal forma que, quase sem se dar por isso, as pessoas se aglomeram politicamente em torno de determinados modelos que mais não são do que ideias de filosofia económica que, para subsistirem e vingarem, necessitam da pujança do campo político, que as regula, implementa, fomenta, ramifica, mas também que as estigmatiza. É o preço a pagar.
Vivemos um dos maiores períodos de transformação política e social. Poderia dizer o maior, porque nunca passei pelas transformações anteriores a esta, e seria legítimo. Mas a Historiografia tem algo a dizer sobre isso. Não seria verdadeiro. Não será porventura a maior. Mas uma das maiores, sim. Talvez mesmo a mais complexa, pelo grau de informação disponível; pela necessidade de confronto e consenso de tantas partes que compõem o espectro da sociedade em que vivemos; pelo facto de ser uma transformação a nível global e, penso eu, por ser o fim dum sistema económico e a passagem para outro, embora não definido (ainda). Esta é, verdadeiramente, a crise. Estranho como perdemos o real significado de crise. Habituámo-nos a dizer “crise” sempre que algo não corre bem. Nesse sentido, eu digo a brincar que vivi na crise toda a vida, e não apenas desde 2008, altura do famoso problema do sub-prime, que arrastou o mundo para a maior recessão desde a Segunda Guerra e, no meu modesto entender, para níveis muito semelhantes aos dos da crise de 1929-33. Pelo menos, no impacto concreto na vida das pessoas. O problema das crises é que afecta sempre as pessoas. E o problema dos modelos económicos é que nem sempre se dão conta da forma como afectam a vida das pessoas.
A transformação social que vivemos, depara-se, neste nosso Portugal, com desafios tremendos. Serão muitos. Não saberei dizê-los todos. Mas o maior deles, a não culpabilização dos governantes e dirigentes que, desde a revolta democrática, foram sustentando modelos, práticas e políticas que não responderam às necessidades reais dos País e das pessoas, levando-o mesmo à quase falência. Depois, a falta de alternativas credíveis e realizáveis, agudizada pela alternância política de poder entre esquerda e direita, muitas vezes diluída e com programas opacos que, por diversas vezes, sustentaram mais o interesse privado do que o público. Depois a forma de fazer política, muito assente na promessa, na troca de acusações, no dabate inflamado, no prometer-esquecer, no dizer hoje e desdizer amanhã, nas contradições e controvérsias, ao invés da discussão de ideias e programas, e assente em noções concretas e reais do estado do País. Naturalmente, a razão disto é o facto de não existirem estadistas, nem homens de ideias e de ideais sólidos, com experiência de vida e de trabalho, feitos apenas nas escolas partidárias, onde se filiam desde novos e embarcam num carreirismo que os leva até aos cargos dirigentes. Depois a ausência de um plano político-económico de longo prazo, a que se junta a ausência de um modelo económico-político que sirva realmente os interesses das pessoas e do País. É que o modelo focado no mercado e no capitalismo está, simplesmente, esgotado. E enquanto se adoptam medidas de contenção de modo a evitar o colapso desse modelo, prologando a agonia dum modelo gasto e retirando às pessoas mais do que ética ou moralmente aceitável, vai-se esvaziando realmente a possibilidade concreta de sair desta situação.
E eis que, neste clima, nos vemos confrontados com a proposta de um modelo neoliberal. É lícito propô-lo certamente. Da mesma forma, que é lícito propôr à discussão (note-se propôr, não impôr) qualquer outro modelo. O que não é lícito é não assumir que se está a ter uma determinada orientação neoliberal. Sobretudo quando todas acções, formas de dizer e atitudes vão nesse sentido. E, acima de tudo, quando esse modelo não foi sufragado claramente pelo voto democrático. É que o neoliberalismo já foi testado. Já foi posto em prática. Já sabemos os resultados. E assim, há que perguntar: queremos um modelo político-económico neoliberal? A mim, ninguém me perguntou. A resposta é: não, não quero.
A minha resposta é baseada precisamente nos resultados já conhecidos do neoliberalismo. Se a própria teorização de Hayek é já realmente desconcertante, os resultados sociais e económicos da sua aplicação, nos modelos da Senhora Tatcher, do Presidente Reagan ou até do ditador Pinochet, são calamitosos. Não quero um Estado que se reduz ao mínimo, sem função económica e social, apenas como agente facilitador de privatizações e negócios. Não quero um Estado que veja a desigualdade social como própria da liberdade humana e que olhe para os pobres como os incapazes da economia de mercado. Não quero um Estado que deixe o mercado entregue e si mesmo para se renovar e reorganizar ele próprio. Vimos bem, na crise do sub-prime, que essa auto-regulação não funciona. E a forma como, por causa da globalização que é realmente o grande veículo dinamizador do mercado livre e desta forma de entender a economia, arrastou todo o mundo. Não quero um Estado que, por via das necessidades do mercado esteja cada vez mais dependente dos países ricos, caminhando a passos largos do neoliberalismo para um neocolonialismo económico.
Não quero, sobretudo, um estado de negociatas; de gente incompetente; de modelos económicos e políticos falhados e gastos. Quero um Estado que olhe para as pessoas e veja nelas Pessoas. E quero que me perguntem se quero ou não embarcar nessa loucura.
Devo dizer que não me revejo em nenhum dos ismos em que habitualmente gostamos de agrupar as pessoas. Entendo que faz falta uma outra via, porventura ainda não pensada. Mas urgente.
A questão é: o Estado existe para as pessoas, não as pessoas para o Estado. Se o Estado não existir para as pessoas, para que serve o Estado?