sábado, 30 de junho de 2012

O ridículo e o desencanto


Voltei a passar em frente ao baldio onde dantes era um hotel, agora em ruínas, e onde estavam os tufos de papoilas encosta acima. Já não há papoilas, seja porque passou o tempo da floração, pelo menos daquelas, seja porque o estio veio com força e trouxe temperaturas de 40 graus, levantando de imediato um côro de protestos e de alertas de radiações altas. Queixamo-nos porque está calor, quando está calor; queixamo-nos porque está frio, quando está frio. Somos uma espécie difícil de contentar. Queixarmo-nos do calor em Julho ou do frio em Janeiro é a mesma coisa que queixarmo-nos da areia da praia ou do mar ser salgado. Mas somos assim. Um desfiar de queixumes. Há sempre qualquer coisa que não está bem. Nem que seja uma dorzinha pequenina, uma moínha, às vezes. Ou uma corrente de ar que deu uma dor de garganta. Ou uma espinha das sardinhas. Ou o vinho que tem pé. Ou a bica que vem fria. Ou quente de mais. Ou do Ronaldo, que não marca golos. Penso mesmo que nos está no sangue o queixume, da mesma forma que o fado não seria fado se não fosse português. A prova disto mesmo é o Ronaldo. Ontem era o homem que não se entregava à camisola, que não marca golos como marca no Real, que é vaidoso, que não joga nada. Hoje é o nosso capitão. O herói da bola, espelho dum país rendido às chuteiras, ao génio dos jogadores e consolado nas vitórias brilhantes da nossa Selecção. A forma como o nosso capitão passou de besta a bestial fez-me pensar em Pascal, naquela ideia do homem não ser nem besta nem anjo... Mas acontece muito. Como pode o homem jogar na Selecção da mesma forma que joga no seu clube, se os jogadores são outros, o tempo de treino é diferente e o treinador também não é o mesmo? A racionalidade e o futebol são duas coisas que não combinam.
Não gosto de futebol. Acho uma coisa estéril, enfadonha, demasiado conturbada por negociatas e trocas de galhardetes. Parece-me estranho que se lhe chame desporto. Talvez não o entenda. Dou esse benefício. Verdade é que não faço grande esforço para entender. Apesar disso gosto da Selecção. Da mesma maneira que gosto de tudo o que eleva a alma dum país tão corroída como a nossa. Por alma devem entender-se as pessoas. A alma dum país são as pessoas. E nós, as pessoas deste pequeno País, habituado a sermos tão pequenos, andamos acabrunhados. Então sim. Que se vibre com a Selecção, que se acarinhem os jogadores, que se dêem vivas ao Ronaldo, que se festeje nas ruas. Sim, que se celebre este orgulho de ser Português. Mas que não se pense, por um minuto, ludibriar a alma dum povo. Fazer das pessoas parvas é que não. Se a festa servir para puxar pelas gentes, então sim. Se servir para lhes atirarem areia para os olhos, então não. A ilusão é, porventura, a pior inimiga da alma dum País. É ilusão pensar que o País se endireita com os golos do Ronaldo. Mas é legítimo festejá-los. É ilusão elevar acima da mortalidade o génio da bola. Irrita-me mesmo que se eleve mais o génio futebolístico do que o génio literário, ou outro génio artístico; do que o génio científico, o génio matemático ou mesmo o génio político, embora deste não possamos apontar nenhum caso conhecido. Eu, pelo menos, não conheço. Mas, também, que conheço eu da política, a não ser a medianidade de uma pequena parte e a mediocridade do grosso, feita por gente que ocupa cargos para os quais não está qualificada, cuja única experiência foi conseguida à sombra de comícios ou palmadinhas nas costas ou até porque é amigo do amigo do amigo de alguém?... Gostava que houvesse um, um só, que apresentasse a mesma convicção, a mesma garra, a mesma vontade de ganhar, o mesmo sentido de entrega do nosso capitão. Que realmente percebesse o que se quer dizer quando se diz serviço público... O que isso implica de entrega, de compromisso, de dedicação, de