quarta-feira, 11 de julho de 2012

Purificação


Maria da Purificação vivia uma vida pia. Pia e pura como o nome, vivida de terços desfiados, rezados devotamente, por entre joelhos moídos e velas acesas, a santos enegrecidos pelo tempo e pela fumaça. Rezava pelos pecadores, não se contando entre eles, nem se dando conta que este seu presumir-se pura era já tanto pecado. Rezava pelas Chagas, como se precisassem, elas, ainda de alguma remissão, esquecendo-se ela própria remida pelo sangue. Rezava pelo senhor Santo Padre e pelas suas intenções, fossem elas que fossem, que a ela chegava-lhe o descarrego de consciência do dever devoto cumprido. Quando à noite punha a cabeça no travesseiro, duas coisas lhe garantiam o sono: o trabalho árduo e o saber-se contribuinte para diminuir o Mal no mundo, fazendo dos seus terços, das missas ouvidas, e das vassouras e panos com que trabalhava as suas armas. Nisto se consolava. Os seus dias eram simples, como simples era a vida que sempre vivera, não sei se por escolha se por acaso, como decerto ela também o não sabia. Acredito que nem tão pouco tenha sido questão que algum dia se lhe tenha levantado. Era um espírito simples e nisso, tinha a certeza, ganhara o Céu. O Bom Jesus o prometera. Quando não estava na igreja, fossem matinas, vésperas ou hora de missa, trabalhava. Limpava a dias, melhor a horas. Primeiramente, as horas eram para Deus. Depois para tratar do ganho e dar sustento ao corpo. Vaidades nada. A sua única vaidade tinha sido um vestido fino, estreado numa ida ao teatro, no salão da paróquia, aqui há uns anos, para ver cenas da vida do Cristo. Conheci-as ela de cor, e nelas se compadecia e consolava quando os actores lhe mostravam ora a glória ora a paixão. O único homem que tinha por próximo era o senhor prior. Para além dele, apenas o caro sobrinho, enlevo da sua alma, para quem amealhava todas as coroas que lhe sobravam. Era filho da sua única irmã, Maria da Graça. Chamavam-lhe sempre só Graça, ou Gracinha às vezes, ainda que graça fosse coisa que já não tinha. Os anos tinham-se encarregado de a carcomir a ponto de sobejarem só rugas. Tinha a saúde frágil, coitadinha, dizia a Purificação. Por qualquer razão, as Marias são sempre chamadas pelo segundo nome. “Sempre foi muito fraquinha”, dizia a Purificação. Só uma vez vira um homem de ceroulas e, por desgraça, o pai, quando certa vez o apanhou à saída do barracão onde tomara banho, noutra vida, sendo as Marias ainda garotas e vivendo não na cidade mas na ruralidade a que agora se aspira por moda. Por moda e também por desespero. Bem diz a Purificação que havemos de ter de voltar todos à enxada. Mas desse fortuito e traumático encontro logo se seguiu uma ida ao confesso, que aquilo não eram coisas que uma filha devesse ver. Mesmo tendo sido uma casualidade. Fora o Diabo. Expurgá-lo fez acender um ror de velas na capela e orações em laus perene. Pia e pura, assim viveu e cresceu.
Durante anos, a sua distracção fora a televisão, mais pela companhia do que pelos programas. Interessava-se pouco pelos programas, porque facilmente via a malícia e os apelos à luxúria. Mas gostava de ver as missas solenes. Sonhava um dia poder ver ao vivo aquela devoção de milhares que só pelo aparelho acompanhava. Mas um dia, certa freira de clausura com quem falava, por ocasião dumas jornadas de oração, disse-lhe que a capela era a sua televisão. Elevou-se-lhe a alma de tal modo, inflamada por tamanho exemplo, que atirou fora o televisor. Apesar de ser velho, o sobrinho reclamou, porque sempre lhe poderia dar proveito.
