sexta-feira, 22 de abril de 2011

Vepres

Parecia-me verão aquele Abril, só desmentido pelos campos de erva verde e viçosa, pontilhados por malmequeres brancos e amarelos, e pelas giestas em flor e pela urze, que estende de vez em quando, na erva, um manto lilás, e pelos carapeteiros que na minha memória pendiam em grossos ramos floridos de branco de enormes jarrões na Matriz, nas cerimónias da Ressurreição, por entre nuvens de incenso e cantos e toalhas de alvura ofuscante, em honra do Ressuscitado.
Mas não era verão. Ainda. Estava calor e era pela Páscoa. Ia observando a sombra projectada da carruagem do comboio e pus-me a pensar na páscoa, na passagem. Pensei nos carapeteiros também. Gosto da flor. São ramos enormes, cobertos de flores, que não deixam ver os espinhos, fortes e bem afiados. Não se esquecem aqueles espinhos. E apesar deles, a beleza daqueles ramos é singular. Íamos sempre procurá-los para a Páscoa. Tinha qualquer coisa de apoteótico, potenciado pelo fumo do incenso e pela imensidão de ritos que a maioria das pessoas não entende. Foi aí que compreendi a importância do rito… Por causa do incenso e dos carapeteiros em flor. Tudo aquilo, cheio de Mistério, fazia-me querer entender. Querer tocar. Depois chegava a Páscoa. Depois de tanto ritual, de muito incenso e procissões. De dias e noites passados a correr. Era bom.
Perguntei um dia o que era a Páscoa. Porque é que era Páscoa. Sim, a Ressurreição e tudo isso. Mas se a páscoa era a ressurreição então porque é que lhe chamávamos Páscoa e não somente Ressurreição? Disseram-me que páscoa era Páscoa porque páscoa é passagem. Da morte à vida. Páscoa da Ressurreição. E é esperança. Renovação. Fazer de novo. Tornar novo. Por isso é que é na primavera… Porque na primavera a natureza renova-se. E o Ressuscitado recapitula tudo. Torna tudo Novo. Essa é a Páscoa. Achei bonito.
Depois, mais tarde, aprendi que havia pessoas que dedicavam a vida a estudar essas coisas. Aprendi sobre Theilhard de Chardin e como ele entende esta recapitulação no Ressuscitado. Percebi melhor o apoteótico. Aprendi hebraico e aprendi sobre o 14 de Nisan; sobre os cultos pagãos mistéricos; sobre as festas das primícias. A Páscoa é, sempre foi, passagem, em todas as culturas. Respeitei mais a Páscoa, mesmo agora que já não me impressionam as nuvens de incenso e os ramos dos carapeteiros. Gostava, contudo, de me sentir renovado…
De todas as coisas da Páscoa, a que gosto mais é a esperança. Levei anos a compreender isso. Percebi que mesmo o mais belo tem espinhos, como os carapeteiros. Inter vepres rosae nascuntur. Mas apesar dos espinhos, é belo. Não é fácil viver pela esperança, e acreditar que ela renova, quando tudo à nossa volta de desmorona. Mas é assim. Pensei na caixa de Pandora, mesmo sendo Páscoa. Quando todos os males saíram da caixa e se espalharam pelo mundo, saiu também uma coisa frágil: era a esperança. O futuro não parece bom. Não sei como será esta passagem. Mas haverá mais Páscoas, com ramos de carapeteiros floridos, pelo menos na minha memória. Na terra onde passo a Páscoa já nada é como na minha memória. Mas ainda é Páscoa. E eu tenho a minha memória para me fazer lembrar do encanto do Mistério. E também ainda tenho a esperança.

Adoramus te Christe, et benedicimus tibi, quia per sanctam crucem tuam redemisti mundum.

Boa Páscoa. Muitas amêndoas. E depressa, antes que o FMI as penhore...

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