quinta-feira, 22 de setembro de 2011

A avenida

Na cidade onde eu estudei havia um jardim. Digo havia porque nunca mais lá voltei. Mas posso dizer, com toda a certeza, que há um jardim. Grande, enorme, no coração da cidade, ela feita de altos e baixos e o jardim, sempre quieto, também sucalcado, com grandes escadarias de pedra calcária, fontenários, lagos, a estufa, e, claro, a avenida. Era assim que lhe chamava. Por entre o jardim, uma enorme rua ladeada de tílias e plátanos, com muros de calcário elegantes. Era recanto de namorados, escondidos pelos troncos grossos de anos, de tal forma que o transeunte podia passar sem sequer os notar. Havia também um eucalipto da Austrália, tão grande que seriam precisos vários homens para o abraçar.
Era muito perto da minha faculdade. Todos os dias, religiosamente, ritualmente, post prandium (e às vezes também post coenam) lá ia, em passos de passeio, muito vagarosos, sozinho ou acompanhado por amigos, para ajudar na digestão. Outras vezes, muitas, apenas para estar sozinho e pensar. Havia bancos a ladear um grande lago. Todos encostados a ameixas-de-jardim. Formavam uma espécie de gazebo, mas sem cobertura, a não ser a das árvores. Sentava-me lá muitas vezes. Conhecia quase todas as árvores, todos os caminhos, os bancos e os miradouros, de onde se podia ver toda a extensão do jardim ou ver as escadarias, ou até olhar para a parte reservada. Não estava aberto ao público por completo. A razão disto era ser um jardim botânico. E gostava de passar na avenida. Detesto tílias. Fazem-me espirrar. Mas queria lá saber se eram tílias. Gostava daquele cenário de grandeza, como se a natureza, ali amestrada, tivesse ela tomado as rédeas e tivesse feito daquela parte do jardim um triunfo. A toda a hora podia imaginar quadrigas saudadas por multidões, ou carruagens puxadas por cavalos muito penteados, ou simplesmente senhoras de sombrinha acompanhadas por cavalheiros de chapéu alto, que passeavam descontraidamente. Ou então alunos, muitos alunos, que ali passavam todos os dias. Atravessando o jardim e passando pela avenida estava-se praticamente no Campus. Mas naquela altura acho que ninguém lhe chamava campus… Chamava-se-lhe Pátio. O tempo ali era como se parasse. Fora das grades, muito altas, de ferro e bronze, o frenesim de carros. Ali, nada. Umas vezes só o barulho do vento. Ou o som dos pássaros. Especialmente no Outono. A Primavera era bonita, sim. A vida que rompe e se faz sempre nova. Mas eu não gosto de fait-divers. Toda a gente esperava pela força da Primavera. Eu, pelos dias de Outono, ou pelo fim do Verão. Pelas primeiras folhas a cair. Esperava por ver os tons das folhas. Depois respirar fundo, à espera do cheiro do Outono. Na porta mais perto do campus, havia a senhora das castanhas, que no Verão era de gelados. E eu esperava pelo cheiro do carvão e das castanhas, misturados com os primeiros ventos frios que derrubava as folhas, já sem tons de verde ou então de verde-velho, e calcetava o chão da avenida de folhagem. Então, sim, era grandiosa a avenida.
Chegou discreto o Outono. Quase nem dava por ele, tão distraído ando do tempo. E do calendário. Mas mudou o tempo. Houve uma noite fria. E lembrei-me então da avenida, onde o tempo pára. Senti saudades, como todo o estudante sente da sua faculdade. Foi no tempo em que as licenciaturas tinham muitos anos. Fiz da cidade minha, apesar de não ter nunca mais lá voltado.
O tempo é sempre tão relativo… Quando me lembrei da avenida lembrei-me também que a vi pela última vez há mais de onze anos. Onze anos. Pus-me a pensar que para mim foi ontem. A vida é outra já. Os colegas também nunca mais os vi, em grande parte. Mas consigo ainda pôr-me de pé, no meio da avenida a atravessá-la como se ainda lá estivesse. Ou como se tivesse sido ontem que me vim embora. Tenho a certeza que os portões estarão da mesma maneira abertos e a avenida há-de lá estar, ladeada de tílias e plátanos. Se eu agora lá fosse seria como um estrangeiro. Como se nada daquilo tivesse já sido meu um dia. Como se não me tivesse sentado todos os dias naqueles bancos de pedra. E receberia olhares curiosos como se nunca lá tivesse estado. Coisa relativa o tempo. Passa. Mas não para quem está dentro dele. Para quem está dentro dele, leva-nos também com ele. E só parecemos mais velhos a quem passa por fora. Coisa relativa o tempo.
Já é Outono e quase não o senti chegar. Não fora lembrar-me da avenida e estaria ainda noutro tempo. Que saudades do Outono na avenida.

NOTA: Para os preciosistas, o Outono, que como se sabe tem início com o Equinócio de Setembro, este ano é apenas a 23, amanhã, pelas 09.04h. Para o texto literário, contudo, já é Outono.

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