Voltei a passar em
frente ao baldio onde dantes era um hotel, agora em ruínas, e onde
estavam os tufos de papoilas encosta acima. Já não há papoilas,
seja porque passou o tempo da floração, pelo menos daquelas, seja
porque o estio veio com força e trouxe temperaturas de 40 graus,
levantando de imediato um côro de protestos e de alertas de
radiações altas. Queixamo-nos porque está calor, quando está
calor; queixamo-nos porque está frio, quando está frio. Somos uma
espécie difícil de contentar. Queixarmo-nos do calor em Julho ou do
frio em Janeiro é a mesma coisa que queixarmo-nos da areia da praia
ou do mar ser salgado. Mas somos assim. Um desfiar de queixumes. Há
sempre qualquer coisa que não está bem. Nem que seja uma dorzinha
pequenina, uma moínha, às vezes. Ou uma corrente de ar que deu uma
dor de garganta. Ou uma espinha das sardinhas. Ou o vinho que tem pé.
Ou a bica que vem fria. Ou quente de mais. Ou do Ronaldo, que não
marca golos. Penso mesmo que nos está no sangue o queixume, da mesma
forma que o fado não seria fado se não fosse português. A prova
disto mesmo é o Ronaldo. Ontem era o homem que não se entregava à
camisola, que não marca golos como marca no Real, que é vaidoso,
que não joga nada. Hoje é o nosso capitão. O herói da bola,
espelho dum país rendido às chuteiras, ao génio dos jogadores e
consolado nas vitórias brilhantes da nossa Selecção. A forma como
o nosso capitão passou de besta a bestial fez-me pensar em Pascal,
naquela ideia do homem não ser nem besta nem anjo... Mas acontece
muito. Como pode o homem jogar na Selecção da mesma forma que joga
no seu clube, se os jogadores são outros, o tempo de treino é
diferente e o treinador também não é o mesmo? A racionalidade e o
futebol são duas coisas que não combinam.
Não gosto de
futebol. Acho uma coisa estéril, enfadonha, demasiado conturbada por
negociatas e trocas de galhardetes. Parece-me estranho que se lhe
chame desporto. Talvez não o entenda. Dou esse benefício. Verdade é
que não faço grande esforço para entender. Apesar disso gosto da
Selecção. Da mesma maneira que gosto de tudo o que eleva a alma dum
país tão corroída como a nossa. Por alma devem entender-se as
pessoas. A alma dum país são as pessoas. E nós, as pessoas deste
pequeno País, habituado a sermos tão pequenos, andamos
acabrunhados. Então sim. Que se vibre com a Selecção, que se
acarinhem os jogadores, que se dêem vivas ao Ronaldo, que se festeje
nas ruas. Sim, que se celebre este orgulho de ser Português. Mas que
não se pense, por um minuto, ludibriar a alma dum povo. Fazer das
pessoas parvas é que não. Se a festa servir para puxar pelas
gentes, então sim. Se servir para lhes atirarem areia para os olhos,
então não. A ilusão é, porventura, a pior inimiga da alma dum
País. É ilusão pensar que o País se endireita com os golos do
Ronaldo. Mas é legítimo festejá-los. É ilusão elevar acima da
mortalidade o génio da bola. Irrita-me mesmo que se eleve mais o
génio futebolístico do que o génio literário, ou outro génio
artístico; do que o génio científico, o génio matemático ou
mesmo o génio político, embora deste não possamos apontar nenhum
caso conhecido. Eu, pelo menos, não conheço. Mas, também, que
conheço eu da política, a não ser a medianidade de uma pequena
parte e a mediocridade do grosso, feita por gente que ocupa cargos
para os quais não está qualificada, cuja única experiência foi
conseguida à sombra de comícios ou palmadinhas nas costas ou até porque é amigo do amigo do amigo de alguém?... Gostava que houvesse um, um só,
que apresentasse a mesma convicção, a mesma garra, a mesma vontade
de ganhar, o mesmo sentido de entrega do nosso capitão. Que
realmente percebesse o que se quer dizer quando se diz serviço
público... O que isso implica de entrega, de compromisso, de
dedicação, de sacrifício, de aniquilação de si próprio... Então
talvez a festa fosse mais legítima e, certamente, mais autêntica,
sem ser inflamada pela alegria contagiante dos golos marcados e das
vitórias da Selecção, mas assente em progressos verdadeiros no
sentido de dar aos portugueses a alegria perene da cabeça erguida de
quem se sabe senhor de si mesmo. Lamentavelmente a genialidade não se
faz por tirar a gravata ou andar pelo Parlamento de brinco na orelha.
