quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

Particularmente saboroso?

Aprendi há muito que não se escreve a quente sobre assuntos que nos incomodam ou de algum modo nos tocam, a não ser como desabafo e, nesse caso, não são coisas para partilhar. São coisas em chorrilho, muitas vezes incorrectas ou incompletas ou mal escritas; escritas com o propósito único de nos aliviar. Quando queremos escrever sobre alguma coisa convém deixarmos passar o calor do momento, a erupção de emoções ou a fúria que nos move, sobretudo se queremos partilhar o que escrevemos e, mais ainda, se queremos que alguém entenda o que escrevemos. Estando o ano a começar, é tempo de olhar para trás, para o ano findo, seja como balanço seja lá como se lhe quiser chamar. Para mim, o fim do ano e o início de outro é sempre tempo de reflexão.
O ano foi amargo, agora que já chegou ao fim. “Particularmente saboroso” (nas palavras do nosso Primeiro-Ministro), decerto, em muitos aspectos da nossa vida comum de País. As melhorias económicas, traduzidas em melhorias sociais; uma estabilidade política mais ou menos conseguida; boas perspectivas de mercado; rendimentos devolvidos, paulatinamente, ao cidadão comum, traduzindo-se isso num aumento da confiança; boa cotação internacional, como se vê pelos casos da ONU e Ecofin... Será este governo, “bem menor”, assim tão diferente do(s) anterior(es)? Sim, é. E não, não é. Continuam os erros, as polémicas e os atropelos próprios de uma forma de estar benevolente para com o facilitismo e habituada ao “amiguismo”, estranha forma de nepotismo, tão portuguesa. Continua a privilegiar-se antes as pessoas que se conhece e as ligações que tem (partidárias ou pessoais), em detrimento do mérito e da competência. Aliás, neste aspecto, tanto nacional como localmente, onde os jogos de influência dos “amigos” são claramente nefastos mas, ainda assim, amplamente postos em prática. Lamentavelmente, não são só os governos PS que têm vindo a condescender nesta forma de estar. Ela é transversal a todas as forças políticas, mormente aquelas que tradicionalmente chamamos do “arco da governação”, agora mais diluído, com o protagonismo e entrada em cena do BE e CDU como apoiantes claros de um governo. Sendo isto novidade no governo central não o é, certamente, nos poderes locais, onde a procura de consensos de poder é habitual para assegurar certa estabilidade e governabilidade. Portanto, não é este governo melhor que o(s) outro(s).
Acontece, porém, que realmente é melhor. Melhor pelos resultados mas, sobretudo, pelas opções. Ou seja, optando por uma solução assente em compromissos de princípio, tornou-se possível ser um governo minoritário com estabilidade governativa, atalhando caminhos muito diversos daqueles tomados anteriormente, muito graças à genialidade inesperada de Centeno, a princípio tão posta em causa, tanto interna como externamente, numa resistência quase patética às ideias e às escolhas financeiro-governativas, sobretudo por parte da oposição (o diabo, o diabo!), no que foi um estúpido exercício de birra, por um lado e, por outro, à habilidade política de Costa, cuja capacidade para construir consensos é admirável. Tudo amparado generosa e afectuosamente pelo Presidente Marcelo, outra das enormes surpresas boas. Não é despiciendo o papel dos partidos apoiantes do governo: a CDU, com a maturidade duma velha senhora, fiel à palavra dada, mesmo a custo de votos; o BE com a irreverência inexperiente das ideias feitas e não testadas, mas contribuindo com alguma frescura a uma máquina pesada e saturada. Muito destas ideias não podem sequer ser consideradas, por serem diametralmente opostas a tudo aquilo que são as opções políticas de fundo do País, assumidas em contexto internacional. Têm algo de realidade paralela, num país “far, far away”, mas fazem o seu papel, satisfazendo os seus próprios eleitorados. Para mais, a opção de fundo do governo de devolver rendimento e corrigir injustiça social, reavaliando medidas verdadeiramente chocantes do anterior executivo – executivo propriamente e não governo, porque o seu apanágio foi “ir além da troika” e obstinadamente seguir esse rumo, para que Portugal estivesse melhor, “mesmo que os portugueses não estejam”. De todos os disparates e laivos arrogantes ditatoriais de quase-fascismo, traduzido em frases feitas e aberrantes, debitadas por elementos do anterior executivo, esta foi, porventura, a mais ilustrativa da mentalidade que então vigorava. Mais que o “emigrem!” ou que a arrogância institucional da felizmente-ex-presidente-da-assembleia-da-república, toda ela inconseguimento, “Portugal está melhor mesmo que os portugueses não estejam” (apenas comparável ao “aguentam, aguentam”) é a visão de quem não compreendeu que um país quebrado não se endireita sem esperança e confiança. E quanto mais se insistiu, mais se derrotou o ânimo. E os custos, foram enormes. Marcelo trouxe o calor humano que não é habitual nos políticos e de o País precisava, diga-se; Costa puxou pela confiança nacional, revertendo o status quo e devolvendo rendimento.
