Tenho andado aborrecido
da escrita. Há tanto para escrever... Se ao menos os meus dedos se
movessem à velocidade com que as palavras me chegam... Na minha
mente, tudo está escrito. Olho para o papel e vejo-o já preenchido
de tanto que quero e preciso escrever... Mas não tenho escrito. E
quanto menos escrevo mais me aborreço, caindo num ciclo vicioso de
angústia, porque a escrita se me apresenta como um imperativo e a
consciência atormenta-me porque não ligo às palavras. Eu, mero
veículo instruído delas, servidor apenas da vontade delas de serem
escritas, capacitado somente para lhes dar sentido e conexão e
sintaxe e forma... E, portanto, como as não escrevo, elas não se
fraseiam. Ainda que para mim estejam escritas.
Alguém me disse que
era mesmo assim, que era normal passar períodos sem escrever. Eu
respondi que não, que não era mesmo nada normal, porque sentia como
a escrita me impelia a escrevê-la e não podia, porque me aborrecia
escrever. É assim que tem sido. Quero e não posso. Como em tanto na
vida.
Hoje, por casualidade,
como quase sempre me acontece com as coisas verdadeiramente
importantes de serem escritas, tomei conhecimento de realidades
inquietantes. Aterradoras mesmo, quando as tomamos como certas e
reflectimos nelas. Um em cada cinco portugueses é pobre. Primeiro
não tomei muita atenção. Depois li outra vez. Um em cada cinco.
Sim, reflectir... Não fosse a estatística ser uma coisa de números,
construída de médias e cálculos avultadíssimos, diria que, à
vista disto, é impossível que cada um de nós não conheça um
pobre. Claro, é fácil rebater isto, porque uma franja da sociedade
não conhece nenhum pobre. Aliás, é profundamente desconhecedor
desta realidade, nem sequer do conceito, quanto mais da realidade de
um pobre (veja-se, v.g., o último post que aqui escrevi
acerca das realidades da Comporta e outras similares). Acresce a isto
que a pobreza entre nós já não é apenas estrutural (que coisa
ridícula de se chamar à pobreza, mas parece que é assim que se
designa nas coisas sérias que se escrevem. Aqui limito-me a tentar,
por via da osmose, que essa seriedade de termos se pegue a estas
minhas deambulações), ou seja, que a pobreza já não é apenas de
excluídos, desamparados, sem-abrigo, toxicodependentes e de todos os
grupos que nos habituámos a catalogar nesta realidade. A pobreza,
hoje, que faz de Portugal um País de (muitos) pobres é a pobreza da
ex-classe média (serei o único a achar que o início deste colapso
em que estamos foi precisamente quando nos pusémos com esta coisa de
dividir as pessoas em classes?...). Pessoas que já tiveram uma vida
estável, confortável, desafogada até e hoje não têm nada. Houve
falências, houve divórcios, houve desemprego, houve dívidas, houve
cartões de créditos em cima de cartões crédito, houve o comprar
de um sonho ludibriado, vendido anos a fio, ilusório, assente em
erros graves de bom-senso e da mais elementar economia... Ou então
pessoas ainda com emprego, altamente qualificadas, que ganham na
ordem dos 400/600 euros mensais e que não conseguem pagar renda de
casa, alimentação, despesas com filhos. E passam fome. Um em cada
cinco. Parece também que os dois milhões de portugueses que mais
ganham têm em Portugal, auferem 7 vezes mais do que os restantes.
Não quero sequer pensar se esta conta fosse feita para os cem mil
mais ricos, por exemplo... Ou para os dez mil... O argumento de que
os ricos não têm culpa de serem ricos tem tanto de estúpido como
de demagógico. Como não sou nem uma coisa nem outra, escuso-me de
aqui comentar a questão da riqueza. É evidente que não têm culpa
de serem ricos (a não ser em certas circunstâncias, morais primeiro
e judiciais depois). Mas eu não quero escrever sobre a riqueza.
Quero escrever sobre a pobreza.
Portugal é o País da
União(?) Europeia onde o fosso entre ricos e pobres é mais
acentuado. Sempre foi, na verdade. Basta algum conhecimento histórico
para poder dizer isto sem grande dificuldade. Portugal foi sempre um
País de muito poucos ricos e muitíssimos pobres. Houve alturas em
que essa diferença se esbateu, pelo menos superficialmente, outras,
como agora, em que ela se acentua. A pobreza sempre esteve na
realidade portuguesa. E na minha vida também. Nasci pobre, com pais
pobres e avós pobres. Nunca me incomodou, porque esse contacto
sempre me ajudou a estabelecer prioridades e a olhar para a vida com
uma certa frugalidade. Tive também contacto com o fausto. Desejei-o.
Gostava de poder dizer que esse contacto com a pobreza me preparou
para a vida. Não é verdade, porque quando nos sentimos privados de
algo, aspiramos a tê-lo. E isso, embora não seja um mal em si
mesmo, no que toca ao facilistismo da sociedade que temos, pode ser
fatal. Esse é o drama da pobreza. Ao pensar nisto, voltei a
lembrar-me da senhora com sacos de plástico nos pés a servir de
sapatos; da velhinha cega a cantarolar com uma voz rouca e triste,
sentada num banco à frente dum grande edifício luxuoso na Baixa de
Lisboa; da mulher encostada a uma parede na estação de metro, sem
dizer nada e apenas com uma caixinha desbotoada na mão estendida; do
Rui que escondia a cara no colo da mãe por vergonha da fome... de
outros Ruis e Marias e Joões e Antónios e Andreias espalhadas por
esse País, que acompanham os pais, eles próprios desenquadrados e
sem saber muito bem como esconder a vergonha, nas filas para a
sopa... Todas cenas muito reais e verdadeiras da minha experiência
de vida. E da vida do nosso País. Cruzei-me com todos. E penso
neles... E em como poderia estar eu também numa fila à espera da
sopa, ou no metro de caixa estendida... Todas aquelas pessoas já
tiveram outra vida. Um em cada cinco anda de caixa estendida, de
rosto escondido pela vergonha, corpo arqueado pela fome em filas à
espera. Enquanto escrevo, lembrei-me também do fulano que vi na
televisão, já há anos, entrevistado porque a casa dele era uma
espécie de gruta perto da Boca do Inferno. Queria fazer-se um
retrato da pobreza (estrutural essa?) às portas da Capital. Como se
dentro dela não gritasse a pobreza em todas as ruas... A certa
altura, perguntaram-lhe: “Então e amanhã?. Ele riu-se, numa boca
sem dentes, e respondeu: “Amanhã, o mesmo que hoje. Nada”. E
ficou-se com aquilo.
Um cada cinco, nada.
E só isto importa.
Sim, apenas isto. Quero e não posso. Quero gritar que parem. Que
andem pelas ruas. Que vejam três gerações perdidas: dos avós, que
quiseram uma vida melhor para os filhos; dos filhos que quiserem uma
vida ainda melhor para os seus próprios filhos e dos filhos,
educados, diplomados, preparados e agora desempregados, desamparados
e pobres. E com eles os pais e os avós, despejados de qualquer
remedeio, de toda a poupança e, sobretudo, de toda a esperança. Um
País não se quebra pela falta dinheiro. Quebra-se pela falta de
esperança. Um em cada cinco. É isto que importa.
Não há quem se
levante?