Se assim fosse, teríamos já alguns génios de mérito. Em vez
disso, vamos caindo no ridículo. E as pessoas que têm a missão de
defender o Povo (não gosto desta palavra, está politizada e tem
sempre segundos sentidos. Mas aqui não. Povo e povo só, por
definição o soberano dum estado democrata) vão fazendo tristes
figuras de si próprias, como o senhor Presidente que por alguma
iluminação momentânea de marketing político de algum de algum
membro da sua entourage ou assessores ou estrategas deste
negócio da política, vi há dias a inaugurar qualquer coisa de fato
e camisa, mas sem gravata. O pior é que a camisa, de tão habituada
à gravata, estava teimosamente agarrada ao pescoço. E lá iam as
figuras proeminentes daquele evento também de fato e camisa sem
gravata. A gravata não faz o político, da mesma forma que o hábito
não faz o monge. Mas que seria do monge sem o hábito, tomando aqui
por hábito todas as coisas que fazem parte do seu ofício. Pode
haver políticos sem gravata. O que não pode haver é políticos que
caem no ridículo, tanto mais quando representam o País.
Estou convencido
que já passámos a era do vazio, lamentavelmente apenas sentida por
quem se dá ao privilégio de pensar. Haverá quem se interrogue
por que razão as coisas estão a acontecer deste modo, sem perceber
que a razão última é o esvaziamento a que nos sujeitaram e nos
sujeitámos. Quisemos libertar-nos das peias e esquecemos que quando
se tira algo tão fundamental como os valores, que são como que o
tear onde se teceu a espécie humana, seria necessário colocar
qualquer outra coisa no seu lugar. Em vez disso ficou o vazio.
Goste-se ou não, a crise que vivemos é de valores. Não
particularizo nenhum, porque estou convencido que todos, em maior ou
menor grau, foram relativizados, postos em causa ou mesmo aniquilados em alguns casos. Nalgumas coisas coisas foi bom, noutras não. É
sempre bom inquirir, questinar, aprofundar. Não é bom lançar a
dúvida quando não se tem solução alternativa. Cria instabilidade.
E ilusão. E a ilusão é a pior inimiga dum Povo. Pode criar também
crise. Mas crise não é também o que temos. A palavra grega krisis
significa separação, ruptura. E, portanto, nesta linha, uma crise é
sempre ruptura com algo para se prosseguir para outra coisa diametralmente diferente. Ora a situação que vivemos é
unicamente a prova da falência do modelo financeiro e económico
estabelecido, sem que esteja a ser feita, em parte nenhuma, qualquer
esforço por encontrar outro modelo que sirva os interesses e as
necessidades das pessoas. Pelo contrário, arranjam-se arremedos de
soluções, na expectativa de fazer ainda durar este modelo moribundo
mais uns tempos. As consequências serão, creio, nefastas e
imprevisíveis. Mas não boas. Passámos a era do vazio. Agora é a
era do ridículo. Mas também poderia ser do desencanto, e eu seria o
primeiro dos desencantados.
O estio chegou
forte. Poderíamos queixar-nos da falta de dinheiro, de empregos, de
soluções estratégicas verdadeiramente importantes, mas não. O
calor é que nos mata. Mesmo que andemos louquinhos por esticar o
pernil no areal da praia. Somos difíceis de contentar. Eu por mim já
me contentava com uma seara de trigo, onde houvesse, aqui e ali, umas
papolias.
Já me esquecia: se dúvidas houvesse, esta pessoa não escreve de acordo com a chamada nova ortografia .
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