É uma política sustentável? Não sei. Não sou economista nem politólogo. Resultou? Está a resultar, com repercussões além fronteiras: o artigo do “Finantial Times” sobre o sucesso da política portuguesa, por exemplo; a eleição de Mário Centeno... “particularmente saboroso”, se pensarmos que há poucos meses as opções orçamentais de Portugal eram postas em causa, continuamente, pelos “parceiros” europeus.

Particularmente saboroso em tudo o que se disse. Uma catástrofe, contudo, quase como a outra face duma moeda, noutros aspectos. O ano foi também particular e nefastamente doloroso, em especial pela tragédia dos incêndios. Nunca em Portugal tínhamos assistido a uma catástrofe destas dimensões e com esta crueza. Chocou a dimensão, o horror, a incapacidade de reacção útil, a eficácia de uma estratégia lúcida... Chocou a tragédia humana e os quilómetros, a perder de vista, de área destruída. Nunca tinha ido ver, de propósito, o resultado dum incêndio. Já tinha visto, en passant, mas sempre em razão de ter passado numa zona ardida por outra qualquer razão. Nunca para ir ver propositadamente, porque nunca gostei de insistir na desgraça, nem nunca a tinha sentido de perto, mesmo quando, há dois ou três anos, ardeu a pequena mata em frente de minha casa. Mas este ano fui. Já semanas depois dos incêndios, ainda senti o cheiro intenso a queimado e a roupa ficou negra, pelo lado de dentro. Aqui e ali, ainda fumo. Uma experiência nova a aterradora para mim. Janelas e portas distorcidas pelo calor, em casas não ardidas; jardins e varandas de casas destruídos; pequenas hortas dentro de povoações ardidas, mesmo junto às casas; sinais de trânsito fantasmagoricamente enegrecidos; cabos eléctricos derretidos, estradas fora, e restos de postes suspensos no ar, ardidos por baixo e seguros por cabos não ardidos mas completamente distorcidos... E uma paisagem, a perder de vista, muito para lá do que consegui ver, queimada até ao chão, negra e decrépita. As árvores carbonizadas, queimadas até às raízes, só restos de paus de fósforo, numa desolação árida. Fiz aí o meu luto desta tragédia.
Num cenário onde tantas coisas podiam ter corrido mal, tudo realmente acabou mal. Muitas culpas, sem ser claro de quem. Começa pela impreparação. Pela incapacidade de resposta a um cenário desta natureza. Não sei se é possível a preparação para a tragédia, destas dimensões. Não sei. Mas tem de ser. Deveria, na verdade, ter sido. Claramente, fosse por que fosse, não estávamos preparados. Nem como país, nem como cidadãos, nem como protecção civil... O desnorte foi evidente, os meios inadequados (não sei se suficientes ou não) e a opção estratégica caótica. Tudo errado, incluindo a comunicação de emergência, a comunicação aos atingidos e a comunicação ao país, verbal e corporal. Atitudes erradas, palavras erradas, timings errados. Desnorte, portanto. Um perfeito caos.
