Maria da Purificação vivia uma vida
pia. Pia e pura como o nome, vivida de terços desfiados, rezados
devotamente, por entre joelhos moídos e velas acesas, a santos
enegrecidos pelo tempo e pela fumaça. Rezava pelos pecadores, não
se contando entre eles, nem se dando conta que este seu presumir-se
pura era já tanto pecado. Rezava pelas Chagas, como se precisassem,
elas, ainda de alguma remissão, esquecendo-se ela própria remida
pelo sangue. Rezava pelo senhor Santo Padre e pelas suas intenções,
fossem elas que fossem, que a ela chegava-lhe o descarrego de
consciência do dever devoto cumprido. Quando à noite punha a cabeça
no travesseiro, duas coisas lhe garantiam o sono: o trabalho árduo e
o saber-se contribuinte para diminuir o Mal no mundo, fazendo dos
seus terços, das missas ouvidas, e das vassouras e panos com que
trabalhava as suas armas. Nisto se consolava. Os seus dias eram
simples, como simples era a vida que sempre vivera, não sei se por
escolha se por acaso, como decerto ela também o não sabia. Acredito
que nem tão pouco tenha sido questão que algum dia se lhe tenha
levantado. Era um espírito simples e nisso, tinha a certeza, ganhara
o Céu. O Bom Jesus o prometera. Quando não estava na igreja, fossem
matinas, vésperas ou hora de missa, trabalhava. Limpava a dias,
melhor a horas. Primeiramente, as horas eram para Deus. Depois para
tratar do ganho e dar sustento ao corpo. Vaidades nada. A sua única
vaidade tinha sido um vestido fino, estreado numa ida ao teatro, no
salão da paróquia, aqui há uns anos, para ver cenas da vida do
Cristo. Conheci-as ela de cor, e nelas se compadecia e consolava
quando os actores lhe mostravam ora a glória ora a paixão. O único
homem que tinha por próximo era o senhor prior. Para além dele,
apenas o caro sobrinho, enlevo da sua alma, para quem amealhava todas
as coroas que lhe sobravam. Era filho da sua única irmã, Maria da
Graça. Chamavam-lhe sempre só Graça, ou Gracinha às vezes, ainda
que graça fosse coisa que já não tinha. Os anos tinham-se
encarregado de a carcomir a ponto de sobejarem só rugas. Tinha a
saúde frágil, coitadinha, dizia a Purificação. Por qualquer
razão, as Marias são sempre chamadas pelo segundo nome. “Sempre
foi muito fraquinha”, dizia a Purificação. Só uma vez vira um
homem de ceroulas e, por desgraça, o pai, quando certa vez o apanhou
à saída do barracão onde tomara banho, noutra vida, sendo as
Marias ainda garotas e vivendo não na cidade mas na ruralidade a que
agora se aspira por moda. Por moda e também por desespero. Bem diz a
Purificação que havemos de ter de voltar todos à enxada. Mas desse
fortuito e traumático encontro logo se seguiu uma ida ao confesso,
que aquilo não eram coisas que uma filha devesse ver. Mesmo tendo
sido uma casualidade. Fora o Diabo. Expurgá-lo fez acender um ror de
velas na capela e orações em laus perene. Pia e pura, assim viveu e
cresceu.
Durante anos, a sua distracção fora a
televisão, mais pela companhia do que pelos programas.
Interessava-se pouco pelos programas, porque facilmente via a malícia
e os apelos à luxúria. Mas gostava de ver as missas solenes.
Sonhava um dia poder ver ao vivo aquela devoção de milhares que só
pelo aparelho acompanhava. Mas um dia, certa freira de clausura com
quem falava, por ocasião dumas jornadas de oração, disse-lhe que a
capela era a sua televisão. Elevou-se-lhe a alma de tal modo,
inflamada por tamanho exemplo, que atirou fora o televisor. Apesar de
ser velho, o sobrinho reclamou, porque sempre lhe poderia dar
proveito.
