Em todas as sociedades, de uma forma ou
de outra, acaba por se desenvolver a necessidade de criar heróis,
figuras mais ou menos míticas, mais ou menos fantasiosas, em maior
ou menor grau imaginadas, capazes de aglomerar em si mesmas as
expectativas e os desejos dos indivíduos, tornados modelo, guia,
alvo a atingir. São como uma espécie de criaturas idealizadas nas
quais se faz encarnar o perfeito, o melhor, o ideal de cada ser
humano e para o qual cada um deve olhar e aspirar.
Não devemos confundir este fenómeno
com a religião ou com a necessidade de Deus. A necessidade de Deus é
uma coisa íntima, se quisermos entender assim e se formos capazes de
o entender assim. A necessidade dos heróis é de outra ordem. Da
ordem do aspirar, da ordem do motivar, do incentivar ao melhor, de
serem força de erguer quando a sociedade se deixa abater. Deus
também, é verdade. Mas um herói imaginado não me consegue
compreender no íntimo. Deus, sim. Claro, esta é uma interpretação
pessoal. Haverá outras, tão ou mais competentes e válidas como
esta. A minha é esta mesmo. Na verdade, entendo que nenhuma
sociedade subsistiria sem os seus heróis. Certamente, nenhum regime
político.
A par com este fenómeno
interessantíssimo, digno só por si de muitos estudos aprofundados,
e não somente destes devaneios, surge um outro, porventura tão ou
mais interessante: os cromos.
Os cromos são aquelas figuras sem as
quais, a par dos heróis, nenhuma sociedade floresce. São muito mais
do que anti-heróis. Enquanto que os heróis aglomeram em si os
aspectos de perfeição a seguir, os cromos representam o risível, o
caricato, o ridículo. E quanto maior é a lata como se apresentam a
si mesmos modelos para os demais, maior é o seu impacto enquanto
cromos e/ou profissionais do ser cromo. Depois há aqueles que, sendo
cromos, se apercebem de formas de fazer uso dessa sua qualidade,
atropelando socialmente os demais, dando de si mesmos uma imagem de
perfeição (que apenas existe para eles mesmos) e tentando fazer com
que essa imagem de perfeição se sobreponha ao ser cromo, um pouco
à maneira do corvo que queria ser águia. Quando eu era pequeo,
contavam-me a história dum corvo que tinha de si mesmo a ideia de
ser tão grande, em tamanho e importância, como uma águia. Estava
mesmo convencido de que era uma águia. E, por isso, lançava-se, tal
como ás águias, sobre o gado que pastava, mormente sobre os
borregos, sem nunca, claro está, conseguir levantar nenhum do chão.
Diria que este é uma espécie de cromo
que está convencido que é herói. E age como tal. E reclama para si
as honras e os aplausos de ser herói. E nem sequer tem vergonha de se
apresentar e dizer de si mesmo ser um modelo a seguir. Um devoto do
bem da sociedade, pela qual tudo sacrifica e pela qual trabalha
incansavelmente. Claro está que o cromo-corvo, não sendo herói, não
elevará nunca nem a sociedade, nem os cidadãos, nem a moral, nem os
ânimos. Pode, no entanto, ter um papel até importante, enquanto
bobo. Vem de longe o reconhecimento e a importância dos bobos, muito
antes de haver cromos, ou de a sociedade ter tido a necessidade de
criar estas figuras ímpares. Foram eles os precursores do riso, do
gozo, que tanto ajuda ao aliviar de tensões e põe as pessoas mais
dispostas e mais capazes de aturar certos desmandos. Na verdade,
simpatizo muito mais com os bobos do que com os cromos. Os bobos são
autênticos, parvos com orgulho de o ser, nada dissimulados e sem
necessidade de esconder aquilo que são. Já um cromo pode parecer um
herói respeitável. E por vergonha de assumir a sua função no seio
da sociedade que o criou e lhe deu fôlego, disfarçar-se do que não
é. O que acontece nesta circunstância é que, quando cai no riso
dos demais acaba por se apresentar como um mártir, que é outra das
categorias de figuras, também esta muito interessante.
O corolário da vida de um cromo-corvo
é quando finalmente se consegue apresentar como um cromo-mártir,
lamentando-se da sua desgraça, mas sobretudo, lamentando-se de como
as suas ideias não são bem interpretadas e de como os seus esforços
e acções são mal compreendidas. É como se o corvo se lamentasse do
peso dos cordeiros e do facto de a natureza o ter feito corvo e não
águia. Ele bem sabe que era águia. Mas aos olhos de todos não
passa de corvo.
Outros há, que não sendo nem corvos
nem águias, são borregos, que descobriram que conseguem pôr-se de
pé e, gritando pelos corvos, embarcam também na aventura de serem
cromos, apresentando-se aos outros borregos como o modelo capaz de os
fazer subir além do seu ser de borregos, para grande gaúdio dos
corvos, que na ausência das águias, esfregam as penas ante a visão
de tanta carne fresca. Estes borregos, servindo um interesse próprio,
servem também o interesse dos corvos, mas não vão além do ser
cromo. São umas figuras patéticas, andantes bípedes num mundo
quadrícipede, desfiando meia dúzia de anglicanismos e esbracejando
muito. Muito mais que borregos, estes cromos, escolhidos entre os
seus pares para os convencer que aos borregos convém o andar bípede
e não as quatro patas, são para mim muito mais parecidos com certo
pregador, falho de argumentos, mas bom conhecedor de como retirar
impacto das palavras, e que em certa ocasião, ao ter de falar acerca
de um assunto sobre o qual não era versado (coisa comum entre os
cromos), escreveu a letrinhas pequeninas na sua cábula “aqui
gritar, que o argumento é fraco”.
Inevitavelmente, o cromo-borrego chega
à mesma conclusão que o cromo-corvo: é fraco argumento querer ser
como as águias e querer que os borregos andem de pé. E, claro, o
desconsolo de ver a sua argumentação cair por terra, apesar de
tanto esbracejar e dizer barbaridades em inglês, como se aquelas
palavrinhas estrangeiras fossem fórmulas mágicas, atira o
cromo-borrego também para a tristeza de se sentir incompreendido.
Ele bem sabe como fazer para andar de pé. Mas ninguém o ouve, e os
borregos andam em quatro patas. É a realidade que não ajuda os
cromos.
Ainda assim, eles parecem florescer.
Diria mesmo que, desde que mergulhámos neste mal-fadado estado de
coisas, o número de cromos subiu exponencialmente.Mais do que
heróis, hoje triunfam os cromos.
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