Com o país mergulhado num caos emocional, a par com as consequências materiais da tragédia, começaram a surgir os abutres da situação. Primeiro muito contidos, mas igualmente em desnorte. Depois desenfreadamente desbocados, atiçados pelos media diversos, com directos constantes e repetidos, reportagens “de fundo” (vá-se lá saber o que isto é) e outras que nem de raspão, com jornalistas a fazer reportagem junto a cadáveres, mostrando à saciedade e despudoradamente a desgraça e o sofrimento alheios, numa guerra de shares absolutamente ridícula, mostrando o lamaçal ético em que neste momento os media em geral (sem querer particular nem generalizar, porque há honrosas excepções) estão mergulhados. Semanas a fio com os noticiários a abrir e a fechar com o mesmo assunto, desgastando a paciência de qualquer um e explorando ao máximo, para dividendos de audiências, a situação do país. Poderia ter acalmado, não fosse uma segunda tragédia, três meses depois, voltando tudo ao início: governantes desnorteados; oposição hermeticamente fechada em argumentos infantis e caducos; media exacerbando ânimos e explorando a desgraça. Há muito que se perdeu a fronteira entre o dever de informar e a exploração sem pudor; os factos noticiosos (que deveriam ser factuais apenas) e o eivar de opinião mais ou menos tendenciosa, de acordo com o pensar e opção política de quem a veicula, manipulado descaradamente a opinião pública, já tão habituada a não pensar por si (para que é que há-de pensar, se há tantos a fazê-lo e ainda por cima bem pagos)... Mas isso é outra história.
Os debates no Parlamento são espectáculos de quase divertimento, não fosse a gravidade da situação, tal é a incapacidade de debater ideias, alicerçadas numa estratégia consequente e coerente. Barulho muito. Política pouco. Birras e polémicas de faz-de-conta, sempre à espera de que qualquer coisa corra mal para se aventar um pedido de satisfação, quase infantil, com pessoas absolutamente ineptas e desprovidas de sentido ético e do mínimo de inteligência política, refugiando-se numa esperteza bacoca de habilidade de jogar com a opinião pública. Diz-se mais o que se sabe que as pessoas gostam de ouvir do que aquilo que realmente deve ser dito. Viu-se com os incêndios; vê-se com qualquer notícia que, mesmo que remotamente, diga respeito a alguém ligado ao governo (fazendo aqui os media e, em particular as redes sociais, o trabalho sujo, numa era em que tudo e todos estão constantemente em cheque); vê-se na mais recente polémica “Raríssimas”, que é já vulgaríssima, a que se juntou entretanto o caso “Século”... Para quem já trabalhou numa instituição desse tipo, custa ver pessoas menos escrupulosas a servirem-se em proveito próprio da boa vontade e dos meios postos ao serviço de quem precisa, pondo em causa a honradez de quem todos os dias luta e trabalha por esses projectos e por essas pessoas. Mas também, por certo, não causará estranheza que isso aconteça. Eu próprio poderia enumerar outros tantos abusos quotidianos, que se fizeram e continuam a fazer por muitas instituições e que, regra geral, vão sendo mais ou menos do conhecimento das pessoas, à boca pequena e se aceita como sendo habitual... É assim que vamos, nos nossos brandos costumes. Estes casos em concreto só tomaram as proporções conhecidas pela insistência dos media. Não são extraordinariamente diferentes de muitos outros, se se procurar bem. E mais não digo.