Certa vez um senhor padre que ali
estava por ocasião duma pregação, disse-lhe que ela rezava demais
e descurava de menos as obras pias. Falou-lhe da misericórdia em vez
do sacrifício. A ela, toda pura e pia, que já perdera a conta aos
terços oferecidos pelos pecadores. Indignou-se. Chorou bastante
nesse dia, pelo choque e pela desfeita. Mas não se abateu. No dia a
seguir reuniu o beatério e houve romagem ao paço. Do pregador nunca
mais se ouviu nada naqueles lados. O senhor prior também foi chamado
a capítulo. Estava lá no paço um velho monsenhor, tão velho que
conhecera as Marias novas e disse, com a sapiência dos anos, que a
um espírito simples não convém grande teologia. Desde então o
senhor prior pouco mais faz que pregar à Purificação e às outras
Marias as virtudes da oração.
Amargurava-se agora a Purificação,
quando os cabelos brancos já eram muito mais que os pretos e as
rugas eram quase já tantas como as da Graça, porque o caro sobrinho
andava desempregado, para mais de um ano. Falou do caso ao senhor
prior, crente nos empregos que o cura haveria de ter em bolsa para os
pios. Pediu-lhe primeiro conselho, depois ajuda. Fez promessas. Havia
noites que os joelhos já se recusavam a mais, mas ela não lhes dava
tréguas. Empregos para o sobrinho é que nada. Aquele quase desapego
pelo mundo não a deixava compreender porque razão o estimado rapaz
não conseguia empregar-se. O senhor prior tentava explicar. Mas à
falta de melhor explicação para dar àquele espírito puro,
dizia-lhe para ter paciência. E ela tinha. Mas nessa noite, em vez
de se ir pôr diante da imagem enegrecida, decidiu por-se ao corrente
da “situação”. O sobrinho estava sempre a falar-lhe da
situação. Ela não entendia, mas também não se preocupava muito.
Era coisa de gente moderna. A ela bastava-lhe ter na cabeça, bem
arrumado, o calendário das suas limpezas. O sobrinho, às vezes,
soltava um desesperado “oh tia”... E ela abraçava-o, beijava-o
na testa e tirava uma nota da carteira. E pronto. Ele também não
adiantava conversa. Agradecia a nota, soltava uma lágrima, ela
outra, e ia cada um à sua vida.
Pela primeira vez em muitos anos, quis
ler o jornal. De início assim sem grande entusiasmo. Depois começou
a atentar no que se dizia. Depois das parangonas, assustou-se com as
mortes e os assaltos. A guerra lá ao longe. “Não mudou assim
muito”, comentou de si para si, aludindo à última vez que lera o
jornal. Se havia coisa que no mundo a não surpreendia eram as
mortes, os assaltos, a violência, nem mesmo a guerra. Tudo isso era
o mundo. E essa mesmo fora uma das razões pelas quais não lhe
custara assim tanto ficar sem o televisor, nem devotar-me mais às
rezas e menos às conversas. O que ela procurava mesmo eram as
páginas da economia. Queria por-se a par da situação. Folheou com
cuidado, como quem sabe o que anda a procura e leu com desvelo, como
quem medita um catecismo. A coisa que mais a surpreendeu foi saber
que havia países falidos. Parecia até que a falência era a palavra
de ordem e que o país, nunca tendo sido desafogado, estava agora
mais que afogado. Atentou cuidadosamente nos dizeres de todos aqueles
senhores bem postos, engravatados, de ar grave e falas mansas. Leu e
tornou a ler, porque o palavreado era por demais floreado e se
cuidado não tivesse naquela atenta leitura, ficava-se exactamente na
mesma. “Podem por-lhe gráficos e coisas bonitas, mas 'tá visto o
que é a situação: não há tusto. Venderam isto a retalho, os
mariolas. Arre que gente!”. E fechou o jornal. (...)
continua
NOTA: Purificação é um conto. Como tal, extenso demais para publicar duma só vez, pelo que optei por dividi-los em vários posts. Assim, sempre é possível aguardar pelos próximos capítulos... ;)
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