Certa vez um senhor padre que ali estava por ocasião duma pregação, disse-lhe que ela rezava demais e descurava de menos as obras pias. Falou-lhe da misericórdia em vez do sacrifício. A ela, toda pura e pia, que já perdera a conta aos terços oferecidos pelos pecadores. Indignou-se. Chorou bastante nesse dia, pelo choque e pela desfeita. Mas não se abateu. No dia a seguir reuniu o beatério e houve romagem ao paço. Do pregador nunca mais se ouviu nada naqueles lados. O senhor prior também foi chamado a capítulo. Estava lá no paço um velho monsenhor, tão velho que conhecera as Marias novas e disse, com a sapiência dos anos, que a um espírito simples não convém grande teologia. Desde então o senhor prior pouco mais faz que pregar à Purificação e às outras Marias as virtudes da oração.
Amargurava-se agora a Purificação, quando os cabelos brancos já eram muito mais que os pretos e as rugas eram quase já tantas como as da Graça, porque o caro sobrinho andava desempregado, para mais de um ano. Falou do caso ao senhor prior, crente nos empregos que o cura haveria de ter em bolsa para os pios. Pediu-lhe primeiro conselho, depois ajuda. Fez promessas. Havia noites que os joelhos já se recusavam a mais, mas ela não lhes dava tréguas. Empregos para o sobrinho é que nada. Aquele quase desapego pelo mundo não a deixava compreender porque razão o estimado rapaz não conseguia empregar-se. O senhor prior tentava explicar. Mas à falta de melhor explicação para dar àquele espírito puro, dizia-lhe para ter paciência. E ela tinha. Mas nessa noite, em vez de se ir pôr diante da imagem enegrecida, decidiu por-se ao corrente da “situação”. O sobrinho estava sempre a falar-lhe da situação. Ela não entendia, mas também não se preocupava muito. Era coisa de gente moderna. A ela bastava-lhe ter na cabeça, bem arrumado, o calendário das suas limpezas. O sobrinho, às vezes, soltava um desesperado “oh tia”... E ela abraçava-o, beijava-o na testa e tirava uma nota da carteira. E pronto. Ele também não adiantava conversa. Agradecia a nota, soltava uma lágrima, ela outra, e ia cada um à sua vida.
Pela primeira vez em muitos anos, quis ler o jornal. De início assim sem grande entusiasmo. Depois começou a atentar no que se dizia. Depois das parangonas, assustou-se com as mortes e os assaltos. A guerra lá ao longe. “Não mudou assim muito”, comentou de si para si, aludindo à última vez que lera o jornal. Se havia coisa que no mundo a não surpreendia eram as mortes, os assaltos, a violência, nem mesmo a guerra. Tudo isso era o mundo. E essa mesmo fora uma das razões pelas quais não lhe custara assim tanto ficar sem o televisor, nem devotar-me mais às rezas e menos às conversas. O que ela procurava mesmo eram as páginas da economia. Queria por-se a par da situação. Folheou com cuidado, como quem sabe o que anda a procura e leu com desvelo, como quem medita um catecismo. A coisa que mais a surpreendeu foi saber que havia países falidos. Parecia até que a falência era a palavra de ordem e que o país, nunca tendo sido desafogado, estava agora mais que afogado. Atentou cuidadosamente nos dizeres de todos aqueles senhores bem postos, engravatados, de ar grave e falas mansas. Leu e tornou a ler, porque o palavreado era por demais floreado e se cuidado não tivesse naquela atenta leitura, ficava-se exactamente na mesma. “Podem por-lhe gráficos e coisas bonitas, mas 'tá visto o que é a situação: não há tusto. Venderam isto a retalho, os mariolas. Arre que gente!”. E fechou o jornal. (...)
continua

NOTA: Purificação é um conto. Como tal, extenso demais para publicar duma só vez, pelo que optei por dividi-los em vários posts. Assim, sempre é possível aguardar pelos próximos capítulos... ;)

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