sacrifício, de aniquilação de si próprio... Então talvez a festa fosse mais legítima e, certamente, mais autêntica, sem ser inflamada pela alegria contagiante dos golos marcados e das vitórias da Selecção, mas assente em progressos verdadeiros no sentido de dar aos portugueses a alegria perene da cabeça erguida de quem se sabe senhor de si mesmo. Lamentavelmente a genialidade não se faz por tirar a gravata ou andar pelo Parlamento de brinco na orelha. Se assim fosse, teríamos já alguns génios de mérito. Em vez disso, vamos caindo no ridículo. E as pessoas que têm a missão de defender o Povo (não gosto desta palavra, está politizada e tem sempre segundos sentidos. Mas aqui não. Povo e povo só, por definição o soberano dum estado democrata) vão fazendo tristes figuras de si próprias, como o senhor Presidente que por alguma iluminação momentânea de marketing político de algum de algum membro da sua entourage ou assessores ou estrategas deste negócio da política, vi há dias a inaugurar qualquer coisa de fato e camisa, mas sem gravata. O pior é que a camisa, de tão habituada à gravata, estava teimosamente agarrada ao pescoço. E lá iam as figuras proeminentes daquele evento também de fato e camisa sem gravata. A gravata não faz o político, da mesma forma que o hábito não faz o monge. Mas que seria do monge sem o hábito, tomando aqui por hábito todas as coisas que fazem parte do seu ofício. Pode haver políticos sem gravata. O que não pode haver é políticos que caem no ridículo, tanto mais quando representam o País.
Estou convencido que já passámos a era do vazio, lamentavelmente apenas sentida por quem se dá ao privilégio de pensar. Haverá quem se interrogue por que razão as coisas estão a acontecer deste modo, sem perceber que a razão última é o esvaziamento a que nos sujeitaram e nos sujeitámos. Quisemos libertar-nos das peias e esquecemos que quando se tira algo tão fundamental como os valores, que são como que o tear onde se teceu a espécie humana, seria necessário colocar qualquer outra coisa no seu lugar. Em vez disso ficou o vazio. Goste-se ou não, a crise que vivemos é de valores. Não particularizo nenhum, porque estou convencido que todos, em maior ou menor grau, foram relativizados, postos em causa ou mesmo aniquilados em alguns casos. Nalgumas coisas coisas foi bom, noutras não. É sempre bom inquirir, questinar, aprofundar. Não é bom lançar a dúvida quando não se tem solução alternativa. Cria instabilidade. E ilusão. E a ilusão é a pior inimiga dum Povo. Pode criar também crise. Mas crise não é também o que temos. A palavra grega krisis significa separação, ruptura. E, portanto, nesta linha, uma crise é sempre ruptura com algo para se prosseguir para outra coisa diametralmente diferente. Ora a situação que vivemos é unicamente a prova da falência do modelo financeiro e económico estabelecido, sem que esteja a ser feita, em parte nenhuma, qualquer esforço por encontrar outro modelo que sirva os interesses e as necessidades das pessoas. Pelo contrário, arranjam-se arremedos de soluções, na expectativa de fazer ainda durar este modelo moribundo mais uns tempos. As consequências serão, creio, nefastas e imprevisíveis. Mas não boas. Passámos a era do vazio. Agora é a era do ridículo. Mas também poderia ser do desencanto, e eu seria o primeiro dos desencantados.
O estio chegou forte. Poderíamos queixar-nos da falta de dinheiro, de empregos, de soluções estratégicas verdadeiramente importantes, mas não. O calor é que nos mata. Mesmo que andemos louquinhos por esticar o pernil no areal da praia. Somos difíceis de contentar. Eu por mim já me contentava com uma seara de trigo, onde houvesse, aqui e ali, umas papolias.

Já me esquecia: se dúvidas houvesse, esta pessoa não escreve de acordo com a chamada nova ortografia .

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