Particularmente catastrófica também é a situação no futebol, no nosso país. Falo disto como mero expectador externo, sem qualquer interesse concreto, na medida em que o futebol em si não me merece qualquer atenção, como já doutras vezes referi. Não haverá para mim actividade mais inútil que o futebol, na medida em que transforma pessoas normais em perfeitos brutos, incapazes de raciocínio. O futebol interessa, sobretudo, a quem dele vive: jogadores, treinadores, empresários, membros de clubes e staff diverso, e toda uma parafernália de gente que ronda este círculo e dele se alimenta. A todos os outros não interessa absolutamente nada. Mas eis que o futebol conseguiu este feito extraordinário: convencer uma enorme massa de pessoas de que, realmente, interessa e tem a ver com eles. Que é seu! Classifica-os entre sócios e adeptos e com todos conta para engrossar as suas fileiras de dependentes e manter vivo um negócio de milhões, sustentado pelas chorudas quantias que as marcas, televisões e patrocinadores vários se dispõem a pagar em troca da publicidade contínua e da influência (de moda, de padrões de vida, de comportamento...) sobre as ditas massas. Um negócio de milhões de que a massa beneficia absolutamente zero, mas que defende o clube com a bestialidade insana de quem não precisa de qualquer outro argumento que não seja defender o “nosso” clube: os outros são sempre os inimigos, num jogo perigosamente popularista. O fascínio pelo mundo do futebol, para pessoas como eu, está justamente aqui: na análise psico-sociológica que se pode fazer.
Vimos assistindo a uma degradação deste mundo: se é verdade que desde há muito que o futebol cai na suspeição de tráfico de influências e outros negócios menos lícitos (nunca nada se provando nem nunca havendo culpas ou culpados), quase como se já fosse dado adquirido, discutido à porta de cafés e cumplicemente aceite pelas massas, acontece que nos últimos tempos têm vindo a adensar-se comportamentos e atitudes que denotam um perigoso derrapar ético. Incitações constantes e cada vez mais graves e audíveis à violência e ao ódio; suspeições atiradas à comunicação social; fait-divers misteriosamente tornados públicos; adopção de uma postura conflituosa constante (mais que o habitual)... enfim. Remato, retomando e reescrevendo um post anterior: há uma equipa que vem ganhando e outras que querem ganhar. Usa-se, para tanto, todos os artifícios, sendo que o que passa no jogo de futebol propriamente dito é o menos importante, uma vez que, como já sabem muito bem, o estado de alma dos jogadores, pressionados por múltiplas forças e condicionados por diversas vertentes deste jogo, nomeadamente pelo trabalho das claques e dos fazedores de opinião, é que ditará o resultado: a derrota virá se forem capazes de desestabilizar suficientemente o adversário em campo e instilar neles a incapacidade para ganhar ou o sentimento de inferioridade. Isto, mais que a qualidade técnica e táctica, é que, hoje, determina o jogo, sobretudo, nas fases finais dos campeonatos, onde tudo parece valer, apostando tudo neste jogo psicológico. A estratégia tornou-se a desestabilização do adversário por todos os meios possíveis. Há muito que o futebol dos dias de hoje se deixou de jogar nos campos.
Com tudo isto, resta-nos a esperança de que 2018 seja, de facto, melhor. E que os nossos políticos se elevem (finalmente) à altura das suas responsabilidades. E que deixem de fazer figuras ridículas, portando-se como se não tivessem nada a ver com o assunto... Podemos sempre sonhar. Vi, a propósito, uma rábula dos “Donos Disto Tudo” de se lhe tirar o chapéu, caricaturizando a líder de um partido e o candidato benzoca a líder doutro... Um mimo.
Ah, nota final: o senhor Trump não está doido. É simplesmente estúpido. Americanos: acordem para a vida. Vocês votaram no homem. Ele não chegou lá por milagre nem foram os russos que o lá puseram. Foram vocês, com o vosso maravilhoso e avançadíssimo sistema eleitoral. Agora aguentem-no. Façam-nos (ao resto do mundo) é um favorzinho: não ajam como se não fosse nada convosco, fazendo ares de espanto por cada desmando da criatura. E, já agora, não tornem a votar no homem.

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